Os sinais que vêm do Supremo Tribunal Federal estão causando grande ansiedade no meio empresarial por conta das ameaças da edição da Súmula Vinculante 69, que pretende acabar com a guerra fiscal do ICMS em nosso país.
No dia 31 de maio foi noticiado que o STF aguardaria pelo menos mais dois meses para sua edição, que correspondem ao recesso forense alargado pela Copa, e que o Congresso Nacional aproveitaria este intervalo para legislar a respeito — o que, convenhamos, não é muito crível, em face do mesmo tipo de recesso e das eleições que estão na porta. A legislação que se aguarda proveniente do Congresso (parece uma afirmação redundante, mas o Poder Judiciário tem legislado tanto que agora é necessário afirmar de onde deve provir a legislação...) é o Projeto de Lei Complementar 130/14, de autoria da Senadora Lucia Vania (PSDB/GO), cujo relator é o senador Ricardo Ferraço (PMDB-ES) que elimina a necessidade de unanimidade do Confaz para decidir sobre benefícios fiscais.
No dia 3 de junho circulou a informação de que o Presidente da Corte, ministro Joaquim Barbosa, havia enviado para a Secretaria de Documentação do STF pedido de redação da proposta de Súmula Vinculante 69 para submeter ao Plenário — o que pode até ocorrer no prazo de 60 dias acima mencionado. Já existe Parecer do Ministério Público federal a favor da edição da Súmula. Ou seja, as engrenagens do STF estão se movendo e o Congresso encontra-se com outros focos de atenção, em especial a reeleição de grande parte de seus membros. A expectativa é que a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprecie a matéria na sessão do dia 8 de julho. Aguardemos.
Quais os pontos centrais que devem ser analisados nesse imbróglio que envolve todos os Estados da Federação e os Poderes da República?
Um deles se encontra na estrutura do ICMS devido nas operações interestaduais. Uma parte desse imposto fica para o estado de origem e outra para o estado de destino da mercadoria. Isso possibilita que os estados de onde se origina a mercadoria concedam incentivos fiscais à margem da deliberação unânime do Confaz, requisito necessário em razão da vetusta Lei Complementar 24/75.
Aí surge a primeira questão: Como o estado de origem renuncia ao recebimento do ICMS que lhe é devido, isto é, o faz com referência a suas próprias receitas, e não a de outros, onde estaria o problema? Ele reside na disputa geográfica pela atração de mais investimentos. Não se trata de um problema eminentemente tributário, mas financeiro e político. O contribuinte continuará a pagar o tributo embutido no preço das mercadorias, mas os estados se digladiam pela atração dos investimentos privados, o que gera distúrbios no “status quo” federativo. Na “efetiva operação em si” não há nem mesmo perda de receita tributária, pois, repete-se, o que o estado de origem renuncia faz parte de sua receita própria. É uma questão de Federalismo Fiscal Cooperativo, que, aliás, já está capenga há muito tempo.
Seria melhor que o ICMS interestadual fosse integralmente cobrado no estado de destino da mercadoria? Certamente que sim, obedecido certo prazo de transição, pois economicamente pretende-se que o ICMS seja um tributo que incida sobre o consumo da mercadoria, o que ocorre no estado de destino, e não naquele de origem do bem. Porém isso já vem sendo debatido no Congresso e no Planalto há quase duas décadas, em várias propostas de reforma tributária, mas não consegue aprovação política. Ao invés de tentarmos aproximar economicamente os Estados, como a União Europeia fez com os países, trilhamos rumo contrário.
Por outro lado, a exigência de unanimidade pelo Confaz é constitucional? A Lei Complementar 24 é de 1975, e há dúvidas se esta exigência foi recepcionada pela atual Constituição. Observe-se que a exigência de unanimidade não existe nem mesmo para alterar a Constituição! As propostas de emenda constitucional devem ser aprovadas por 3/5 dos votos dos membros do Congresso Nacional. Todo o processo legislativo possui regras de aprovação inferiores a esta proporção de 3/5. Logo, será constitucional esta exigência?
Um grupo de especialistas do qual faziam parte Paulo de Barros Carvalho, Ives Gandra da Silva Martins, Everardo Maciel e Marco Marafon (articulista da ConJur) recomendou a manutenção da regra da unanimidade nas deliberações do Confaz, arguindo inclusive que sua alteração feriria a Constituição. Não concordo com esse entendimento, conforme disse em outra oportunidade. Encontro-me mais próximo da opinião de Regis Fernandes de Oliveira para quem a regra da unanimidade não foi recepcionada pela Constituição de 1988. Diz ele que “o órgão representativo da federação é o Senado (...). Para as deliberações do Senado objetivando a manutenção da unidade da federação em relação ao poder tributário, há necessidade de decisão por dois terços de seus membros. Daí a incongruência não admitida pela Constituição Federal de que as decisões do Confaz se façam por unanimidade. Ora, se o órgão de representação política dos estados pode e deve decidir por maioria absoluta ou de dois terços, (...) nenhuma lógica estrutural ou sentido jurídico tem a exigência de unanimidade prevista para as deliberações do Confaz, em relação à outorga de benefícios. Não se deduz, com todo respeito a vozes divergentes, da arquitetura constitucional que possa lei ou mesmo lei complementar (cuja diferença é apenas de conteúdo e não de hierarquia) estabelecer a exigência de unanimidade para deliberação de órgão administrativo, o que pode resultar em prejuízo a qualquer unidade federativa que é ente federativo e político. A regra da unanimidade é incompatível com o Estado federativo que pressupõe, até mesmo por decorrência histórica, a desigualdade de seus integrantes. Daí se conclui a absoluta inconstitucionalidade do parágrafo 2º do artigo 2º da Lei Complementar 24/75.”
Pela lógica da unanimidade, o Confaz se torna o dono do ICMS e não cada Estado individualmente considerado. O Confaz tem um papel de harmonização fiscal em um Estado Democrático de Direito, e não de Coação Fiscal, própria do período em que foi criado.
Apenas para prosseguir na análise, imagine-se que a Súmula Vinculante venha a ser editada reforçando a unanimidade do Confaz por entender que a Lei Complementar 24/75 foi recepcionada pela Constituição. Quem acredita que acabará a guerra fiscal? Entendo que entraremos apenas em outra fase da disputa. Se hoje ela existe às escâncaras, através de atos normativos publicados nos jornais, esta nova fase, pós-Súmula, será do reinado dos regimes especiais. Explico para quem não acompanha o dia a dia da área tributária estadual, regime especial é uma daquelas palavras-bonde, nas quais cabe tudo que se pretende que seja alterado do regime normal. Assim, hoje, se uma empresa deseja obter uma redução da carga fiscal, uma norma é publicada com um mínimo de generalidade, a fim de evitar favorecimentos indevidos entre contribuintes que se encontram no mesmo Estado. Com os regimes especiais o benefício fiscal poderá não ser concedido de forma isonômica ou com publicidade, pois esta espécie de regime fiscal especial nem sempre sai publicada no Diário Oficial e muitas vezes é individualizada para cada empresa. Assim, o que está ruim corre o risco de piorar, como foi advertido por Renato Silveira em texto que escrevemos a quatro mãos. Ao invés de termos o primado da transparência fiscal teremos o da opacidade fiscal.
Suponhamos que, mesmo assim, com todos os problemas acima expostos, o STF decida editar a Súmula Vinculante 69. Quais os demais inconvenientes? Entende-se que deva haver modulação de seus efeitos por vários motivos que já tratei em coluna neste ConJur. Resumindo o que lá escrevi, entendo que os efeitos da declaração de inconstitucionalidade devem respeitar a segurança jurídica das relações havidas com terceiros de boa-fé. A retroação, fruto da declaração de inconstitucionalidade de uma norma, não pode desfazer os efeitos jurídicos concretizados ao longo do tempo com terceiros que tenham obedecido ao que manda a lei, apenas posteriormente declarada inconstitucional. Afinal, as empresas (terceiros) apenas cumpriram o que a lei ordenava — e não podem ser penalizadas por terem cumprido exatamente o que a lei ordenava —, uma vez que ela estava em pleno vigor e projetando seus efeitos sobre a sociedade.
Mauro Cappelletti analisa hipótese que cabe perfeitamente ao caso sob análise, quando diz que: "Em matéria civil, ao invés, e, às vezes, também em matéria administrativa, se tem preferido respeitar certos efeitos consolidados, produzidos por atos fundados em leis depois declaradas contrárias à Constituição; e isto em consideração ao fato de que, de outra maneira, se teriam mais graves repercussões sobre a paz social, ou seja, sobre a exigência de um mínimo de certeza e de estabilidade das relações e situações jurídicas.”
Observa-se que a situação acima descrita por Cappelletti é a mesma que nos defrontamos no Brasil. Os benefícios fiscais foram concedidos pelos estados há muitos anos e muitas relações socioeconômicas foram criadas e consolidadas ao longo desse período. É adequado, em nome da Segurança Jurídica — ou, como usa Cappelletti, da paz social —, que certos efeitos consolidados não sejam afetados por esta retroação. Registra-se que o STF já adotou este tipo de solução em caso relatado pelo ministro Leitão de Abreu, que à época compunha a 2ª Turma juntamente com os ministros Xavier de Albuquerque, Cordeiro Guerra e Moreira Alves (RE 79.343-BA, 31/5/77). Neste julgado foi asseverado: “A lei inconstitucional é um fato eficaz, ao menos antes da determinação de inconstitucionalidade, podendo ter consequências que não é lícito ignorar. A tutela da boa fé exige que, em determinadas circunstâncias, notadamente quando, sob a lei ainda não declarada inconstitucional, se estabeleceram relações entre o particular e o poder público, se apure, prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito objetivo.”
Protege-se aquele que agiu acreditando na legitimidade da legislação que se encontrava vigente à época da fruição de seus efeitos. Quanto mais tiver demorado a retirada da norma do sistema jurídico, maior sua possibilidade de gerar efeitos concretos permanentes, de difícil reversibilidade. O risco é da ampliação da litigiosidade sob este forte argumento.
Desta forma, na hipótese de o Supremo Tribunal Federal decidir pela edição da Súmula Vinculante 69, sugere-se que module largamente seus efeitos para o futuro, tendo em vista razões de segurança jurídica.
Uma possibilidade seria adotar a seguinte regra de vigência: a partir do 1º dia posterior a 12 meses de sua edição. Isto permitirá às empresas afetadas organizar sua atividade empresarial, rever sua estrutura de custos e a estratégia das decisões de investir.
Fica a sugestão.
por Fernando Facury Scaff é advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados; é professor da Universidade de São Paulo e livre docente em Direito pela mesma Universidade.
Fonte: Conjur
Nenhum comentário:
Postar um comentário