quinta-feira, 26 de junho de 2014

26/06 Brasil só será potência regional com a revisão da tributação de controladas

Os meninos assistem a todas as partidas da Copa e, nos intervalos, jogam bola pela casa. O dia inteiro, respiramos Copa do Mundo. Vibramos com o Brasil e com a perspectiva de um título, para eles o primeiro. Gostamos do futebol bem jogado e essa Copa, até agora, tem proporcionado belos espetáculos ofensivos. Muitos gols, muitas viradas, muitas surpresas. Seguindo seu monarca, abdicaram os espanhóis, duplamente derrotados pela armada holandesa e pelos rebeldes chilenos. Quem ocupará o agora vago trono do campeão? Candidatos não faltam. Brasileiros, alemães, argentinos e holandeses são apontados como favoritos. Teremos surpresas? Não sei. A possibilidade (real) de Davi vencer Golias (vejam o exemplo da brava Costa Rica), é que faz ser o futebol o mais emocionante dos esportes, capaz de convergir corações e mentes de todo o mundo para os gramados brasileiros.

E o mais surpreendente tem sido a presença maciça dos torcedores das Américas. Quem vive no Rio de Janeiro pode presenciar a invasão chileno-argentina. Nossos vizinhos vieram apoiar suas seleções como manda o figurino. Verdadeiros “libertadores” tomaram a cidade em seus trailers, seguindo a máxima “com a seleção onde a seleção estiver”. Não podemos nos esquecer, ainda, dos bravos uruguaios, que derrotaram ingleses e italianos. Junto com eles já seguiram para as oitavas os mexicanos, colombianos e a surpreendente Costa Rica, “pura vida”. Segue com chances o Equador e mesmo a eliminada Honduras conseguiu finalmente marcar um gol. Definitivamente nessa Copa do Brasil somos o “centro” das Américas.

Essa centralidade experimentada pelo Brasil nas últimas semanas — e que prosseguirá até meados de julho — leva-nos à reflexão sobre qual o papel que o país pretende desempenhar na região. Constata-se infelizmente, que enquanto no futebol atraímos nossos vizinhos, no plano empresarial lhes damos as costas, perdendo inclusive a oportunidade de aqui situar os polos de coordenação dos investimentos regionais, pela atribuição às subsidiárias brasileiras de multinacionais das funções de holding de controle das participações societárias em países da América Latina. O posto de hub preferencial para concentração de investimentos na América Latina tem sido gradativamente perdido para outros países e isso, explica-se, a nosso ver, por duas razões.

A primeira razão do desincentivo à concentração dos investimentos regionais em estruturas societárias brasileiras é a sistemática de tributação automática dos lucros de sociedades controladas e coligadas no exterior, inaugurada pela Lei 9.249/95, e mantida pelo artigo 74 da MP 2.158-35/01. Mais de dez anos depois de uma longa discussão inconclusa junto ao Supremo Tribunal Federal na ADI 2.588/DF1, o Poder Executivo, no afã de arrecadar, perdeu uma excelente oportunidade de fomentar o papel do Brasil como potência regional.

Isto porque a nova sistemática de tributação adotada pela Lei 12.973, de 13 de maio de 2014, lei de conversão da MP 627, de 11 de novembro de 2013, consegue ser pior que a anterior, já que tributa automaticamente não só os lucros das controladas diretas no exterior, como também os das controladas indiretas (artigo 76 e ss.). Assim, por exemplo, uma empresa brasileira que controle diretamente uma sociedade holding na Espanha (país muito utilizado para essas funções, em virtude da extensa rede de tratados tributários e de proteção de investimentos com países latino-americanos), que, por seu turno, controle três sociedades lucrativas (Chile, Colômbia e Argentina) e duas com prejuízos (Equador e Uruguai) (controladas indiretas), será obrigada a tributar automaticamente no Brasil os lucros dessas três empresas lucrativas, mas não poderá compensá-los com as perdas registradas nos dois últimos países.

O efeito redutor das perdas no conjunto de participações do grupo societário está sendo totalmente ignorado pelo Fisco brasileiro. Tributa-se agora, automaticamente, como lucro da controladora algo que poderá nunca, jamais, vir a sê-lo. Os acionistas da controladora brasileira veem o governo brasileiro apropriar-se, pela via de um imposto que deveria incidir apenas e tão somente sobre acréscimos patrimoniais efetivos e disponíveis (artigo 43 do CTN), de parcela dos lucros de controladas indiretas que, no caminho natural da via das participações societárias, destinar-se-iam à cobertura de perdas. Isso, sem falar, na possibilidade de dar-se destinação diversa aos lucros, como o reinvestimento. Se na sistemática anterior a discussão jurídica centrava-se na ausência de disponibilidade sobre os lucros das controladas diretas, na nova sistemática serão mais longos anos de discussão a respeito da evidente ausência de um efetivo acréscimo patrimonial.

É certo que a nova lei prevê em seu artigo 78 um regime de consolidação dos lucros e prejuízos ao nível da controladora, mas o sistema é temporário (até 2022) e demasiadamente restrito, seja no plano subjetivo (domicílio da controlada), seja no plano objetivo (natureza das rendas e alíquota nominal mínima de 20%), com requisitos discriminatórios de muito difícil atendimento e geradores de grande incerteza para os particulares.

Incompreensível, ainda, é o tratamento VIP dispensado pela nova lei a certas atividades de empresas do setor do petróleo e do gás natural (dispensados da tributação automática — artigo 77, parágrafo 3º) e dos setores de alimentação, bebidas, construção civil e infraestrutura (beneficiários de um crédito presumido de 9% — artigo 87, parágrafo 10). Muito melhor para o reforço da internacionalização do Brasil que o incentivo fosse dado indiscriminadamente ou, então, ao menos em função do país de domicílio das empresas investidas. Porque não prestigiar os investimentos em países da América latina? Pensando melhor, porque não incentivar também a expansão para a África, considerada a “última fronteira”?

Por fim, o que nos deixa mais perplexos, é a insistência do Poder Executivo em descumprir os compromissos internacionais que celebrou. Aparentemente protegido por uma manobra semântica, o Fisco diz que prosseguirá tributando automaticamente os lucros de sociedades estrangeiras, conduta vedada pelo artigo 7º dos tratados celebrados pelo Brasil segundo o Modelo OCDE, conforme orientação já fixada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.325.709/RJ 2.

Com efeito, o artigo 77 da Lei 12.973/2014 dispõe que deve ser computada na apuração do lucro real e na base de cálculo da CSLL “a parcela do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior equivalente aos lucros por ela auferidos antes do imposto sobre a renda, excetuada a variação cambial”. A “prova do crime” que o objeto da tributação é constituído pelos lucros das controladas é o parágrafo 1º desse mesmo artigo, verbis: “A parcela do ajuste de que trata o caput compreende apenas os lucros auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior”.

Não precisa dizer mais nada para constatar que a tributação incide sobre os lucros (não distribuídos) das controladas diretas e indiretas, que estão — em havendo tratado —submetidos à competência tributária exclusiva do respectivo país de domicílio.

A segunda razão do receio empresarial é a insegurança jurídica que se revela nas atividades de interpretação das leis fiscais, de aplicação da lei tributária pelos órgãos de lançamento aos casos concretos e de julgamento pelas instâncias administrativas. Citaremos como exemplos temas já abordados em colunas anteriores.

No que concerne à intepretação das leis fiscais, o caso mais grave em nossa história recente foi a pretensão de tributação retroativa dos dividendos distribuídos entre 2008 e 2013 que excedessem ao chamado “lucro fiscal” preconizada pelo Parecer 202/2013, da Coordenadoria-Geral de Assuntos Tributários (CAT) da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e afirmada pela Instrução Normativa 1.397, de 16 de setembro de 2013 (IN 1.397/2013).3

No que concerne à aplicação da lei tributária pelos órgãos de lançamento, todos os profissionais que militam no direito tributário sabem que toda e qualquer operação de reorganização societária tem sido questionada pelo Fisco, notadamente quando tenha de algum modo envolvido a apuração de ágio. Qualquer operação que envolva ágio está fadada à perseguição fiscal. Rotulou-se o aproveitamento fiscal de ágio de simulação. Nenhum ágio escapa dos Torquemadas do século XXI.4

No que concerne às decisões dos órgãos de julgamento, nada justifica as súbitas mudanças de orientação que já haviam se firmado favoravelmente aos contribuintes. Exemplo frisante foi o caso da inaplicabilidade da “trava” de 30% no período-base de extinção da pessoa jurídica, posição que havia se consolidado de forma reiterada e pacífica na CSRF, órgão que se pretende uniformizador da jurisprudência administrativa. Tal orientação que já servia de base para a emissão de opiniões de inúmeros profissionais, de repente, como num passe de mágica, foi revertida pelo voto de qualidade.5

Diante desse cenário, qual o empresário que vai ter confiança em estabelecer no Brasil a holding de seus investimentos na América latina?

Um país em que o regime tributário dos investimentos no exterior e, por conseguinte, nos países da região penaliza o empresário porque tributa automaticamente uma renda de terceiro indisponível, que poderá nunca ser efetivamente auferida, e quando se pensa ter a proteção dos tratados, artifícios semânticos são criados com o claro propósito de contornar as regras convencionais.

Um país onde se ameaçou tributar retroativamente dividendos distribuídos pelas diversas empresas da região, recebidos no Brasil e redistribuídos entre 2008 e 2013; onde as operações de reorganização societária envolvendo eventuais ágios capturados em empresas estrangeiras serão ferozmente autuadas, com extorsivas multas e sanções criminais, apenas porque em algum momento proporcionaram redução de carga tributária; e, ainda, onde operações aparentemente chanceladas pela jurisprudência, da noite para o dia, o deixaram de ser, criando contingências que devem ser provisionadas.

Como justificar a escolha do Brasil?

Essas reflexões fazem-me recordar das palavras de um grande amigo venezuelano, companheiro de congressos internacionais, Alberto Benshimol, que dizia que admirava o Brasil e os demais países da América Latina, pois, podíamos comentar decisões em matéria tributária. Concordando ou divergindo, havia decisões a comentar, enquanto ele, como representante da Venezuela, nada tinha a dizer, pois lá já não havia mais decisões.

Triste cenário de ausência jurídica em nosso vizinho. Que nos sirva de alerta.

______________

3 Cfr. Nossas colunas (Parecer da PGFN representa risco de extorsão tributária e Instrução Normativa da Receita abala segurança jurídica).
4 Sobre essas discussões cfr. nossa coluna  
5 Sobre essa radical mudança da jurisprudência cfr. nossa coluna

por Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.

Fonte: Conjur

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