segunda-feira, 30 de junho de 2014

30/06 Irretroatividade e anterioridade no IR: análise da Súmula 584

O presente artigo tem o escopo de analisar a aplicabilidade da Súmula 584 do STF à luz da irretroatividade e da anterioridade, questionando sua aplicação no direito contemporâneo.

1 – INTRODUÇÃO

“Princípios são os alicerces da ciência. Para o Direito, é o seu fundamento, a base que irá informar e inspirar as normas jurídicas”.[1] O Direito Tributário é informado por diversos princípios, sendo pertinentes a este trabalho dois em especial: da anterioridade e irretroatividade.

Pelo princípio da anterioridade, previsto no art. 150, III, alíneas b e c, da CF, tem-se a exigência constitucional de que a lei tributária não gere seus efeitos de maneira imediata. Por obviedade, a lei tributária não pode surpreender o contribuinte. O sujeito passivo deve ter um certo tempo para se preparar para a tributação e seus impactos sobre a atividade econômica.

Originalmente, o texto constitucional de 1988 somente previa a anterioridade do exercício financeiro. Existia uma garantia ao sujeito passivo: um certo tempo de preparação para o novo tributo. Contudo, o Poder Legislativo desenvolveu um péssimo hábito: a edição de legislações tributárias, onerando o sujeito passivo, muito próximo ao final do exercício (novembro, dezembro). Com isso, pela anterioridade do exercício, a regra formal do princípio era respeitada (vigência a partir de janeiro), mas seu objetivo, a proteção ao sujeito, dando-lhe um prazo razoável, acabava sendo ignorado.

Com o objetivo de garantir aquele tempo  para o contribuinte proceder ao seu planejamento, a sua preparação para a nova tributação, a Emenda Constitucional nº 42 introduziu, no art. 150, III, da CF, uma nova alínea, de letra c. Por essa alínea temos uma nova regra de anterioridade: a regra de 90 dias.[2]

Assim, há que se respeitar um prazo mínimo de 90 dias entre a publicação e o dia em que a lei efetivamente entra em vigor.

Já o princípio da irretroatividade, no Direito Tributário, quer dizer que a lei deve ser anterior ao fato gerador do tributo por ela criado ou majorado (CF, art. 150, inc. III, alínea “a”).[3]

Partindo destes pressupostos principiológicos, o presente trabalho pretende tratar dos Recursos Extraordinários nº 183130 e 592396, bem como da aplicabilidade da Súmula 584 do STF à luz da irretroatividade e da anterioridade (art. 150, III, “a” e “b”, da Constituição Federal).

2 – A SÚMULA 584

“Ao Imposto de Renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração.”

“... até o início dos anos oitenta, a doutrina pátria, em coro com a jurisprudência (consagrada na Súmula 584 do STF) sustentava que a lei aplicável para tributar a renda de determinado ano era a que estivesse em vigor no final desse ano, que não seria retroativa, dado que ela precedia o término do período, com o qual se marcaria, temporalmente, a ocorrência do fato gerador; ademais – ecoava a doutrina –, a aplicação dessa lei estaria também respeitando o princípio da anterioridade, pois o tributo, criado sobre a renda do ano X, por lei editada no final do mesmo ano X, só seria cobrado no ano X+1.”[4]

Consoante já explicitado, com o advento da CF/88 e, principalmente, da Emenda Constitucional nº 42, é inconcebível a aplicação da referida Súmula. Contrariando a expectativa de grande parte dos tributaristas e contribuintes, no entanto, o STF tomou, por longo tempo, como referência para verificar a observância ou ofensa ao princípio da irretroatividade, não os fatos econômicos objeto da tributação, mas o momento indicado na lei como aquele em que se deva considerar, formalmente, ocorrido o fato gerador da obrigação tributária. Data vênia, esse tipo de formalismo emburrece a lei, dando interpretação equivocada e gerando enorme insegurança jurídica.

Corrobora este entendimento o douto Juiz Federal Leandro Paulsen, acertadamente assim decidindo no TRF da 4ª Região:

“TRIBUTÁRIO. IR E CSL. LIMITAÇÕES À COMPENSAÇÃO DE PREJUÍZO FISCAL E DE BASE DE CÁLCULO NEGATIVA. POSSIBILIDADE. IRRETROATIVIDADE E ANTERIORIDADE. NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DA SÚMULA 584 DO STF. Toda a tributação relacionada a fatos geradores ditos complexivos (como é o caso do lucro anual) dá-se por períodos de tempo, relativamente aos quais se afere a dimensão quantitativa do fato gerador – a base de cálculo – para fins de apuração do montante devido. As deduções possíveis são aquelas previstas em lei como medida de política fiscal. Fora disso, só se poderia afastar o cômputo daquelas receitas que, por sua natureza, não implicassem renda ou lucro. Inexiste direito adquirido à dedução de prejuízos ou base de cálculo negativa de períodos anteriores. Tanto a irretroatividade como a anterioridade constituem garantias do contribuinte em prol da segurança jurídica. A não-majoração da carga tributária relativa a fatos passados ou situados entre o período de advento da lei nova e o decurso do interstício da anterioridade (de exercício ou nonagesimal) é efeito da irretroatividade e da anterioridade. Ainda que tomado como referência o aspecto temporal da hipótese de incidência tributária, não se tem como entender possível que a modificação na legislação, ocorrida em dezembro, venha a gravar o lucro do mesmo ano seja relativamente ao imposto de renda ou à contribuição sobre o lucro, eis que não atende nem à anterioridade de exercício nem à anterioridade nonagesimal. O momento de cumprimento de obrigação tributária acessória e o próprio prazo para pagamento dos tributos são dados irrelevantes para a análise da irretroatividade e da anterioridade, pois desbordam do fenômeno da incidência. Não há como continuar-se aplicando, pois, a Súmula 584 do STF. Afastam-se as limitações à compensação de prejuízos fiscais e da base de cálculo negativa relativas a exercícios anteriores, impostas pela MP 812, de 30 de dezembro de 1994, na apuração tanto do IRPJ como da CSL relativos ao lucro de 1994, cujos fatos geradores consideram-se ocorridos em 31 de dezembro do mesmo ano.” (TRF4, 1ª T., AMS 199904010963864, Juiz Fed. Leandro Paulsen, set/03)

3 – HISTÓRICO

Em 2006, o Tribunal retomou o julgamento de recurso extraordinário interposto pela União em que se discute a constitucionalidade do art. 1º, I, da Lei 7.988, de 28.12.89, que elevou de 6% para 18% a alíquota do imposto de renda aplicável ao lucro decorrente de exportações incentivadas, apurado no ano-base de 1989 - v. Informativo 111.

O Min. Nelson Jobim, presidente, em voto-vista, negou provimento ao recurso, acompanhando o voto do Min. Carlos Velloso, mas por outro fundamento. Inicialmente, confirmou o Enunciado da Súmula 584 do STF, orientação fixada ao fundamento de que, em razão de o fato gerador do imposto de renda ocorrer somente em 31 de dezembro, se a lei for editada antes dessa data, sua aplicação a fatos ocorridos no mesmo ano da edição não viola o princípio da irretroatividade. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Eros Grau.[5]

Em 2007, após o voto-vista do senhor Ministro Eros Grau, conhecendo e dando provimento ao recurso, no que foi acompanhado pelo Senhor Ministro Menezes Direito, e do voto do Senhor Ministro Joaquim Barbosa, acompanhando o voto do relator, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Cezar Peluso.

Por fim, conforme consta no Andamento Processual no site do Supremo Tribunal Federal, em 22.03.2013, houve a devolução dos autos para julgamento. Aparentemente, o STF tem a oportunidade de enfim superar por completo a equivocada Súmula 584.

A bem da verdade, sob a égide da Constituição de 1988, a súmula continuou a ser aplicada, até o julgamento do RE 587.008, em fevereiro de 2011. A referida decisão diz respeito à Contribuição Social sobre o Lucro (CSL), mas se assenta em premissas que são aplicáveis a todos os tributos e colidem frontalmente com a jurisprudência consolidada na Súmula 584. No precedente referido, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dessa majoração, não apenas por ser retroativa, mas também por ter desconsiderado a anterioridade nonagesimal.

Embora ainda existam decisões monocráticas calcadas no teor da Súmula, espera-se que a revogação expressa da Súmula 584 seja mera questão de tempo, pois o Supremo Tribunal Federal deve primar pela coerência e refutar todas as ofensas aos princípios da irretroatividade tributária e da anterioridade; fiel à orientação firmada no julgamento do RE 587.008.[6]

4 – RETROATIVIDADE IMPRÓPRIA

O entendimento que culminou na edição da súmula tornou possível que uma lei tributária gravosa editada em 31 de dezembro fosse aplicada retroativamente, alcançando os rendimentos auferidos durante todo o ano.

Conforme leciona o susodito magistrado, Andrei Pitten Velloso,  a Súmula 584 do STF permitia a retroatividade imprópria do Imposto de Renda, caracterizada pela retroação da lei para atingir a renda auferida ainda antes do início da sua vigência, desde o começo do período de apuração. Dela se diferencia a retroatividade própria, verificada quando a lei retroage para alcançar períodos de apuração findos anteriormente ao início da sua vigência, que é indiscutivelmente lesiva ao princípio da irretroatividade tributária. Esboça o seguinte quadro comparativo:

               

Assim, em que pese se tratar de retroatividade imprópria, o prejuízo ao contribuinte continua claro e incontroverso.

Como é sabido, a obrigação tributária é criada pela previsão legal (hipótese de incidência) somada a sua concretização (fato gerador). No caso ora discutido, por ser o Imposto de Renda um tributo “de período”, mesmo que a hipótese de incidência se aperfeiçoe ao término do período, leva em consideração todo este espaço temporal. Ora, ainda que o fato gerador não esteja consumado, este já se iniciou, e os fatos econômicos tributáveis dele decorrentes são relevantes na aplicação da lei. Desta premissa é que advém a impossibilidade da cobrança de uma alíquota majorada sobre todo o período: o fato gerador delongou-se por todo um espaço temporal, inclusive anterior à lei.

5 – CONCLUSÃO

Diante da exaustiva exposição, resta clara a impossibilidade de continuar se aplicando a Súmula 584, pois absolutamente incompatível com a Constituição da República Federativa do Brasil, que dispõe:

Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

III - cobrar tributos:

a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;

b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;

c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;

Da análise do disposto, conclui-se que mesmo que prossiga sendo tomado como critério, para a análise da irretroatividade e da anterioridade, exclusivamente o aspecto temporal da norma tributária impositiva, jamais haveria justificativa plausível para entender que inocorre ofensa à anterioridade. Considerado ocorrido o fato gerador em 31 de dezembro, de qualquer modo não seria alcançado pela lei publicada durante o ano, cuja aplicação fica impedida até 1º de janeiro seguinte.

[1] André Horta Moreno Veneziano.

[2] CASTELLANI, Fernando F. Direito Tributário - Coleção OAB Nacional - Primeira Fase, Vol.07, 2009, p. 52-53.

[3] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário, 28ª edição. Malheiros, 2007, p. 67.

[4] AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. Saraiva, 2ª ed., 1998, p. 124

[5] Informativo nº 419. Brasília, 13 a 17 de março de 2006 - Nº 419. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo419.htm> Acesso em 25/03/2014, às 14:37.

[6] Andrei Pitten Velloso - Retroatividade imprópria: superação da Súmula 584 do STF. Disponível em <http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/retroatividade-impropria-superacao-da-sumula-584-do-stf/7585> Acesso em 25/03/2014, às 15:54.

por Marina Almeida Morais

Fonte: Jus.com.br

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