quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Inconstitucionalidade na lei de repatriação

Perturbou-me a parte final da redação do artigo 11 da Lei nº 12.354 (Lei da Regularização de Ativos no Exterior), deste ano, quando definiu que "os efeitos desta lei não serão aplicados aos detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, nem ao respectivo cônjuge e aos parentes consanguíneos ou afins, até o segundo grau ou por adoção, na data de publicação desta lei".

A princípio, pareceu clara a intenção de impedir que as pessoas em tais condições pudessem aderir à anistia penal relativa aos crimes tributários e financeiros relacionados na lei, evitando a sua potencial utilização como meio de lavagem de recursos desviados no exercício do cargo, emprego ou função pública.

Todavia, para alcançar tal intento, parece óbvio que deveria haver uma contemporaneidade entre o período de geração dos recursos no exterior ou, ainda, o período anistiado (até 31 de dezembro de 2014) com o exercício do referido cargo, emprego ou função pública.

O projeto de lei aprovado pelo Senado com modificação no artigo 11 exigiria o retorno à Câmara dos Deputados

É fato que a lei pode eleger critérios discriminatórios entre pessoas, mas tais critérios devem guardar coerência e não afrontar princípios legais e constitucionais. Em outras palavras, deve haver uma correlação lógica entre o critério discriminatório e a sua justificativa racional, devendo referida correlação lógica respeitar princípios constitucionais.

A discriminação de direitos deve estar assentada nas pessoas, coisas ou situações. É o vínculo de conexão lógica entre os elementos diferenciais colecionados e a disparidade das disciplinas estabelecidas em vista deles, o quid determinante da validade ou invalidade de uma regra perante a isonomia (Bandeira de Mello, 1993).

Note-se que a fixação do impedimento apenas aos que exerciam cargos, empregos ou funções públicas em 14 de janeiro deste ano, permitirá às pessoas que, por exemplo, foram parlamentares por décadas, ministros ou secretários de Estado ou presidentes da República em passado recente, mas deixaram de ser recentemente, possam ter o benefício da lei.

De outro lado, um administrador, advogado ou economista que sempre atuou na iniciativa privada e que recebeu herança no exterior há uma década, mas que foi alçado ao cargo de diretor de um banco público ou a uma secretaria de Estado em 13 de janeiro deste ano, estará impedido de optar pelo regime de regularização dos seus ativos.

Para tentar entender as razões discriminatórias escolhidas pelo legislador, especialmente a data fixada na parte final do artigo 11 da lei, visitei o processo legislativo, deparando-me com indigesta surpresa.

O Projeto de Lei nº 2.960, de 2015, originador da Lei nº 12.354, deste ano, foi aprovado na Câmara dos Deputados na sessão de 11 de novembro de 2015, conforme texto publicado no Diário da Câmara dos Deputados de 12 de novembro de 2015 (página 94).

A mera leitura do texto aprovado revela que a aprovação do artigo 11 na Câmara foi realizada sem qualquer fixação de período. Na votação do projeto pelo Senado Federal, processado sob o nº 186, no dia 15 de dezembro de 2015, o texto foi aprovado com a incorporação da expressão "na data de publicação desta lei" na parte final do artigo 11, sendo enviado à sanção presidencial e resultando na Lei nº 12.354, deste ano.

O fato importante é que o projeto de lei aprovado pelo Senado Federal com modificação ao artigo 11, ainda que por força da inserção do período de impedimento em sua parte final, exigiria o retorno à Câmara dos Deputados para nova votação.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 65, define que "o projeto de lei aprovado por uma Casa será revisto pela outra, em um só turno de discussão e votação, e enviado à sanção ou promulgação, se a Casa revisora o aprovar, ou arquivado, se o rejeitar". E complementa em seu parágrafo único, que "sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora".

O projeto de lei, mesmo submetido a tal modificação, não retornou à Câmara dos Deputados, o que se justificaria apenas se a emenda não acarretasse modificação no sentido da proposição jurídica.

O Supremo Tribunal Federal já decidiu que "o parágrafo único do artigo 65 da Constituição Federal só determina o retorno do projeto de lei à Casa iniciadora se a emenda parlamentar introduzida acarretar modificação no sentido da proposição jurídica". (ADI 2.238 e ADI 2.182).

Não parece ser o caso de despender muito esforço para extrair o que significaria, no caso, a diferença entre os sentidos das proposições jurídicas aprovadas em cada uma das casas legislativas.

Se fosse mantido o texto aprovado na Câmara dos Deputados, sem delimitação de período, todos aqueles que detiveram cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas, estariam impedidos de aderir ao regime. Caberia ao intérprete, de forma lógica e sistemática, deduzir que tal restrição abrangeria situações nas quais o exercício do cargo, emprego ou função pública de direção ou eletiva fosse coincidente com a geração ou manutenção dos recursos anistiados. Interpretação diversa feriria de morte a lógica intrínseca na própria norma.

Com a modificação aprovada pelo Senado Federal e que deu suporte ao texto da Lei nº 12.354, deste ano, os detentores de cargos, empregos e funções públicas de direção ou eletivas na data da publicação da lei, estão absolutamente inaptos a aderir, mesmo que os recursos tenham sido gerados ou mantidos em épocas nas quais não exerciam tais atividades.

Há, portanto, modificação substancial no sentido da proposição jurídica, resultando em inconstitucionalidade pontual deste dispositivo legal.

por Eduardo Perez Salusse é sócio do Salusse Marangoni Advogados, mestre em direito tributário e professor no MBA em Gestão de Tributos e Planejamento Tributário na FGV/SP

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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