Procusto cometia tais atrocidades na busca pela justiça: todos os sobreviventes teriam a mesma altura e passado pela mesma tortura. Os aleijados sobreviventes começaram a se conformar com tamanha insanidade, imaginando que o futuro seria promissor.
Pois bem. Hoje, no Brasil, algo bastante parecido acontece com as micro e pequenas empresas (MPEs), principalmente no acesso ao mercado de capitais. O discurso oficial do governo vai no sentido de apoiar as MPEs, principalmente as chamadas de "startups", excelentes criadoras de empregos que podem melhorar os índices de desenvolvimento econômico e de distribuição de renda. A Constituição Federal em seu artigo 179, torna obrigatório regime desburocratizado para as MPEs. Mas parece que Procusto saiu dos livros de mitologia para virar realidade.
A flexibilização das regras de acesso ao mercado de capitais para as MPEs é verdadeiro leito de Procusto
Observe-se as regras da Comissão de Valores Mobiliários (CMV). Os artigos 7º da Instrução CVM nº 480, de 2009 e 5º da Instrução CVM nº 400, de 2003 dispensam automaticamente as MPEs dos registros de emissor de valores mobiliários e de oferta pública, respectivamente, o que facilitaria o acesso ao mercado de capitais. Aqui está o leito procustiano.
Ao se continuar a análise é fácil perceber que há algo muito distorcido. O artigo 1º da Instrução CVM nº 480 determina que todos os emissores de valores mobiliários adotem forma de sociedade anônima, exceto quando a regulamentação dispuser de maneira diversa, e a única exceção em vigor está no artigo 33 da mesma instrução, que permite às sociedades limitadas emitir publicamente cédulas de crédito bancário e notas comerciais. Mas qual é o problema com tal limitação? Bastante grande! Tais títulos são representativos de dívida, não de capital, o que praticamente os torna inútil, já que o crédito às startups, no mercado de capitais, é escasso e muito caro.
Mesmo no caso dos fundos de venture capital - os "fundos mútuos de investimento em empresas emergentes" da Instrução CVM nº 209/94 -, que buscam investir em sociedades menores onde regras sofisticadas de governança corporativa pouco importam, a única forma societária permitida é a das sociedades anônimas.
A solução seria fazer a empresa inovadora adotar tal forma societária. Mas é aí que Procusto começa sua maldade: a sociedade anônima é sofisticada, complicada e de cara manutenção, o que vai absolutamente contra o espírito e as limitações das startups. As obrigatórias publicações de demonstrações financeiras e outros atos societários por meio da imprensa oficial, além de absolutamente desnecessárias, seriam mais eficientes se feitas por meio da internet.
Mesmo que a startup consiga escapar do primeiro leito de Procusto, há o segundo, do qual a MPE não se desvencilhará. Segundo o artigo 3º da Lei Complementar nº 123, de 2006 - a Lei do Simples Nacional -, a microempresa é aquela com faturamento anual de até R$ 360 mil, enquanto na empresa de pequeno porte tal limite é ampliado para R$ 3,6 milhões. O segundo leito de Procusto está no parágrafo 4º do mesmo artigo, que proíbe, às MPEs, a adoção de forma de sociedade por ações - inclusive a anônima.
Há mais uma maldade: o desenquadramento do regime da Lei Complementar 123 equivale também à exclusão do Simples Nacional, regime tributário favorecido aplicável às MPEs. Isso, por si só, é um grande absurdo, já que coloca as jovens empresas de tecnologia em poucas condições de competir doméstica e internacionalmente.
Trocando em miúdos, a suposta flexibilização das regras de acesso ao mercado de capitais para as MPEs é verdadeiro leito de Procusto: anuncia-se como mágica, mas que culmina com quase todos mortos ou aleijados, mas supostamente conformados, pois seria medida de justiça e de proteção do mercado de capitais. Só que tal proteção é excessiva, já que o potencial destrutivo de uma emissão de valores mobiliários de uma MPE é absurdamente baixo.
A adoção de política coordenada entre os órgãos federais responsáveis pelo assunto (Secretaria da Micro e Pequena Empresa, Ministério do Planejamento e CVM) e o Congresso Nacional poderá resolver rapidamente o assunto, reduzindo-se as barreiras ao financiamento das startups por meio do mercado de capitais. Uma das iniciativas mais louváveis que se viu nos últimos anos é o Projeto de Lei nº 4.303, de 2012 que, quando aprovado, adotará o regime das sociedades anônimas simplificadas, muito adequado às MPEs.
por Marcelo Godke Veiga é sócio de Godke Silva & Rocha Advogados (São Paulo) e de Godke Marathas Silva &Williams (Miami), mestre em direito pela Columbia University (Estados Unidos) e pela Universiteit Leiden (Países Baixos). Doutorando pela Universiteit van Amsterdam (Países Baixos) e professor da FAAP, do Insper e do Instituto Internacional de Ciências Sociais/Centro de Extensão Universitária.
Fonte: Valor Econômico
Via Aires Gonçalves
Nenhum comentário:
Postar um comentário