Desde a publicação do Código Tributário Nacional, há exatos 50 anos, o sistema tributário convive com inúmeras aberrações.
Uma delas é a existência de dois prazos decadenciais, cada qual aplicável a uma espécie de lançamento, o que gera muitas dúvidas e, portanto, um gigantesco contencioso traduzido em imensos gastos de tempo e de despesas que poderiam ser aplicados na produção econômica.
Isso poderia ter sido resolvido há décadas. O CTN criou um prazo decadencial para o lançamento chamado por homologação, aquele que ocorre por ato do próprio contribuinte e que fica sujeito à eventual homologação do fisco, e outro prazo para o lançamento de ofício, por meio do qual o fisco cobra o tributo em iniciativa própria.
A existência de dois prazos não faz sentido, pois praticamente todos os lançamentos são hoje por homologação. O lançamento de ofício é feito, em regra, por meio dos autos de infração, que cobram algum tributo não pago no prazo devido, ou em casos específicos nos quais o fisco tem as informações do contribuinte disponíveis, como no IPVA e no IPTU.
Outra razão é que não se pode contar um prazo extintivo de direito quando ele não se constituiu, ou seja, quando o fato ocorre, não surge automaticamente o direito de o fisco lançar aquele crédito, pois há um prazo para o contribuinte realizar o autolançamento.
Somente depois de vencido o prazo da declaração é que surge um direito potestativo de lançar de ofício o crédito não declarado ou declarado a menor. Apenas a partir daí pode-se cogitar da contagem de um prazo decadencial. O que for declarado e não pago não será mais alvo de lançamento, porém de inscrição direta em dívida ativa.
Como os tributos têm seus períodos de apuração e são lançados em prazos diferentes, se a ideia é simplificar o sistema e ter uma única forma de contagem de prazo decadencial para lançamento, ele dever começar a correr apenas após encerrado o maior período de apuração, que é anual.
Alguns tentam, na linha da literatura brasileira tradicional, usar visões abstratas criativas para tentar justificar posições que não se sustentam perante o menor sopro do bom senso e da pragmática[1].
Frente às considerações postas, entender que o lançamento retroagiria para criar efeitos antes inexistentes desde o fato gerador e, assim, gerar um dever no fisco de forma retrospectiva é uma visão criticável, que tenta dar lógica ao art. 150, §4º, do CTN, mas que, pragmaticamente, não faz sentido.
Sustentar esse entendimento é igual a afirmar que o fisco não tem cinco anos de prazo, pois, quando o direito começar a existir, já se terá passado uma parte dele. Só nos devaneios dogmáticos de alguns estudiosos nada pragmáticos isso seria possível.
É uma pena para o Brasil que esses autodenominados “doutrinadores” pratiquem sua doutrinação quase sempre com olhos mais na venda de livros e cursos, e na criação de teses para não pagamento de tributos pelos seus clientes, do que buscando o melhor para o país.
O objetivo maior do prazo decadencial é criar uma regra que dê segurança à sociedade a respeito de até quando poderá vir a ser cobrada, porém que não limite demais o tempo do fisco para cobrança, o que favorece a sonegação fiscal. Prazos muito curtos apenas beneficiam maus pagadores. Prazos duvidosos geram contencioso.
Quanto mais sonegação fiscal há, mais o restante da sociedade será apenada[2]. Sonegações e planejamentos engenhosos que visam apenas ao não pagamento de altos tributos precisam ser combatidos com cuidado. É nessas situações que o fisco deve focar e agir com dureza, ainda que mantendo sempre a lealdade.
O sentimento hoje existente em muitos brasileiros de que não é reprovável sonegar tributos e de que o amigo que não paga está agindo corretamente é inocente e prejudica muito aos próprios que pensam assim.
A sociedade com boa fé tributária não deve querer que o prazo decadencial seja muito curto, nem muito extenso. Interessa que ele seja claro, não gere processos desnecessários e dê tempo suficiente ao fisco para cobrar os maus pagadores.
A legislação é confusa. Foi necessária uma intervenção do STJ e, mesmo assim, os milhares de processos continuam se multiplicando. É preciso cortar esse mal pela raiz.
Se for criada uma regra simples e clara prevendo um único prazo de decadência, não haverá mais porque se discutir sobre ele. Com o fim dos processos, fisco e contribuintes economizarão bastante, e os órgãos administrativos e judiciais de julgamento também. Todos ganham.
Partindo das premissas acima, surgem três opções mais claras: a) submeter todos os casos à contagem do prazo do art. 150, §4º, do CTN; b) ou à contagem do art. 173, I, do CTN; c) ou a uma regra nova que faça mais sentido do que essas.
A opção “a”, como já dito, é ruim. A opção “b”, que defendi em texto anterior[3], satisfaz quase completamente os objetivos aqui propostos, mas mantém em parte o problema de iniciar a contagem do prazo antes de terem sido realizadas todas as declarações do IRPJ e da CSLL relativas ao ano anterior.
É preciso, portanto, reavaliar custos e benefícios de utilização da opção “b”. Para que haja coerência entre contagem do prazo e possibilidade de exercício do direito, no caso de IRPJ e CSLL, apenas deveria ser iniciada a contagem da decadência depois do dia 15 de fevereiro de cada ano seguinte, quando se encerra o prazo para entrega da DCTF de dezembro.
Não é necessário aguardar o ajuste, pois as declarações do período estarão todas feitas e a DIPJ é considerada apenas uma declaração de fechamento, não mais constituidora dos créditos tributários, como são as DCTFs.
Deste modo, é preciso avaliar o que é melhor: ter um prazo único começando a correr no primeiro dia do exercício seguinte, permanecendo essa incongruência relativa ao IRPJ e à CSLL, mas tendo grande simplicidade e clareza, ou criar outra regra mais coerente e menos simples.
Nesse último caso, há duas opções mais óbvias: a) manter a contagem do prazo no primeiro dia do exercício seguinte para todos os tributos, exceto para o IRPJ e a CSLL apurados anualmente, que teria início no dia 16 de fevereiro do exercício seguinte; b) ou fixar a contagem inicial, no caso de todos os tributos, no dia 16 de fevereiro do exercício seguinte.
Independentemente da regra escolhida, não haveria grande mudança de cultura, a adaptação seria tranquila, e se ganharia muito com a redução de conflitos.
Se a ideia é essa, também deve valer para a análise de créditos dos contribuintes, de prejuízos fiscais, saldo negativos e afins. Não há hoje norma expressa na legislação para tratar das hipóteses em que o contribuinte pede restituição ou compensação.
Por conta disso, mais alguns milhares de processos são gerados para discutir se o fisco pode, por exemplo, questionar os prejuízos fiscais e os saldos negativos de IRPJ e de CSLL formados há 15 anos, algo muito comum na Receita Federal.
Apesar de entender que é possível hoje construir uma regra pela necessidade de o fisco respeitar o prazo de 5 anos nesses casos, é necessário um esforço interpretativo para tanto, assim como é necessário um esforço daqueles com a visão contrária, pois, afinal, não há nada expresso na legislação.
No caso desses últimos, é mais simples, pois basta afirmar a inexistência da regra de decadência. Diz-se que, se o legislador quisesse prever um prazo, ele o teria feito.
Quando o CTN foi criado, nem sequer existiam pedidos de restituição e compensação como os realizados hoje. É muito mais fácil crer que nunca ninguém tenha pensado em resolver esse problema, assim como não resolveu aquele analisado anteriormente e inúmeros outros.
O prejuízo fiscal é o resultado negativo da empresa, o contrário do lucro real. Se houve prejuízo, o fisco tinha que analisá-lo, até para saber que nada realmente deveria ser cobrado. Não há razão para que exista um prazo de segurança no caso de lançar para exigir dívida, mas não no caso de questionar valores que modificam a base de cálculo ou diretamente a dívida do contribuinte.
Defender isso é concluir que, nesses casos, o contribuinte não precisa de segurança. Ele fica sempre à mercê do fisco quanto aos seus resultados fiscais e a suas dívidas tributárias, pois o único prazo expressamente existente hoje é o de 5 anos para homologação após o pedido.
É preciso, contudo, fixar uma norma que proteja o fisco no caso de o contribuinte retificar suas declarações durante o período em que o prazo corre e tentar se beneficiar disso.
Na linha da jurisprudência brasileira, que concluiu, com base nos arts. 147 e 174, parágrafo único, inc. IV, do CTN, ocorrer a reabertura do prazo prescricional quando há retificação da declaração, deve haver reabertura do prazo decadencial para questionar créditos, prejuízos fiscais, saldos negativos e afins em caso de modificação desses valores nas declarações, reabertura essa que, por óbvio, fica circunscrita especificamente ao que foi retificado.
Por mais distante que essas questões pareçam das decisões empreendedoras, é certo que há uma relação forte entre elas, conforme já expliquei em outros textos[4]. Os prejuízos e saldos negativos, não poderia ser diferente, estão totalmente integrados nos cálculos econômico-financeiros dos projetos. Assegurar a existência de regras claras para gozo de prejuízos fiscais, saldos negativos, créditos e afins é muito importante para a economia do país.
Conlui-se, portanto, que, para não ser necessário remendar o CTN, uma nova lei complementar deveria extinguir o art. 150, §4º, e o 173, I, e quaisquer outros enunciados semelhantes existentes dentro ou fora do CTN, trazendo regras mais abrangentes, claras e simples, conforme os fundamentos acima apresentados.
Longe de ter a pretensão de ser uma proposta final, parece um bom começo de discussão para que possamos avançar num curto espaço de tempo, pois o país precisa muito de mudanças tributárias que deem mais eficiência e equidade à economia.
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[1] Tratei dos graves problemas causados pela visão lógico-semântica e formalista do Direito Tributário no livro Direito Tributário, Pragmática e Transdisciplinaridade: da incidência normativa à política tributária, publicado pela Amazon.
[2] Tratei do tema em: http://www.conjur.com.br/2015-nov-17/villas-boas-sonegacao-fiscal-supera-valores-corrupcao-publica.
[3] http://www.cartacapital.com.br/blogs/cartas-da-esplanada/uma-filigrana-tributaria-que-vale-bilhoes
[4] Ver, por exemplo, http://www.conjur.com.br/2016-jul-05/villas-boas-brasil-pior-politica-prejuizos-fiscais-mundo.
Por Marcos de Aguiar Villas-BôasDoutor pela PUC-SP, Mestre pela UFBA, é conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda e pesquisador independente na Harvard Law School e no Massachusetts Institute of Technology
Fonte: Jota
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