No XX Congresso Internacional de Direito Tributário da Abradt, ocorrido semana passada em Belo Horizonte, fiz diante de 700 pessoas uma homenagem póstuma a Alberto Xavier, louvando-lhe a inteligência, a cultura, a fidalguia, a joie de vivre, o humor.
Em 2001, pela mesma associação, promovemos um seminário na Ilha de Comandatuba. Nunca houve igual fracasso de público! Éramos praticamente só os conferencistas, logo irmanados em polêmicas arcanas e intermináveis pelos bares do hotel. Foi ali que, num átimo, me tornei amigo do magnífico professor, a cuja memória (agora custodiada por seus sócios Roberto Duque Estrada e Renata Emery) dedico esta coluna.
No primeiro, à semelhança do que ocorre para a previdência pública, os valores recebidos sujeitam-se à retenção de IR-fonte e são mais tarde levados a ajuste na declaração anual do beneficiário, influindo no cálculo do imposto devido e da complementação ou da restituição cabíveis.
No segundo, regido pela Lei 11.053/2004, os valores recebidos têm tributação definitiva na fonte, submetendo-se a alíquotas que regridem de 35% a 10% à medida em que aumenta o intervalo entre o aporte da contribuição e o recebimento do benefício.
Acresce que, “sem prejuízo da parcela isenta prevista na tabela de incidência mensal do imposto”, são isentas do IRPF as aposentadorias e pensões recebidas por contribuintes com idade superior a 65 anos, até o teto mensal de R$ 1.903,98 (Lei 7.713/1988, artigo 6º, inciso XV).
Sempre se entendeu que essa isenção contemplava todos os filiados da previdência privada — quanto à pública jamais houve dúvida. Na prática, isso levava a que os seus benefícios só sofressem IR-fonte no que superasse R$ 1.903,98 por mês, qualquer que fosse o regime de tributação por que tivessem optado. Nesse sentido, a doutrina de Fábio Junqueira de Carvalho e Maria Inês Murgel[1], bem como manifestação da Receita Federal (Solução de Consulta DISIT/SRRF09 148/2013).
Porém, em 2014, a Receita editou a Solução de Consulta Cosit 337, afirmando que a isenção não alcança os benefícios privados sujeitos ao regime regressivo. De saída porque, a teor do artigo 19 da Instrução Normativa SRF 588/2005, no cálculo do IRPF “devem ser observadas, no que couber, as disposições relativas a isenção... independentemente da opção pelo regime de tributação efetuada pelo participante”.
Enquanto os contribuintes — e a própria Receita, na consulta anterior — enfatizam a parte final da regra, concluindo que não há diferença, para efeito de isenção, entre os regimes progressivo e regressivo, a Cosit ressalta agora a cláusula “no que couber”, que interpreta como um óbice à extensão automática do favor a este último, na medida em que submetido a um regramento fiscal próprio.
E tal extensão, segue o Fisco, estaria expressamente vedada pelo próprio artigo 6º, inciso XV, da Lei 7.713/1988, segundo o qual a isenção vem “sem prejuízo da parcela isenta prevista na tabela de incidência mensal do imposto" — o que a limitaria ao regime progressivo (pois é só neste, recorde-se, que haverá incidência na fonte segundo a tabela mensal).
Ora, dizemos nós, afirmar que uma isenção vem sem prejuízo de outra significa que ambas são diferentes e que podem coexistir uma independentemente da outra, dando um duplo benefício ao contribuinte. E não, como pretende a Receita, que aquela primeiro referida no texto limita-se, reconduz-se, funde-se à (ou confunde-se com a) outra.
Invoca ainda a Cosit os artigos 25, parágrafo 1º, alínea b, da Lei 7.713/88 e 4º, inciso VI, da Lei 9.250/95, que, ao disciplinarem a retenção de fonte segundo a tabela mensal, reiteram a isenção parcial. Face a tais dispositivos, conclui que o benefício só seria aplicável em tal contexto.
A inversão lógica é manifesta. Com efeito, afirmar que uma norma incide em determinada situação não autoriza a conclusão de que ela só incide naquela hipótese. Se as regras são específicas para a retenção segundo a tabela mensal, o fato de silenciarem a respeito de matéria estranha (a isenção nos casos de tributação exclusiva na fonte) não autoriza nenhuma ilação a respeito desta.
Alude também a Cosit ao artigo 8º, inciso I e parágrafo 1º, da Lei 9.250/95, segundo os quais não integram a base de cálculo do IRPF (i) os rendimentos tributáveis exclusivamente na fonte e (ii) a parcela isenta dos benefícios recebidos por maiores de 65 anos.
O raciocínio, não explicitado na nova consulta, chega a ser difícil de divisar. Mas parece consistir no seguinte: (a) se os benefícios sujeitos à incidência regressiva estão fora da base de cálculo do IRPF (visto serem tributados exclusivamente na fonte), (b) a parcela isenta mencionada no parágrafo 1º só pode ligar-se aos benefícios submetidos à incidência progressiva – o que significaria (c) que os primeiros não gozam da isenção.
As premissas a e b são corretas. O parágrafo 1º não teria por que excluir da base de cálculo do IRPF a parcela isenta dos benefícios sujeitos à incidência regressiva, se o valor integral destes já o foi pelo inciso I. Mas isso nada diz sobre a aptidão destes para o gozo da isenção parcial.
Vale dizer, com ou sem isenção desses benefícios, as regras do inciso I e do parágrafo 1º permaneceriam inalteradas, o que demonstra o caráter arbitrário da conclusão c.
Por fim, voltando à ideia de duplo benefício ao contribuinte acima enunciada, traz a Cosit a sua objeção mais impactante: imagine-se uma pessoa que receba aposentadoria do INSS e complementação de um fundo de pensão (o que é a situação padrão dos filiados às entidades fechadas de previdência complementar), no valor de R$ 1.903,98 cada.
No regime progressivo, esta pessoa receberá ambos os benefícios sem retenção alguma, pois não superam o valor isento. Mas, segundo a Cosit (caso 1), terá de tributar na declaração R$ 1.903,98 quanto a cada mês, pois fará a soma dos dois valores e terá a isenção limitada a R$ 1.903,98 mensais (como prevê o artigo 8º, parágrafo 1º, da Lei 9.250/95).
Já no regime regressivo, na visão da Cosit (caso 2), a isenção se aplicará apenas ao benefício público, havendo retenção definitiva sobre os valores pagos pelo fundo de pensão. A importância retida a cada mês variará segundo a alíquota aplicável, a qual – como visto – dependerá do chamado prazo de acumulação.
Se a isenção alcançasse também o benefício privado no regime regressivo (caso 3), o contribuinte gozaria de uma franquia de R$ 3.807,96 por mês, pois esse rendimento não será levado a ajuste anual; só o outro o será, e fruirá sozinho da isenção.
Ou seja: ao ver da Cosit, apenas a sua interpretação garante isonomia, no sentido de limitar a isenção à base de R$ 1.903,98 por mês em qualquer das sistemáticas.
Contudo, o erro está em desconsiderar, no caso 1, a isenção da tabela mensal de incidência, que tem o mesmo valor e que, segundo a lei, não é prejudicada por aquela específica das aposentadorias. Levando-se em conta essa outra franquia, o contribuinte também fará jus à isenção de R$ 3.807,96 por mês, fazendo-se a equiparação “por cima”, e não “por baixo”, como defende a solução de consulta. Esta, sem dúvida, é a interpretação correta.
A nova exegese do Fisco, não tendo respaldo na lei, como se viu acima, e violando a isonomia – por reduzir a isenção total de que goza o optante do regime regressivo, que fica sujeito no mínimo à tributação de 10% dos seus benefícios de fonte privada inferiores a R$ 1.903.98, contra zero do optante do regime progressivo, que se valerá da isenção genérica da tabela mensal de incidência – deve ser revista administrativamente ou censurada pelo Judiciário, caso impugnada pelos contribuintes a quem prejudica.
[1] Tributação de Fundos de Pensão. Belo Horizonte: Decálogo, 2007, p. 174.
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG.
Fonte: Conjur
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