O principal objetivo da lei de recuperação e falências brasileira (LRF) é promover a superação da crise econômico-financeira de sociedades empresárias e empresários, criando um ambiente para que devedores, credores e demais partes interessadas possam alinhar os rumos do negócio e dos seus respectivos ativos.
No âmbito do procedimento de recuperação pela via judicial, em linhas gerais, a ideia é que, após o protocolo e deferimento do pedido de processamento, haja uma fase de verificação de créditos e, paralelamente, o devedor inicie múltiplas rodadas de negociação com seus credores, a fim de que haja um amplo consenso com relação à estrutura do plano de recuperação a ser submetido e votado em assembleia geral. Tudo isso devidamente supervisionado pelo administrador judicial e pelo juízo competente.
O amadurecimento da matéria pela doutrina e tribunais pátrios pode afigurar-se vantajoso para todas as partes envolvidas
Para viabilizar tais acordos, os principais credores são logo contatados pelos assessores jurídicos e financeiros, para discutir as condições de apoio à decisão da sociedade de ajuizar seu procedimento recuperacional e de anuência ao plano de reestruturação. Esse processo de negociação pode envolver injeção de capital novo na sociedade com eventual inclusão de novas garantias, manutenção do fornecimento dos insumos para a sociedade, necessidade de aval do credor para determinadas decisões empresariais durante a recuperação, contratação de um CRO (chief restructuring office) que traga mais confiança em termos de governança corporativa, e até mesmo a proibição de o credor votar em outro plano que venha a ser apresentado. Enfim, tudo para que os interesses de ambos os lados fiquem alinhados e proporcionem um soft landing do procedimento recuperacional.
Esse tipo de negociação direta entre devedor e seus principais credores altera em certa medida a sistemática positivada pela LRF. Contudo, é indubitável que, se bem executados, os RSAs têm a aptidão de potencializar os objetivos da lei, já que não é crível pressupor que todas as negociações capitaneadas pelas recuperandas se deem perante os tribunais.
Justamente pela capacidade de impactar decisivamente o curso do procedimento recuperacional é que, ao redigir-se um RSA, ao menos, dois pontos devem ser objeto de maior atenção. O primeiro é o efetivo poder transferido contratualmente a um credor sobre o devedor. Isso pode ocorrer, por exemplo, quando aquele passa a ter (e exercer) de fato o controle sobre a administração da sociedade e o teor do plano a ser apresentado, limitar a amplitude de negociação com outros credores, ou ainda pela imposição da contratação de CRO, em especial quando este profissional é instruído a tomar decisões que visem preponderantemente aos interesses dos credores.
O segundo refere-se ao fluxo de informações entre todos os envolvidos no procedimento de recuperação, pois ao mesmo tempo em que o RSA pode favorecer o soerguimento da recuperanda por meio de uma atuação coordenada entre credores e devedor, também tem o condão de afastar da mesa de negociação credores cujos créditos, individual ou coletivamente considerados, não afetam a sorte do plano de recuperação – embora a LRF adote o princípio majoritário em seus conclaves.
Nos Estados Unidos, onde esse fenômeno foi recentemente qualificado como bankruptcy’s quiet revolution (Baird, 2016), discute-se a conveniência de se regular tais acordos, mesmo já existindo regras como a do 11 USC parágrafo 1.125 (b), responsável pela proibição da prospecção de votos após o protocolo do pedido de recuperação judicial, enquanto não for apresentada uma versão do plano e da aprovação das notas explicativas pelo juiz da recuperação.
Realmente, a questão não é simples. Nem nas Cortes norte-americanas está suficientemente claro qual o escopo e forma indicados para um RSA. No conhecido caso In re Innkeepers USA Trust, apenas para dar um exemplo, o tribunal de Nova York anulou um RSA ao considerar, entre outros, que o acordo limitava o alcance de ulteriores negociações da recuperanda com os seus credores.
Sob a ótica da nossa LRF, o devedor não possui semelhante restrição ou mesmo obrigação de exibir aos demais credores, partes interessadas e, principalmente, ao juiz que conduz o seu caso, o teor de acordos com credores específicos, embora o administrador judicial e o comitê de credores, em tese, possam instar o devedor a fazê-lo.
É por isso que, pela importância inerente a esses ajustes bilaterais e as possíveis consequências advindas de seus termos, o amadurecimento dessa matéria pela doutrina e tribunais pátrios, especialmente no que tange ao grau de transparência e forma de utilização, pode afigurar-se vantajoso para todas as partes envolvidas, porquanto capaz de evitar que o devedor tenha suas expectativas quebradas por ulteriores decisões judiciais acerca da validade do acordo, bem como mitigar eventual assimetria de informação em relação aos demais titulares de créditos.
por João Carlos Areosa é mestre em Direito Processual Civil pela PUC-SP, LL.M. pela University of Chicago Law School e advogado do BMA – Barbosa Müssnich Aragão
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br
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