A inserção no Brasil das normas internacionais de contabilidade tem causado inúmeras situações de conflito entre critérios contábeis e regras jurídicas, o que pode afetar a determinação da renda tributável, sobretudo a apurada segundo a sistemática do lucro real, cujo ponto de partida é o lucro líquido societário.
A chamada nova contabilidade formulou uma virada copernicana no padrão de contabilidade até então adotado no Brasil, alterando regras de reconhecimento, de mensuração e de evidenciação de fatos econômicos à luz da contabilidade.
Quanto ao reconhecimento dos fatos contábeis, passou do antigo padrão apoiado na forma jurídica, por influência que o Direito exerceu sobre a contabilidade no Brasil, muito em razão do atendimento de demandas tributárias, para a adoção do princípio da essência econômica. No que tange à mensuração dos fatos contábeis, o custo histórico deu lugar à regra do valor justo, valor presente e vida útil dos bens. Por fim, os critérios de evidenciação do patrimônio, antes pobres do ponto de vista informacionais, passaram a ser regulados pelo princípio da ampla divulgação e máxima fidedignidade[1].
Esta alteração de rumos na contabilidade promoveu substanciais modificações na forma de registro contábil de atos e negócios jurídicos realizados pela sociedade, que passaram não mais a se pautar por critérios jurídicos, mas por critérios impostos pela contabilidade.
A substituição do critério contábil do custo histórico pelo critério do valor justo é um bom exemplo desta mudança de rumos. Certos ativos passaram a ser contabilmente ajustados para refletir o seu valor de reposição mediante recompra no mercado (matérias-primas), o seu preço de venda no mercado (bens destinados a venda) e o seu valor provável de alienação (investimentos e instrumentos financeiros). Para evitar o cômputo de ganhos e perdas ainda não realizados decorrentes destes ajustes de ativos, a lei societária criou a possibilidade do registro em uma conta de ajuste de avaliação patrimonial no patrimônio líquido, onde aqueles ajustes podem ser registrados até que ocorra a realização do respectivo ativo.
A nova contabilidade preocupa-se sobretudo em fornecer no presente informações sobre os fluxos de caixa futuros, utilizando como base fatos passados ocorridos na sociedade. Essa afirmação resta clara da definição de ativo e passivo realizada pelo Pronunciamento Conceitual Básico R1, que trata da Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro, a saber, ativo é um recurso controlado (hoje) pela entidade como resultado de eventos passados e do qual se espera que fluam futuros benefícios econômicos para a entidade; e passivo é uma obrigação presente da entidade, derivada de eventos passados, cuja liquidação se espera que resulte na saída (futura) de recursos da entidade capazes de gerar benefícios econômicos.
A adoção do princípio da essência econômica sobre a forma jurídica também pode dar azo a uma substancial alteração nos resultados da sociedade. Para as novas regras contábeis, ao se avaliar se um item se enquadra na definição de ativo, passivo ou patrimônio líquido, deve-se atentar para a sua essência subjacente e realidade econômica, e não apenas para sua forma legal. Assim, por exemplo, no caso do arrendamento mercantil financeiro, a essência subjacente e a realidade econômica são a de que o arrendatário adquire os benefícios econômicos do uso do ativo arrendado pela maior parte da sua vida útil, em contraprestação de aceitar a obrigação de pagar por esse direito valor próximo do valor justo do ativo e o respectivo encargo financeiro. Dessa forma, o arrendamento mercantil financeiro dá origem a itens que satisfazem à definição de ativo e de passivo e, portanto, devem ser reconhecidos como tais no balanço patrimonial do arrendatário[2].
Quais os efeitos tributários desta profunda alteração na forma de contabilização de atos e negócios jurídicos e como deve se comportar o intérprete das regras tributárias, notadamente daquelas concernentes à apuração do lucro real?
A primeira observação importante a se fazer é que a matriz constitucional do imposto sobre a renda não foi alterada. Vale dizer, somente pode constituir fato gerador do Imposto de Renda um fato jurídico com conteúdo econômico, revelador de capacidade contributiva e que consubstancie acréscimo patrimonial disponível, a teor do que prescreve o artigo 43 do Código Tributário Nacional. Por conseguinte, receitas e ganhos não realizados, isto é, que não acresceram, não se incorporaram em caráter incondicional ao patrimônio da pessoa jurídica, não podem compor a base de cálculo do imposto sobre a renda. Continua-se a exigir, por imposição do princípio constitucional da capacidade contributiva, que a renda esteja realizada, jurídica ou economicamente.
Com efeito, os novos critérios de contabilização dos atos ou negócios jurídicos praticados pela sociedade devem ser interpretados pelo operador do Direito Tributário cum grano salis, haja vista a diferença de perspectiva que a norma tributária guarda em relação à norma contábil. O Direito Tributário e a contabilidade observam o mesmo fato econômico por lentes diferentes. Enquanto a norma tributária identifica os fatos econômicos e os categoriza segundo as formas jurídicas próprias do Direito positivo, a contabilidade os toma a partir de sua essência econômica sem consideração quanto aos seus aspectos jurídico-formais.
Um segundo registro importante é que o lucro real continua tendo como ponto de partida o lucro líquido do exercício ajustado pelas adições, exclusões ou compensações prescritas ou autorizadas pela legislação tributária (artigo 6º, caput, DL 1.598/77), e a sociedade deve registrar em livros auxiliares as disposições da lei tributária, sem qualquer modificação da escrituração mercantil e das suas demonstrações financeiras (artigo 177, parágrafo 2º, Lei 6.404/76).
Vale dizer, para efeito de apuração do lucro real, devem ser adicionados ao lucro líquido os custos, despesas, encargos, perdas, provisões, participações e quaisquer outros valores deduzidos na apuração do lucro líquido (para atender critério contábil ou norma societária) que, de acordo com a legislação tributária, não sejam dedutíveis na determinação do lucro real, bem como devem ser adicionados ao lucro líquido os resultados, rendimentos, receitas e quaisquer outros valores não incluídos na sua apuração (por força de critério contábil ou norma societária) que, de acordo com a legislação tributária, devam ser computados na determinação do lucro real (artigo 6º, parágrafo 2º, DL 1.598/77).
No mesmo sentido, na determinação do lucro real continuam podendo ser excluídos do lucro líquido do exercício os valores cuja dedução seja autorizada pela legislação tributária e que não tenham sido computados (por exigência de critério contábil ou regra societária) na apuração do lucro líquido do exercício; da mesma forma, podem ser excluídos os resultados, rendimentos, receitas e quaisquer outros valores incluídos na apuração do lucro líquido (por força de critério contábil ou regra societária) que, de acordo com a legislação tributária, não sejam computados no lucro real (artigo 6º, parágrafo 2º, DL 1.598/77).
Claro está que, embora a nova contabilidade possa trazer alterações no resultado societário (lucro líquido), continua plenamente vigente a possibilidade de ajustes ao lucro líquido quando da apuração do lucro real em função do atendimento à legislação tributária.
Um exemplo de tratamentos contábil e fiscal diferenciados ocorre com o pagamento de juros sobre o capital próprio (JCP). A Interpretação Técnica ICPC 08(R1), expedida pelo Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), determinou que, por ser prática usual das sociedades distribuírem juros sobre o capital próprio aos seus acionistas e imputarem-nos ao dividendo obrigatório, nos termos da legislação vigente, o tratamento contábil dado aos JCP deve, por analogia, seguir o tratamento dado ao dividendo obrigatório (itens 10 e 11). O Pronunciamento Técnico CPC 09, na mesma linha, estabelece que as quantias destinadas aos sócios e acionistas na forma de JCP, independentemente de serem registradas como passivo (JCP a pagar) ou como reserva de lucros, devem ter o mesmo tratamento dado aos dividendos no que diz respeito ao exercício a que devem ser imputados.
No entanto, para efeitos fiscais, continua em vigor a norma do caput artigo 9º da Lei 9.249/95, segundo a qual a pessoa jurídica poderá deduzir, para efeitos da apuração do lucro real, os juros pagos ou creditados individualizadamente a titular, sócios ou acionistas, a título de remuneração do capital próprio, calculados sobre as contas do patrimônio líquido e limitados à variação, pro rata dia, da taxa de juros de longo prazo (TJLP). Assim, embora a contabilidade trate os JCP como dividendos, para a regra tributária eles continuam sendo uma despesa financeira dedutível da apuração do lucro real.
A Lei 12.973/14 promoveu uma extensa e detalhada regulamentação objetivando claramente adaptar a legislação tributária às alterações promovidas pelas novas normas de contabilidade, tendo como norte a neutralidade fiscal, isto é, impedir que a adoção de novos critérios contábeis pudesse gerar efeitos tributários, na linha do que o DL 1.598/77 fez quando editada a Lei 6.404/76. O pano de fundo da Lei 12.973/14 é a manutenção da possibilidade de ajuste ao lucro líquido para atender à legislação tributária no processo de definição do lucro real.
Com efeito, a Lei 12.973/14 regulou os efeitos tributários dos novos critérios contábeis, por exemplo, quando disciplinou a avaliação a valor justo (artigos 13 a 16), o goodwill e o ganho por compra vantajosa (artigos 20 a 28), a subvenção para investimento (artigo 30), o prêmio na emissão de debêntures (artigo 31), o teste de recuperabilidade (artigo 32), os contratos de concessão (artigos 35 e 36) e o arrendamento mercantil (artigos 46 a 49)
A par de prever regras de neutralização sobre aspectos específicos trazidos pelos novos critérios contábeis, normalmente através de controles em subcontas, a Lei 12.973/14 trouxe ainda uma regra geral, de caráter prospectivo, assegurando, para o futuro, a permanência do princípio da neutralidade das novas regras contábeis à luz da legislação tributária, a saber:
Art. 58. A modificação ou a adoção de métodos e critérios contábeis, por meio de atos administrativos emitidos com base em competência atribuída em lei comercial, que sejam posteriores à publicação desta Lei, não terá implicação na apuração dos tributos federais até que lei tributária regule a matéria.
Parágrafo único. Para fins do disposto no caput, compete à Secretaria da Receita Federal do Brasil, no âmbito de suas atribuições, identificar os atos administrativos e dispor sobre os procedimentos para anular os efeitos desses atos sobre a apuração dos tributos federais.
Primeiramente, registre-se, a nosso ver, o caráter meramente pedagógico desta regra legal no sentido de reforçar a neutralidade da adoção das novas regras contábeis à luz da legislação tributária. O fato jurídico tributário é regido pelas regras constitucionais e legais pertinentes. No caso do imposto sobre a renda, virtualmente afetado pelas novas regras contábeis, continua tendo seu arcabouço definido pela Constituição Federal, pelo Código Tributário Nacional e pela legislação tributária, de modo que a adoção de um novo critério contábil, mesmo na inexistência do citado artigo 58, em qualquer hipótese poderia conduzir à configuração de uma renda que não represente manifestação de capacidade contributiva concretizada através de acréscimo patrimonial disponível.
Por conseguinte, o eventual silêncio da Receita Federal[3] em regulamentar e neutralizar os efeitos fiscais da adoção de um critério contábil não autoriza concluir que este critério contábil possui efeito tributário automático e que o Direito Tributário o teria incorporado pelo silêncio regulamentar. Mesmo diante do silêncio da Receita Federal, qualquer critério contábil somente terá efeito tributário se sua aplicação for compatível com o arquétipo constitucional e com as leis complementar (CTN) e ordinária que disciplinam o Imposto de Renda. Sustentar o contrário seria entender que estaria ao alvedrio da Receita Federal cumprir ou não a Constituição Federal ou submeter a Constituição Federal à vontade da Receita Federal no que tange à decisão de neutralizar ou não o efeito fiscal de um critério contábil que ofende disciplina constitucional.
A neutralização dos efeitos fiscais dos novos critérios contábeis é uma exigência da obediência à disciplina constitucional das espécies tributárias, notadamente do Imposto de Renda, e da convivência apenas parcial entre as regras contábeis e as regras tributárias, editadas com premissas e objetivos diferentes. De resto, não é novidade para o Direito Tributário brasileiro a existência de ajustes tributários sobre resultados apurados pela contabilidade adotando critérios divergentes daqueles aceitos pelo legislador tributário.
Portanto, todo e qualquer critério contábil somente terá efeito fiscal se passar pelo teste de compatibilidade com a Constituição Federal, com o Código Tributário Nacional e com a legislação tributária, notadamente quanto ao princípio da capacidade contributiva e dos arquétipos constitucionais das espécies tributárias. Os registros contábeis pautam-se pelo critério da essência econômica, mas o fato jurídico tributário continua iluminado pelas regras do Direito positivo. O eventual silêncio da Lei 12.973/14 ou da Receita Federal no exercício da competência que o artigo 58 desta lei lhe atribui não representa a adoção automática de critério contábil na seara tributária.
[1] Cf. Alexsandro Broedel Lopes e Roberto Quiroga Mosquera. O direito contábil – fundamentos conceituais, aspectos da experiência brasileira e implicações. Controvérsias Jurídico-Contábeis (aproximações e distanciamentos), Dialética, 2010, p. 77.
[2] As regras para o ajuste fiscal deste tratamento contábil estão na IN RFB 1.889, de 6 de maio de 2019.
[3] Registre-se que a Receita Federal vem se esforçando em exercer esta competência regulamentar, como se observa pelas instruções normativas 1753/17, 1771/17 e 1889.
Helenilson Cunha Pontes é advogado parecerista, livre-docente em Legislação Tributária pela USP e doutor em Direito Econômico e Financeiro pela mesma instituição.
Fonte: Conjur
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