Apurar a existência de caixa dois em uma campanha eleitoral não é tarefa nada fácil. Para fiscalizar, apurar e penalizar o caixa dois é preciso identificar os casos em que o candidato aporta dinheiro, bens ou serviços na sua campanha eleitoral sem contabilização. Acontece que temos 16.564 candidatos a prefeito e 463.356 candidatos a vereador fazendo campanha ao mesmo tempo e, portanto, merecendo fiscalização concomitante, em um curto período de 45 dias.
Considerando que esse ilícito, acompanhado ou não da lavagem de dinheiro[1], é das infrações mais graves que se pode cometer ao longo da campanha eleitoral, o que fazer para se apurar se houve caixa dois e, assim, iniciar os processos de responsabilização cabíveis?
Sem a fiscalização e as denúncias do eleitor, é preciso acreditar que a autoregulação entre partidos/candidatos e o aparato estatal são capazes de acompanhar cada uma das milhares de campanhas, para saber se a prestação de contas reflete tudo que foi efetivamente arrecadado e gasto. Entenda-se como aparato estatal[2]: i) a Polícia Federal, atuando junto com todas as demais competências; ii) os Promotores Eleitorais, que não abandonam as demais atividades cotidianas, especialmente em pequenas comarcas e os iii) aos servidores da Justiça Eleitoral, com auxílio do cruzamento de dados eletrônicos e de técnicos dos Tribunais de Contas e de outros órgãos.
E porque é tão importante saber se as doações e os gastos lançados na prestação de contas refletem a realidade? Essa não é uma questão meramente formal ou jurídica que tem uma finalidade em si. Os candidatos e os partidos deixam de registrar uma doação que receberam ou um gasto que fizeram na sua prestação de contas por diversas razões, que passam, sem dúvida, por simples equívocos. Contudo, descartadas essas hipóteses, não é difícil concluir que a ocultação de informações dos órgãos de controle e dos próprios eleitores tem objetivos claros: esquivar-se do teto de gastos e esconder a origem/destinação do dinheiro, dos bens e dos serviços usados na campanha.
Para os candidatos que não declaram seus gastos, fazendo uso do caixa dois, o dinheiro pode ter qualquer origem, podem gastar no que bem entender e o céu é o limite para o uso de recursos na campanha. Como disputar com alguém assim, em igualdade de condições, preservando a vontade do eleitor e a legitimidade do pleito? Impossível.
O cenário fica ainda mais grave quando se investiga a origem do dinheiro e o destino dos gastos. Recursos não contabilizados e, portanto, gerenciados por meio de caixa dois, podem vir de fontes vedadas, de organizações criminosas e até mesmo de repasse de propinas compensadas por ilícitos praticados em contratos públicos. Podem ser usados para compra de votos e para superar as limitações de gastos impostas pela lei. Notícias recentes dão conta de investigações que avaliam o financiamento de campanhas pelo PCC, por milícias e por recursos desviados de obras e empresas públicas.
É verdade que os últimos tempos têm nos surpreendido com a perspectiva de que mesmo os recursos contabilizados podem ter origem ilícita. Partem de doadores autorizados, em montantes que não ultrapassam o teto e com registro que atendem a todas as leis e regulamentos. Contudo, investigação mais detalhada revela sua origem duvidosa e, até mesmo, a lavagem de dinheiro. De todo modo, mesmo nesses casos, são as denúncias ou as informações extraídas da efetiva prestação de contas os maiores instrumentos de combate às práticas ilícitas.
Ainda nesta semana, o TSE divulgou que “um cruzamento de dados entre o cadastro de beneficiários de programas sociais do Governo Federal e o sistema de prestação de contas do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) identificou que R$ 15.970.436,50 foram doados a candidatos e partidos políticos nas eleições deste ano por beneficiários do Bolsa Família.” Isso não quer dizer que todas as doações sejam ilícitas. Mas, a notícia revela a importância que a efetiva contabilização dos recebimentos e gastos tem na eficiência do combate ao ilícito: quando o candidato se esquiva da prestação de contas e opera com o caixa dois, o cruzamento de dados passa a ser impossível. A partir daí, a fiscalização de campo e as denúncias assumem papel fundamental.
Diante de todo esse cenário, a Justiça Eleitoral tem cuidado de ampliar mecanismos que facilitem o controle social por instrumentos eletrônicos de denúncia.
Para que os eleitores saibam o que fiscalizar, facilitando o acesso ao valor total que cada candidato pode gastar em sua campanha, a Justiça Eleitoral desenvolveu um sistema bastante simples disponível aqui[3]. Passados muitos anos e inúmeras críticas, é a primeira vez que as campanhas eleitorais estão sujeitas a um limite global de gastos. Esse teto foi estabelecido pela Lei 9.504/97 (art. 10) e regulado pelo Tribunal Superior Eleitoral (Res. 23.459/15 e Portaria/TSE 704/2016).
Além disso, também pela primeira vez, os candidatos foram obrigados a lançar todas as doações que receberam quase em tempo real. O art. 28, §4º, I da Lei 9.504/97 determina que devem ser declarados “os recursos em dinheiro recebidos para financiamento de sua campanha eleitoral, em até 72 (setenta e duas) horas de seu recebimento”. Não fosse suficiente, no dia 15 de setembro, os candidatos também estavam obrigados a apresentar “relatório discriminando as transferências do Fundo Partidário, os recursos em dinheiro e os estimáveis em dinheiro recebidos, bem como os gastos realizados”.
Todas essas informações estão disponíveis na internet e podem ser acessadas aqui[4]. Os dados são úteis não apenas como parâmetro de fiscalização e denúncia, mas também para que os eleitores se informem sobre os candidatos que pretendem eleger. Afinal, parece bastante relevante considerar se ele cumpre a determinação de prestar contas ou a ignora.
Conscientes de todas as informações, os eleitores que tenham acesso a indícios ou provas de irregularidades, podem encaminhar denúncias escritas ao Promotor Eleitoral atuante na respectiva Zona Eleitoral ou podem usar os sistemas eletrônicos, recentemente desenvolvidos pela Justiça Eleitoral.
Usando o aplicativo “Pardal” (clique aqui[5]), os eleitores podem notificar irregularidades e não conformidades nas campanhas. Pelo aplicativo Caixa 1 (clique aqui[6]) – desenvolvido pelo Tribunal Regional Eleitoral do Mato Grosso – o eleitor pode fotografar, filmar ou gravar áudio sobre gasto de campanha e enviar para o TRE. Além disso, qualquer pessoa que houver efetuado doações para uma campanha pode registrá-las aqui[7]. Esse registro permite que a Justiça Eleitoral verifique se o valor foi efetivamente lançado e dá mais transparência aos gastos realizados na campanha.
Detectada e comprovadas irregularidades, a prática desses ilícitos têm diversos desdobramentos e pode acarretar: i) a rejeição das contas de campanha do candidato com determinação de devolução dos recursos recebidos de fonte vedada ou a sua transferência para a conta única do Tesouro Nacional, assim como dos recursos de origem não identificada;ii) rejeição das contas de campanha do partido com sanção de suspensão do repasse de novas quotas do Fundo Partidário, proporcional e razoável, pelo período de 1 (um) mês a 12 (doze) meses, ou por meio do desconto, do valor a ser repassado, na importância apontada como irregular (art. 25, parágrafo único da Lei 9.504/97 e art. 68, §7º da Res. 23.463/15); iii) responsabilização pessoal dos dirigentes partidários, em processos específicos a serem instaurados nos foros competentes (art. 68, §4º da Res. 23.463/15); iv) cassação do diploma do candidato, caso apurado, em ação própria (art. 30-A da Lei 9.504/97), captação ou gastos ilícitos de recursos na campanha, para fins eleitorais, graves o suficiente para macular a legitimidade do pleito; v) declaração da inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade com gravidade suficiente para interferir na legitimidade do pleito, a serem apurados em ação de investigação judicial eleitoral (AIJE, art. 22 da LC 64/90) ou ação de impugnação de mandato eletivo (art. 14, §10 da CR/88); vi) embora a utilização de caixa dois em campanhas eleitorais não encontre tipificação penal específica, outros crimes como o de falsidade (art. 350 do Código Eleitoral) e os tipos próprios de lavagem de dinheiro podem levar a penas privativas de liberdade e multa.
Também aqui, o controle social com a participação do eleitor na fiscalização e envio de denúncias é bastante importante.
Embora as ações penais e as pretensões de ressarcimento civil admitam apuração em prazo mais dilatado, as ações eleitorais estão sujeitas a prazos muito curtos. Embora a análise das contas desses milhares de candidatos (eleitos e não eleitos) demande cuidado e tempo, a legislação prevê que (art. 30, §1º da Lei 9.504/97) as contas dos candidatos eleitos devem ser julgadas até três dias antes da diplomação. Nestas eleições de 2016, o calendário eleitoral prevê o dia 19 de dezembro para a diplomação dos eleitos. Cabe lembrar aqui, que as contas são prestadas 30 (trinta) dias após as eleições o que, neste ano, equivale ao dia 1º de novembro de 2016. Significa dizer que entre o dia 1º de novembro e 16 de dezembro (aproximadamente 45 dias) a Justiça Eleitoral deve processar (apurando as mais diversas e possíveis irregularidades) e julgar as contas de todos os candidatos eleitos nos 5.570 municípios. Restam, ainda, os candidatos não eleitos que, evidentemente, não estão imunes a prática de ilícitos ao longo da campanha.
Mas, não é só: após 15 (quinze) dias contados da data da diplomação, encerram-se todos os prazos para ajuizamento de ações eleitorais[8]. Significa dizer que, encerrado esse prazo, não há mais nenhuma medida judicial eleitoral disponível capaz de cassar o diploma ou mandato do candidato eleito. Por mais grave que seja o ilícito praticado, se o fato for apurado ou denunciado após esse prazo e não houver ação proposta, no âmbito da Justiça Eleitoral, não há mais o que se possa fazer.
Cabe esclarecer que os prazos são curtos e as vias judiciais limitadas a partir do pressuposto de que nosso Estado Democrático exigiria a estabilização dos mandatos[9].
Não fosse suficiente, por fim, partidos políticos e candidatos são obrigados a conservar a documentação concernente às suas contas somente até cento e oitenta dias após a diplomação (Lei nº 9.504/1997, art. 32, caput). Os documentos apenas não são descartados nesse prazo se estiver pendente julgamento de processo judicial relativo às contas eleitorais, hipótese em que a documentação deverá ser conservada até a decisão final (Lei nº 9.504/1997, art. 32, parágrafo único).
Toda essa narrativa não tem a pretensão de encontrar um caminho que ponha fim definitivo e absoluto a prática de ilícitos. Seria uma evidente utopia. De mais a mais, o maior desafio não me parece seja apenas reduzir as infrações, mas, sim, fazer com que deixem de habitar o espaço da normalidade. Para tanto, os ilícitos precisam ser reconhecidos pelos eleitores para que possam ser denunciados. Não se pode pretender o que é absolutamente desconhecido.
[1] Já comentei por aqui, em outra oportunidade, que os últimos tempos têm nos surpreendido com a perspectiva de que boa parte dos valores que merece fiscalização não apresenta ilegalidade na entrada. Partem de doadores autorizados, em montantes que não ultrapassam o teto e com registro que atendem a todas as leis e regulamentos. Contudo, tem destinação duvidosa: empresas fantasmas, serviços não prestados, superfaturamentos e atividades incompatíveis com a realidade atual. O problema parece ainda mais grave quando consideramos que uma parcela desses recursos tem origem no Fundo Partidário, ou seja, nos cofres públicos. Essa é a perspectiva da lavagem de dinheiro que merece análise específica.
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[2] Os juízes eleitorais não compõem esse rol porque estão adstritos ao princípio dispositivo, de modo que somente atuam em processos que já estejam em curso. A Lei 9.504/97, art. 41, limita o exercício do poder de polícia e a autoexecutoriedade dos juízes à propaganda eleitoral.
[3]http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/prestacao-de-contas/divulgacao-dos-limites-legais-de-campanha
[4] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/divulgacao-de-candidaturas-e-contas-eleitorais
[5] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/aplicativos-justica-eleitoral
[6] http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/aplicativos-justica-eleitoral
[7]http://www.tse.jus.br/eleicoes/eleicoes-2016/prestacao-de-contas/sistema-de-cadastro-de-informacoes-de-campanha
[8] O prazo para ajuizamento da representação por violação ao art. 30-A (captação ou gastos ilícitos na campanha) é de 15 (quinze) dias contados da diplomação (art. 30-A, §3º da Lei 9.504/97); já o prazo para ajuizamento de ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) por abuso de poder é até a data da diplomação; o prazo para ajuizamento da ação de impugnação de mandato eletivo (AIME), também é de 15 (quinze) dias contados da diplomação (art. 14, §10 da CR/88).
[9] Esse seria tema para outro debate.
Por Marilda de Paula SilveiraMestre e doutora em Direito pela UFMG. Professora de Direito Eleitoral e Administrativo. Advogada.
Fonte: Jota
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