A administração fiscal de nosso país em todos os níveis já está a merecer estudos especializados da psiquiatria. Esta é a conclusão a que podemos chegar quando examinamos a legislação que nos é imposta, feita por pessoas de notórios comportamentos anormais, incapazes de raciocinar e agir com um mínimo de lucidez.
Aprendemos na escola que a lei é a vontade do povo e como tal deve ser cumprida. Quando ela tem algum defeito, deve ser questionada no Judiciário, que tem a última palavra sobre o caso, cuja decisão definitiva há de ser aceita.
Mas tudo indica que estamos nos tornando vítimas de um sorrateiro movimento para colocar por terra todos os ensinamentos jurídicos até aqui tidos como válidos.
A nossa Constituição parece que já não vale grande coisa. Em seu artigo 62 criou essa figura curiosa da MP, já transformada em decreto-lei pelas mesmas pessoas que colocaram suas vidas em risco lutando contra a ditadura mas que, alcançando o poder, querem ser ditadores em plena democracia.
O dispositivo do artigo 62 é claro: admite-se a MP em caso de relevância e urgência. Todavia, cada vez mais esse segundo quesito é ignorado, transformando a norma baixada pelo Executivo num verdadeiro decreto-lei. Afinal, o Executivo, com sua máquina de distribuir dinheiro, com seus mecanismos espúrios de nomear vagabundos e conceder tantas outras benesses aos parlamentares venais, faz o que bem entende.
Um exemplo recente dessa balburdia é a MP 577, que deveria cuidar da questão da energia elétrica. O quesito urgência só apareceu para criar uma suposta agenda positiva ao partido no poder, pois o assunto mereceria maior debate.
O pior de tudo é que foram incluídos diversos assuntos na MP, que acabou se transformando na lei 12.767/2012, que foi muito além do assunto original a que se destinava a MP e que justificaria sua urgência. Veja-se a ementa original da MP, que era composta de apenas 20 artigos:
“Dispõe sobre a extinção das concessões de serviço público de energia elétrica e a prestação temporária do serviço, sobre a intervenção para adequação do serviço público de energia elétrica, e dá outras providências.”
Ao ser convertida na Lei 12.767/2012, ela foi aumentada para 30 artigos, tratando de inúmeros outros assuntos que nada têm a ver com energia elétrica, como isenção de IPI, importações etc., e chegando a mudar a lei de protestos, para incluir parágrafo que tanto transtorno tem causado aos contribuintes brasileiros, e que aqui transcrevemos:
Art. 25. A Lei no 9.492, de 10 de setembro de 1997, passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 1º ......................................................................
Parágrafo único. Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas.
Os mágicos do Planalto que tiraram esse carcará da cartola esqueceram-se que nenhuma lei pode ser feita como se fosse uma salada de frutas.
Cada lei só tem valor se obedecer à norma que lhe é hierarquicamente superior. Tal hierarquia vem explícita no artigo 59 da CF, que coloca a LC logo após as emendas constitucionais e acima das lei ordinárias. Assim, está bem claro que a lei complementar prevalece sobre a ordinária.
Pois bem. A Lei Complementar 95 de 26 de fevereiro de 1998 é muito clara em seu artigo 7° ao ordenar que:
Art. 7º O primeiro artigo do texto indicará o objeto da lei e o respectivo âmbito de aplicação, observados os seguintes princípios:
I - excetuadas as codificações, cada lei tratará de um único objeto;
II - a lei não conterá matéria estranha a seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão; (…)
Outra forma de desprezo à lei é que no mesmo texto da LC 95 consta nos artigos 13 a 16 obrigação de que a legislação federal seja anualmente consolidada, o que não se faz até hoje, já 15 anos depois da aprovação daquele texto.
Ainda que se admita possa a lei no caso alterar a anterior, vê-se que a matéria de protesto não tem a urgência que autorizaria a MP. O Executivo, com a cumplicidade do Legislativo, mais uma vez frauda as normas constitucionais em prejuízo do contribuinte.
A sanha arrecadatória dos fiscos e também das autarquias (já há notícias de que conselhos profissionais estão protestando anuidades não pagas) beneficia-se de um mecanismo que inviabiliza a defesa do sujeito passivo, transformando-o em refém de sistema injusto. Divida pública, como já comentamos anteriormente, não precisa de protesto para ser cobrada judicialmente. O protesto serve apenas para duas coisas neste caso: constranger o contribuinte e dar lucros para cartórios.
Embora a ilegalidade seja evidente, o recurso ao Judiciário não é eficaz, seja pelo custo, seja pela morosidade ou mesmo pena incerteza no atendimento do pedido. Têm se tornado comuns decisões judiciais contendo equívocos de interpretação tão grosseiros que se chega a ter dúvidas de que seja o magistrado titular da senha que serviu para a assinatura eletrônica o autor do texto.
A combinação entre legislação feita às pressas e decisões judiciais demoradas não faz bem a ninguém.
Mais recentemente surgiu a MP 627 do dia 11 deste mês, que é a 25ª MP deste ano. No ano passado, o número foi de 44 MPs, média bem parecida com a do governo anterior. Isso revela algumas coisas. A primeira, que quase tudo é urgente no país. A segunda, que o Congresso deve estar ocupado com alguma outra coisa que não seja a de legislar, supostamente a sua finalidade primeira.
Essa forma de fazer leis não costuma dar certo. Tanto assim que já é rotina que uma lei qualquer nem chegou a ser estudada pela sociedade e já sofreu muitas mudanças. Sofremos todos os brasileiros com isso, pois cria-se uma confusão muito grande na interpretação das regras, a ponto disso se tornar preocupação capaz de afastar investidores. A insegurança jurídica é, sem dúvida, um dos itens que compõem de forma muito expressiva o chamado custo Brasil. Já está na hora de tentar mudar esse quadro.
por Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur
Fonte: Conjur
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