O título desta coluna é inspirado em um livro organizado[1] pelo BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento), Não Basta Arrecadar – A Tributação Como Instrumento do Desenvolvimento, lançado no Brasil em um seminário organizado semana passada na Escola de Direito da FGV (Fundação Getúlio Vargas), em São Paulo[2].
O título da obra é autoexplicativo. Visa dar um amplo panorama sobre as políticas fiscais na América Latina e no Caribe e menciona ter havido um progresso notável em sua qualidade e eficácia, destacando que o “crescimento da arrecadação fiscal na região tem sido o mais rápido do mundo”, concluindo que “a tributação deve produzir mais do que apenas receita; de fato, deve ser concebida como um instrumento de estímulo ao crescimento”.
De certa forma, a ideia central do texto é coincidente com o tema abordado em outra coluna aqui veiculada (A Tributação entre o ‘Poder de Destruir’ e o ‘Preço da Civilização’). No livro, o Brasil é analisado inserido no amplo espaço geográfico do continente latino-americano, motivo pelo qual farei algumas observações focadas especificamente no contexto brasileiro, colocando uma lupa sobre os problemas que enfrentamos atualmente em termos de política fiscal.
A administração tributária brasileira é extremamente eficiente em sua função de arrecadar, seja no âmbito da União, dos estados e no de diversos municípios. O uso intensivo de meios informatizados para os registros contábeis (SPED fiscal, por exemplo) permitem que o Fisco tenha controle extremamente íntimo e particularizado das atividades dos contribuintes. Isso não parece ser a tônica latino-americana, segundo o livro.
Um dos problemas fiscais mais relevantes não se encontra na administração tributária, mas na legislação tributária, que tornou o sistema amplamente desarmônico com a realidade econômica atual. O sistema foi projetado para lidar com uma economia completamente diversa, existente entre as décadas de 60 e 70, quando o Brasil era um país essencialmente voltado a uma exploração individualizada e improdutiva do setor primário, a qual hoje se encontra sob a égide de uma estrutura empresarial organizada e extremamente eficiente. A atividade comercial era pulverizada entre pequenos e médios estabelecimentos, e a apuração do ICM (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias) era fortemente centrada no regime normal, de créditos e débitos, o que hoje ocorre apenas de forma residual. O setor de serviços engatinhava enquanto expressão econômica nacional. O Imposto de Renda das Pessoas Físicas ainda ocorria através de lançamento por declaração, quando então a Receita Federal conferia as informações prestadas pelo contribuinte antes de emitir as guias de pagamento. Hoje tudo isso não passa de registros históricos de uma legislação que permanece e fará 50 anos em breve (Código Tributário Nacional, Lei 5.172 de 1966).
Os arranjos criados na Constituição de 1988 e a partir dela quebraram a lógica do sistema em vários aspectos. Surgiram mais fortemente incidências sobre o faturamento, quando os contribuintes pagam antes mesmo de saber se tiveram lucro com a operação. Há intensificação do uso do sistema de substituição tributária, hoje predominante em termos de cobrança de ICMS, que foi transformado em um verdadeiro frankenstein jurídico com a absorção do anterior sistema de impostos únicos (energia elétrica, combustíveis, minérios, transportes, etc.).
As inconstitucionalidades geram economias de escala para o setor público, pois são poucos os contribuintes que batem às portas do Poder Judiciário e que conseguem discutir um processo por décadas até seu julgamento final, com insegurança acerca da decisão, sem aderir aos tentadores e seguros programas especiais de parcelamento que periodicamente são apresentados pelos diversos Fiscos brasileiros. Antes um pagamento parcelado na mão, com descontos, do que várias teses jurídicas voando incertas rumo ao STF... Possivelmente esta seja uma das causas da baixa aderência do Direito às políticas econômicas desenvolvidas pós-88.
Se por um lado, os Fiscos são extremamente eficazes na sua função arrecadatória, os Poderes Legislativo e Executivo do país são bastante ineficazes na realização do gasto público. A parcela corporativista de nossa República faz com que algumas categorias de servidores públicos recebam várias vezes mais do que aqueles que se encontram na base da pirâmide econômica privada. Lembro de uma proposta de Fábio Konder Comparato na época da Constituinte que estabelecia um teto remuneratório para os servidores públicos em seis vezes (cito o número de memória, o que não invalida o raciocínio) o valor do salário mínimo nacional (por que será que essa proposta não prosperou?). E nem a Lei de Transparência da Gestão Fiscal (Lei Complementar 131/2009) ou a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) conseguem fazer com que órgãos como alguns Tribunais de Justiça e Ministérios Públicos estaduais disponibilizem com veracidade a remuneração total que seus membros recebem dos cofres públicos. Sabendo-se que esquematicamente a remuneração do Estado se dá pela arrecadação fiscal, e o que não é consumido é investido, quanto mais se gasta com este tipo de despesa obrigatória (corporativa), menos sobra para investimento. Daí surge uma equação perversa, que no âmbito dos gastos públicos amplia os valores pagos corporativamente e reduz o montante disponível para investimento em prol da sociedade. E isso sem falar nas equivocadas decisões de investir, muitas vezes mais centradas nos gastos supérfluos do que nos essenciais — panem et circus, sendo que às vezes é muito mais circus do que panem.
Temos uma Federação desequilibrada, que impede a redução da carga fiscal. Que lhes parece propor aos governadores ou assembleias legislativas abdicar sua competência tributária para instituir o ICMS, nacionalizando-o nas mãos da União, que repartiria a arrecadação de acordo com uma fórmula legal predeterminada. Nenhum concordaria. Como abrir mão do poder de desonerar os amigos e cobrar dos demais? Ao invés de fazer política fiscal com o gasto, fazem política tributária com o ICMS — o que é um equívoco estrutural a partir de um imposto que não é adequado para este tipo de atuação. Claro que se deve usar a receita tributária para ser um propulsor do desenvolvimento, mas isso é aplicável para certos tributos e de forma coordenada nacionalmente, e não da forma desestruturada como hoje.
O governo federal adota parâmetros semelhantes ao dos Estados, pois desonera sem qualquer coerência diversos setores econômicos, ao sabor dos lobbies mais influentes. Porque ao invés de desonerar de forma quase individualizada (basta ver a casuística da legislação atual do PIS/Cofins) não é feita uma redução linear das alíquotas de alguns tributos? Muitas vezes gastamos pólvora boa em alvos ruins. Devo a Roberto Ferraz a informação da desoneração dos shampoos para lavar cabelos[3], sendo totalmente ignorada a justificativa econômica que levou a União a conceder esse benefício fiscal. No mesmo sentido, estou convencido que uma parte dos grandes engarrafamentos no tráfego nas grandes cidades decorre da desoneração fiscal dos veículos automotores de passeio, ícone da política econômica brasileira há vários anos e governos.
Enfim, é necessário haver um choque de gestão na realização da receita e dos gastos públicos e na política de desonerações (chamada no jargão de gasto tributário), a fim de que se tornem mais eficientes, afastados dos corporativismos incrustrados no aparelho de Estado e permitindo gerar maiores saldos para investimento em prol de toda a sociedade.
Enfim, não basta arrecadar. É preciso arrecadar e gastar melhor e investir mais, o que o Estado Federal brasileiro não está fazendo há muitos anos. A situação fiscal atual é um dos principais entraves ao desenvolvimento nacional.
O título da obra é autoexplicativo. Visa dar um amplo panorama sobre as políticas fiscais na América Latina e no Caribe e menciona ter havido um progresso notável em sua qualidade e eficácia, destacando que o “crescimento da arrecadação fiscal na região tem sido o mais rápido do mundo”, concluindo que “a tributação deve produzir mais do que apenas receita; de fato, deve ser concebida como um instrumento de estímulo ao crescimento”.
De certa forma, a ideia central do texto é coincidente com o tema abordado em outra coluna aqui veiculada (A Tributação entre o ‘Poder de Destruir’ e o ‘Preço da Civilização’). No livro, o Brasil é analisado inserido no amplo espaço geográfico do continente latino-americano, motivo pelo qual farei algumas observações focadas especificamente no contexto brasileiro, colocando uma lupa sobre os problemas que enfrentamos atualmente em termos de política fiscal.
A administração tributária brasileira é extremamente eficiente em sua função de arrecadar, seja no âmbito da União, dos estados e no de diversos municípios. O uso intensivo de meios informatizados para os registros contábeis (SPED fiscal, por exemplo) permitem que o Fisco tenha controle extremamente íntimo e particularizado das atividades dos contribuintes. Isso não parece ser a tônica latino-americana, segundo o livro.
Um dos problemas fiscais mais relevantes não se encontra na administração tributária, mas na legislação tributária, que tornou o sistema amplamente desarmônico com a realidade econômica atual. O sistema foi projetado para lidar com uma economia completamente diversa, existente entre as décadas de 60 e 70, quando o Brasil era um país essencialmente voltado a uma exploração individualizada e improdutiva do setor primário, a qual hoje se encontra sob a égide de uma estrutura empresarial organizada e extremamente eficiente. A atividade comercial era pulverizada entre pequenos e médios estabelecimentos, e a apuração do ICM (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias) era fortemente centrada no regime normal, de créditos e débitos, o que hoje ocorre apenas de forma residual. O setor de serviços engatinhava enquanto expressão econômica nacional. O Imposto de Renda das Pessoas Físicas ainda ocorria através de lançamento por declaração, quando então a Receita Federal conferia as informações prestadas pelo contribuinte antes de emitir as guias de pagamento. Hoje tudo isso não passa de registros históricos de uma legislação que permanece e fará 50 anos em breve (Código Tributário Nacional, Lei 5.172 de 1966).
Os arranjos criados na Constituição de 1988 e a partir dela quebraram a lógica do sistema em vários aspectos. Surgiram mais fortemente incidências sobre o faturamento, quando os contribuintes pagam antes mesmo de saber se tiveram lucro com a operação. Há intensificação do uso do sistema de substituição tributária, hoje predominante em termos de cobrança de ICMS, que foi transformado em um verdadeiro frankenstein jurídico com a absorção do anterior sistema de impostos únicos (energia elétrica, combustíveis, minérios, transportes, etc.).
As inconstitucionalidades geram economias de escala para o setor público, pois são poucos os contribuintes que batem às portas do Poder Judiciário e que conseguem discutir um processo por décadas até seu julgamento final, com insegurança acerca da decisão, sem aderir aos tentadores e seguros programas especiais de parcelamento que periodicamente são apresentados pelos diversos Fiscos brasileiros. Antes um pagamento parcelado na mão, com descontos, do que várias teses jurídicas voando incertas rumo ao STF... Possivelmente esta seja uma das causas da baixa aderência do Direito às políticas econômicas desenvolvidas pós-88.
Se por um lado, os Fiscos são extremamente eficazes na sua função arrecadatória, os Poderes Legislativo e Executivo do país são bastante ineficazes na realização do gasto público. A parcela corporativista de nossa República faz com que algumas categorias de servidores públicos recebam várias vezes mais do que aqueles que se encontram na base da pirâmide econômica privada. Lembro de uma proposta de Fábio Konder Comparato na época da Constituinte que estabelecia um teto remuneratório para os servidores públicos em seis vezes (cito o número de memória, o que não invalida o raciocínio) o valor do salário mínimo nacional (por que será que essa proposta não prosperou?). E nem a Lei de Transparência da Gestão Fiscal (Lei Complementar 131/2009) ou a Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011) conseguem fazer com que órgãos como alguns Tribunais de Justiça e Ministérios Públicos estaduais disponibilizem com veracidade a remuneração total que seus membros recebem dos cofres públicos. Sabendo-se que esquematicamente a remuneração do Estado se dá pela arrecadação fiscal, e o que não é consumido é investido, quanto mais se gasta com este tipo de despesa obrigatória (corporativa), menos sobra para investimento. Daí surge uma equação perversa, que no âmbito dos gastos públicos amplia os valores pagos corporativamente e reduz o montante disponível para investimento em prol da sociedade. E isso sem falar nas equivocadas decisões de investir, muitas vezes mais centradas nos gastos supérfluos do que nos essenciais — panem et circus, sendo que às vezes é muito mais circus do que panem.
Temos uma Federação desequilibrada, que impede a redução da carga fiscal. Que lhes parece propor aos governadores ou assembleias legislativas abdicar sua competência tributária para instituir o ICMS, nacionalizando-o nas mãos da União, que repartiria a arrecadação de acordo com uma fórmula legal predeterminada. Nenhum concordaria. Como abrir mão do poder de desonerar os amigos e cobrar dos demais? Ao invés de fazer política fiscal com o gasto, fazem política tributária com o ICMS — o que é um equívoco estrutural a partir de um imposto que não é adequado para este tipo de atuação. Claro que se deve usar a receita tributária para ser um propulsor do desenvolvimento, mas isso é aplicável para certos tributos e de forma coordenada nacionalmente, e não da forma desestruturada como hoje.
O governo federal adota parâmetros semelhantes ao dos Estados, pois desonera sem qualquer coerência diversos setores econômicos, ao sabor dos lobbies mais influentes. Porque ao invés de desonerar de forma quase individualizada (basta ver a casuística da legislação atual do PIS/Cofins) não é feita uma redução linear das alíquotas de alguns tributos? Muitas vezes gastamos pólvora boa em alvos ruins. Devo a Roberto Ferraz a informação da desoneração dos shampoos para lavar cabelos[3], sendo totalmente ignorada a justificativa econômica que levou a União a conceder esse benefício fiscal. No mesmo sentido, estou convencido que uma parte dos grandes engarrafamentos no tráfego nas grandes cidades decorre da desoneração fiscal dos veículos automotores de passeio, ícone da política econômica brasileira há vários anos e governos.
Enfim, é necessário haver um choque de gestão na realização da receita e dos gastos públicos e na política de desonerações (chamada no jargão de gasto tributário), a fim de que se tornem mais eficientes, afastados dos corporativismos incrustrados no aparelho de Estado e permitindo gerar maiores saldos para investimento em prol de toda a sociedade.
Enfim, não basta arrecadar. É preciso arrecadar e gastar melhor e investir mais, o que o Estado Federal brasileiro não está fazendo há muitos anos. A situação fiscal atual é um dos principais entraves ao desenvolvimento nacional.
[1] A coordenação da obra é de Ana Corbacho, Vicente Fretes Cibils e Eduardo Lora,
[2] Embora tenham sido vários os participantes, registro a presença de Luiz Villela, Vicente Fretes e Fátima Cartaxo (do BID), Eurico de Santi e Isaías Coelho (da FGV), José Clóvis Cabrera (da Secretaria de Fazenda de São Paulo), José Guilherme (da Secretaria da Receita Federal), Antoninho Marmo Trevisan (Trevisan Consultoria), Luis Eduardo Schoueri e José Maurício Conti (Faculdade de Direito da USP), dentre outros.
[3] Roberto Ferraz expôs o tema da desigualdade e da falta de justificativa nas desonerações fiscais no 17º Simpósio sobre Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, promovido pela Editora Dialética, em São Paulo, entre os dias 19 e 20/09/2013. Ainda me pergunto o que levou Roberto Ferraz a esta fixação com shampoos...
[2] Embora tenham sido vários os participantes, registro a presença de Luiz Villela, Vicente Fretes e Fátima Cartaxo (do BID), Eurico de Santi e Isaías Coelho (da FGV), José Clóvis Cabrera (da Secretaria de Fazenda de São Paulo), José Guilherme (da Secretaria da Receita Federal), Antoninho Marmo Trevisan (Trevisan Consultoria), Luis Eduardo Schoueri e José Maurício Conti (Faculdade de Direito da USP), dentre outros.
[3] Roberto Ferraz expôs o tema da desigualdade e da falta de justificativa nas desonerações fiscais no 17º Simpósio sobre Grandes Questões Atuais do Direito Tributário, promovido pela Editora Dialética, em São Paulo, entre os dias 19 e 20/09/2013. Ainda me pergunto o que levou Roberto Ferraz a esta fixação com shampoos...
Por Fernando Facury Scaff
Fonte: Conjur
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