A Constituição Federal de 1988 garante tratamento favorecido às microempresas e às empresas de pequeno porte, diretriz que foi seguida pelo Código Civil. O objetivo da política legislativa é propiciar um ambiente institucional favorável no qual seja possível o desenvolvimento de negócios de menor monta, o que, ao fim e ao cabo, acarretará benefícios a toda a comunidade. Essa foi, portanto, a lógica do legislador ao estabelecer normas prevendo um tratamento jurídico distinto, mais simplificado e menos custoso para as Micro Empresas (ME) e Empresas de Pequeno Porte (EPP).
Promulgada em 2006, a Lei Complementar 123 (com alterações posteriores), conhecida como Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, deu tratamento unitário à matéria no Brasil. Entre outras questões, instituiu para as ME e EPP regimes jurídicos diferenciados nas mais diversas áreas (direito tributário, societário, etc.) e na esfera contábil, com características bastante peculiares, isso sem contar com as leis especiais que também deram tratamento especial a tais espécies de empreendimentos, como o fez a Lei 11.101/05 (Lei de Falências e Recuperação de Empresas – LFRE) ao regrar o plano de recuperação judicial para ME e EPP.
A Lei Complementar 147, promulgada em 7 de agosto de 2014, passa a fazer parte desse contexto legislativo, haja vista que alterou dispositivos de diversos diplomas legais, basicamente referentes às ME e EPP, especialmente no que tange ao Simples Nacional. Ocorre que a LC 147 também alterou diversos dispositivos da LFRE, o que, em nosso entender, atinge frontalmente o sistema falimentar e recuperacional.
Dentre várias das alterações procedidas, salientamos o enquadramento, na classificação dos créditos da falência, dos créditos de titularidade de ME ou EPP como detentores de privilégio especial. Essa classificação causa espécie, uma vez que, por regra (Código Civil, artigo 963), o privilégio especial somente compreende os bens que estiverem sujeitos, por expressa previsão legal, ao pagamento do crédito que ele favorece — e assim, de fato, se dá todas as vezes em que a lei confere privilégio especial a determinado crédito. Todavia, a legislação é omissa quanto a qual bem garantiria o pagamento do crédito de titularidade de ME ou EPP.
Ademais, é importante salientar que a LC 147 criou uma nova classe de credores na assembleia geral — bem como no Comitê de Credores —, a chamada “classe dos titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte” (adicional às três classes já existentes, quais sejam: (i) titulares de créditos derivados da legislação do trabalho ou decorrentes de acidentes de trabalho, (ii) titulares de créditos com garantia real, e (iii) titulares de créditos quirografários, com privilégio especial, com privilégio geral ou subordinados). Segundo a nova regra, essa peculiar classe de credores deverá aprovar a deliberação sobre o plano de recuperação judicial pela maioria simples dos presentes, independentemente do valor de seu crédito (por exemplo, voto por cabeça), tal como ocorre com os credores trabalhistas.
Tal alteração legislativa não é apenas qualitativamente esdrúxula, mas também sistematicamente devastadora, já que altera a simetria de diversos dispositivos da Lei 11.101/05 e pode dar margem a diversas dúvidas.
Nesse sentido, por exemplo, de acordo com o parágrafo 1º do artigo 58 da LFRE, o juiz poderia, até a edição da LC 147, conceder a recuperação judicial mesmo que não aprovado o plano de recuperação judicial pela assembleia geral de credores, desde que houvesse (i) o voto favorável de credores representando mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia (independentemente de classes), (ii) a aprovação de duas das até então três classes de credores ou, caso houvesse somente duas classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos uma delas, e, (iii) na classe que houvesse rejeitado o plano, houvesse o voto favorável de mais de um terço dos credores, computados na forma prevista na Lei. Como fica, agora, com a criação de uma quarta classe, a classe dos credores enquadrados como ME ou EPP?
Da mesma forma, na hipótese de uma credora ME ou EPP também deter uma garantia real em face do devedor, qual deve ser seu enquadramento legal? Haveria margem para sustentar a divisão do crédito em real (até o valor do bem dado em garantia) e “privilegiado ME-EPP” no valor remanescente, como orienta o parágrafo 2º do artigo 41 (ainda que o legislador não tenha alterado o referido parágrafo, mas apenas os incisos do caput) e o artigo 83, inciso II? Isso sem mencionar o risco de, no decorrer do processo judicial, a ME ou EPP sofrer os efeitos de um eventual desenquadramento de tal categoria especial; passará a votar em qual classe ou será paga em qual classe? Quem fará esse controle? O juiz? O devedor? Ou o próprio credor? No mesmo sentido, surge a dificuldade sobre qual o marco temporal para o enquadramento como titular de créditos de ME ou EPP: permanecerá nesta categoria enquadrado quem, à época do deferimento do pedido de recuperação judicial, ou quando da decretação da falência, era ME ou EPP, mesmo que posteriormente tenha deixado de sê-lo? E se algum credor foi enquadrado como ME ou EPP posteriormente à constituição do crédito, tal crédito será enquadrado em tal classe?
Mas, a despeito de vários problemas de sistematização da LFRE decorrentes da LC 147, o que realmente se deve questionar é o fato de se criar (tanto na falência quanto na recuperação judicial) uma classe específica para os titulares de créditos enquadrados como ME ou EPP. A existência ou não de privilégio legal está basicamente relacionada à natureza da relação jurídica existente entre o credor e o devedor e não ao sujeito participante da relação. Assim, qual o motivo para diferenciar uma ME ou um EPP de um credor quirografário ou com privilégio geral?
A LC também alterou o regime especial de recuperação judicial para ME e EPP. Embora esteja muito longe de ter realizado as alterações necessárias para que o referido regime especial represente, efetivamente, um atrativo legal, é inegável que a LC 147 trouxe mudanças benéficas à categoria, como ao sujeitar à recuperação outras classes de credores que não somente os quirografários. Deixou, contudo, mais uma vez de corrigir o grave entrave do plano especial, que é a sua limitação a um parcelamento de débitos em até 36 meses, sem permitir a adoção de outros mecanismos ou mesmo atrelar o parcelamento à capacidade de pagamento da recuperanda.
De qualquer modo, parece-nos que a tramitação do processo de mudança legislativa no Congresso Nacional foi conduzida sem maior reflexão sobre os impactos na LFRE. A técnica legislativa adotada pela LC 147, ao alterar a LFRE, é extremamente questionável e suas disposições colidem, em boa medida, com o sistema falimentar e recuperacional. Parece que o antídoto para os efeitos adversos da nova sistemática dependerá, uma vez mais, do bom senso e da razoabilidade dos nossos tribunais que, em matéria falimentar e recuperatória, têm sido determinantes para manter intacto o espírito original da LFRE.
por Gilberto Deon Corrêa Junior é sócio do Souto Correa Advogados, ex-Procurador da Fazenda Nacional. Integrou os grupos de juristas que assessoraram o projeto da Nova Lei de Falências na Câmara dos Deputados, e a comissão destinada a proferir parecer ao Projeto 1.572/2001, que institui o Código Comercial.
Luis Felipe Spinelli é sócio do Souto Correa Advogados, doutor em Direito Comercial (USP), mestre em Direito Privado e Especialista em Direito Empresarial (UFRGS). Professor em cursos de pós-graduação na área de Direito Comercial, além de Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas (IBR).
Rodrigo Tellechea é sócio do Souto Correa Advogados, especialista em Direito Empresarial (UFRGS). Professor em cursos de pós-graduação na área de Direito Comercial, além de Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Recuperação de Empresas (IBR) e do Comitê Brasileiro de Arbitragem (CBAR).
Fonte: Conjur
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