A criação do regime especial de regularização cambial e tributária (RERCT), introduzido pela Lei nº 13.254/2016, tem como pano de fundo a premência de trocas automáticas de informações entre as autoridades tributárias de mais de uma centena de países aderentes aoCommon Reporting Standard (CRS), aprovado no âmbito do G20 da OCDE. Trata-se de assegurar aos cidadãos que mantêm ou mantiveram recursos de forma ilícita no exterior a possibilidade de regularizarem e repatriarem tais bens sem a imposição das sanções penais típicas relativas aos crimes de lavagem de capitais, evasão de divisas e contra a ordem tributária. O custo atrelado à regularização é o pagamento de tributos: 15% de imposto de renda, mais 15% de multa, ao câmbio de 31/12/2014.
Nos termos do artigo 5o da lei, a concretização da adesão depende da “entrega da declaração dos recursos, bens e direitos sujeitos à regularização” e do pagamento integral do imposto e da multa previstos, respectivamente, nos artigos 6o e 8o. Apenas com o cumprimento de tais condições é que se tem a extinção da punibilidade dos crimes acima listados – esse é o teor do parágrafo 1o desse mesmo artigo 5o. Estamos diante, portanto, de uma norma tributária que atribui efeitos penais ao pagamento de tributo realizado no contexto da declaração.
Ou seja, o contribuinte tem o dever de declarar tanto a posição estática de seu patrimônio em 31/12/2014 quanto os bens e valores que porventura tenha consumido até esta data. A ausência de declaração e pagamento do imposto de renda e multa implicará a preservação dos efeitos penais relativos àquelas condutas.
Esse posicionamento da administração resulta em dois problemas, um tributário e um penal. A questão tributária envolve o prazo de decadência tributária. Ainda que a manutenção de recursos no exterior de forma irregular gere para a administração o direito de exigir os tributos devidos sobre tal manifestação de riqueza, há uma limitação temporal: o prazo é de cinco anos, calculado nos termos do artigo 173, inciso I, do Código Tributário Nacional. E é nesse exato sentido o entendimento da administração – para fins tributários, a declaração deve se limitar aos bens e direitos havidos no prazo decadencial[2].
Porém, do ponto de vista penal, o prazo prescricional dos crimes objeto de extinção da punibilidade superam, e muito, o prazo de decadência tributária: são 12 anos para evasão de divisas e crimes contra a ordem tributária e 16 anos para lavagem de capitais. Seria, então, necessário que o contribuinte recolhesse tributo decaído com vistas a obter a extinção da punibilidade (em termos leigos, o “perdão” dos crimes cometidos) dos fatos anteriores ao prazo decadencial? Entendemos que não.
De todos os modelos disponíveis para arregimentar a dita anistia, o legislador escolheu o tributário, criando, assim, um novo fator gerador, uma alíquota, uma multa etc. Deve, portanto, ser coerente com essa escolha. Parece ser esse o motivo de a Receita ter aditado o Perguntas e Respostas sobre o Regime Especial, em sua questão 48, mais precisamente em ter incluído a Nota 01, que determina que o prazo decadencial deve ter como referência a data atual e não a de 31 de dezembro de 2014. Ora, do ponto de vista tributário, se a data inicial fosse 31 de dezembro de 2014 ter-se-ia criado uma regra ad hoc em tema de decadência.
Com muito mais razão, o consectário lógico tributário há de estender efeitos no campo penal. A Lei nº 13.254/2016 traz como pressuposto da extinção da punibilidade penal o pagamento do imposto de renda e da multa respectiva sobre os recursos mantidos de forma irregular no exterior. Essa é a redação literal do caput e parágrafo 1o do artigo 5o da lei. Ora, o pagamento de imposto implica que ele seja devido.
O ministro Cezar Peluso, quando do julgamento do habeas corpus n. 81.611/DF, divisor de águas em matéria de penal tributário (verdadeiro embrião da Súmula Vinculante n. 24), consignou que o delito tributário dependia da redução de crédito tributário devido, ainda que o vocábulo “devido” não constasse expressamente do tipo penal. Entendemos que o racional se aplica aqui diretamente: em sendo norma tributária que gera efeitos penais, está sujeita aos limites do Direito tributário, notadamente no campo da decadência. Para períodos anteriores, a extinção da punibilidade se alcançaria com a descrição das condutas nos campos apropriados.
Recentemente, porém, a procuradora da República Carla de Carli publicou, no jornal Valor Econômico, posição em sentido contrário, o que pode sinalizar a posição do Ministério Público Federal no assunto. Assim, a decisão do quanto retroagir na Declaração para fins de valores consumidos comporta um certo apetite para riscos, considerando a incerteza interpretativa da Lei, à míngua de jurisprudência que poderia nortear o debate.
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[1] Conforme pergunta 39 do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat
[2] Conforme pergunta 46 do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat
Por Davi TangerinoSócio de Trench, Rossi, Watanabe Advogados. Professor Doutor de Direito penal da FGV Direito SP e da UERJ.
Por Tathiane PiscitelliProfessora da FGV Direito SP. Coordenadora do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição. Doutora e mestre em direito pela USP
Fonte: Jota
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