O direito positivo apresenta-se como objeto cultural, criado pelo homem, construído num universo de linguagem. Trata-se de sistema autopoiético que regula, ele próprio, sua produção e transformação. Não obstante sua operatividade, consistente na incidência normativa, dependa de atos-de-fala, ou seja, da enunciação pela autoridade competente. Tais atos devem ser praticados segundo critérios estabelecidos pelo próprio sistema jurídico. As autoridades mesmas somente recebem esse qualificativo porque assim previsto pelo direito, devendo agir nos exatos limites da competência que lhes foi atribuída.
Essa tomada de posição leva-nos a evidenciar o caráter constitutivo da linguagem jurídico-positiva. O direito admite e conhece como reais apenas os fatos constituídos na forma linguística prevista no ordenamento posto, operando-se, na lição de Paulo de Barros Carvalho (Direito tributário: fundamentos jurídicos da incidência), pela incidência da linguagem prescritiva do direito positivo sobre a linguagem da realidade social, assim juridicizando fatos e condutas, desenhando o campo da facticidade jurídica.
As premissas, acima expostas de forma sintética, formam um aparato fundamental para que se possa investigar a abrangência, limites e possibilidades do “planejamento tributário”, fazendo-o à luz do hodierno direito positivo brasileiro.
Como anotara Vilém Flusser (Língua e realidade), “a língua é, forma, cria e propaga realidade”. E isso se aplica, em tudo, ao âmbito do ordenamento. Dependendo de como o negócio jurídico é efetuado, ou seja, conforme a linguagem jurídica empregada, estaremos diante de um fato jurídico tributário ou não. Sendo diversos os procedimentos, diferentes serão as operações de direito, ainda que os respectivos efeitos sejam iguais. Apresenta-se, aqui, o “paradoxo do condicional”, em que, sendo verdadeiro o antecedente, o consequente também o será, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira, isto é, se o consequente for verdadeiro, nada obsta que o antecedente não o seja (ECHAVE, Delia Teresa; URQUIJO, María Eugenia; GUIBOURG, Ricardo. Lógica, proposición y norma). Isso significa que não há como admitir a configuração de um negócio jurídico ou outro tomando como suporte, unicamente, os efeitos que dele se irradiam.
Essas anotações, aliadas ao princípio da estrita legalidade tributária (artigo 150, I, da CRFB/88), bem como à vedação da exigência de tributo com suporte em analogia (artigo 108, parágrafo 1º, do CTN), demonstram ser inconcebível a desconsideração de um ato ou negócio jurídico pela singela circunstância de seus efeitos econômicos serem idênticos aos de outro ato ou negócio, sujeito a carga tributária mais elevada.
Anotações desse jaez já permitem entrever a injuridicidade do chamado “propósito negocial”, entendido como os motivos de caráter econômico, comercial, societário ou financeiro que justifiquem a adoção dos negócios pelo contribuinte. Este não serve como critério para determinar a licitude ou ilicitude de qualquer ato ou negócio jurídico. Como já lecionava Antônio Roberto Sampaio Dória (Elisão e evasão fiscal), é imprescindível identificar se os meios utilizados para diminuir o ônus tributário são ou não lícitos, sendo irrelevantes os fatores considerados pelo contribuinte para adotar tal medida: “A motivação subjetiva (certa ou errada) que incitou o contribuinte a minimizar seus custos tributários é indiferente ao direito, importando objetivamente apenas se o que ele concretizou deflagra efetivamente as antecipadas consequências vantajosas na esfera fiscal”.
Importa, para fins de aplicação do direito, a perfeita consonância entre a hipótese de incidência posta na norma tributária e o fato concretizado pelo particular. Caso inocorra esse enquadramento, não se admite o desprezo da forma negocial adotada para, simplesmente, considerar seus efeitos econômicos, por serem semelhantes aos dos negócios previstos na hipótese normativa.
Por isso mesmo, entendemos que no sistema constitucional tributário brasileiro descabe falar-se em “ilícitos atípicos”. Segundo Manuel Atienza e Juan Ruiz Manero (Ilícitos atípicos), configurariam “ilícitos típicos” as condutas contrárias a uma regra, sendo “ilícitos atípicos” os atos contrários a princípios que fundamentam regras. Tal distinção não encontra guarida no direito positivo brasileiro, pois, se assim fosse, de nada serviria a rígida repartição das competências tributárias, uma vez que, mediante o argumento de concretização do princípio da capacidade contributiva, qualquer fato denotativo de riqueza poderia vir a ser objeto de exigência fiscal.
O critério distintivo entre “elisão” e “evasão fiscal” deve consistir em elemento jurídico, atinente à licitude ou ilicitude nos atos praticados com escopo de redução da carga tributária. Se lícitas as práticas, estaremos diante de verdadeiro planejamento tributário; se ilícitas, teremos configurada a evasão fiscal, com possibilidade de desconsiderarem-se os negócios praticados e consequente exigência do tributo que deixou de ser recolhido e seus consectários. Nessa segunda hipótese (evasão), tem-se afronta a normas jurídicas tributárias, mediante a prática de atos simulatórios.
Conforme consolidado na doutrina civilista, “simular” significa disfarçar uma realidade jurídica, encobrindo outra que é efetivamente praticada. Consiste na declaração enganosa da vontade, visando a produzir efeito diverso daquele que a declaração real da vontade acarretaria. No negócio simulado, as partes fingem um negócio que na realidade não desejam (artigo 167, parágrafo 1º, do Código Civil).
Aplicando esses conceitos ao campo do direito tributário, conclui-se que os atos tendentes a ocultar ocorrência de fato jurídico tributário configuram operações simuladas, pois, não obstante a intenção consista na prática do fato que acarretará o nascimento da obrigação de pagar tributo, este, ao ser concretizado, é mascarado para que aparente algo diverso do que realmente é. Esses são pressupostos indeclináveis da desconsideração das operações jurídicas praticadas pelos contribuintes, devendo estar demonstrados por meio de provas constituídas pela Administração.
Não tem sentido, desse modo, falar-se na exigência de propósito negocial de caráter econômico, consistente na presença de motivos de natureza comercial ou administrativa que superem os benefícios de eventual redução da carga tributária. O único “propósito negocial” suscetível de ser considerado em nosso ordenamento é aquele de caráter jurídico, significando a correspondência entre a operação realizada e as provas que sustentam essa operação, de modo que fique demonstrado que o negócio jurídico alegado foi realmente praticado.
É perfeitamente possível a adoção de medidas que impliquem menor carga tributária, desde que estas sejam efetivamente implementadas. Por exemplo, se pretender-se cindir uma empresa para que se tenha economia de tributos, o negócio jurídico surtirá seus efeitos de direito se houver, de fato, a segregação de atividades empresariais, restando comprovado tratarem-se de unidade autônomas, devidamente estruturadas para o desempenho de seus objetos sociais. Em outras palavras, como pontuado em decisão administrativa (CARF, Ac. nº 104-21.726), o contribuinte deve assumir as consequências e ônus das formas jurídicas por ele escolhidas.
No exercício da atividade de fiscalização, compete à autoridade administrativa investigar os fatos ocorridos, colhendo, com observância às regras pertinentes ao direito das provas, elementos que possibilitem a formulação de juízo quanto à incidência das normas tributárias. Ao desempenhar tal função, deve ater-se a apurar os fatos praticados, averiguando se estes preenchem as linhas definitórias circunscritas na hipótese normativa, de modo que, havendo o perfeito quadramento, nasce a obrigação tributária, mediante seu relato na linguagem prevista pelo direito positivo; existindo algum ponto dissonante, a percussão jurídica fica obstada.
Em virtude do princípio da autonomia da vontade, que impera no âmbito do direito privado, é permitido ao particular a adoção das mais variadas estruturas negociais. Para atingir o resultado econômico pretendido, está habilitado a escolher livremente o arcabouço negocial que melhor lhe aprouver, de forma que os custos sejam reduzidos e os lucros otimizados. São, inegavelmente, lícitas as atitudes dos contribuintes que objetivem à reestruturação e reorganização de seus negócios, estando asseguradas pelo Texto Constitucional, que, no artigo 5º, XXII, prestigia o direito de propriedade, depreendendo-se também, do artigo 5º, IV, IX, XIII, XV e XVII, e artigo 170 e seus incisos, o pleno direito ao exercício da autonomia da vontade.
Consignadas tais anotações, impõe-se o registro de que, prevendo a norma tributária, em sua hipótese, uma determinada atividade jurídica, esta somente poderá ser aplicada se verificada a efetiva ocorrência do negócio previsto. Tendo em vista o princípio da estrita legalidade, a prática de forma negocial diversa, ainda que permita atingir o mesmo resultado econômico, não autoriza a fiscalização a lavrar o ato lançamento, constituindo crédito tributário.
Por outro lado, caso o particular, no desenvolvimento de suas atividades negociais, pratique atos simulados, com vistas a evitar ou mitigar a aplicação de normas tributárias, subtraindo-se ao tributo que seria devido ou reduzindo seu impacto, tem-se por preenchido requisito indispensável à desconsideração dos negócios jurídicos pelo Fisco, competindo à autoridade administrativa lavrar o lançamento tributário, nos termos dos artigos 149, VII e 116, parágrafo único, do Código Tributário Nacional, e impor as penalidades cabíveis.
Para a correta aplicabilidade dos referidos dispositivos, é preciso que se faça uma distinção bem nítida entre atos simulados ou dissimulados e aqueles praticados dentro da esfera de liberdade negocial do contribuinte. Uma coisa é eleger forma menos onerosa para o desempenho, pelo particular, de suas atividades, caracterizando a figura denominada elisão ou planejamento tributário. Outra, bem diferente, é agir com malícia, no intuito de prejudicar o Erário, mediante a prática de ações não autorizadas juridicamente: evasão fiscal. Enquanto na primeira hipótese tem-se ato lícito, cuja desconsideração é inconcebível, a segunda encontra-se no campo da ilicitude, sendo repudiada pelo ordenamento.
Em suma, qualquer que seja a finalidade do ato jurídico, e desde que o negócio eleito seja efetivamente executado, não havendo ocultação de fatos a ele subjacentes, este há de surtir os efeitos previstos no âmbito tributário.
por Fabiana Del Padre Tomé é doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora nos cursos de mestrado e de especialização da PUC-SP, advogada do Barros Carvalho Advogados Associados e autora de "A Prova no Direito Tributário”.
Fonte: Conjur
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