domingo, 29 de janeiro de 2017

Novas medidas relacionadas à guerra fiscal de ISS

Em dezembro de 2016 foi publicada a Lei Complementar (LC) 157 que alterou a LC 116/03 relativamente ao imposto sobre serviços (ISS) e a Lei 8.129/1992 que dispõe sobre a improbidade administrativa.

Já comentamos aqui na ConJur acerca da aparente inconstitucionalidade da tributação de negócios jurídicos que não se qualificam como serviços, como é o caso do streaming (item 1.09 da lista de serviços) e do armazenamento e hospedagem de dados (item 1.03). Frisamos que a atual repartição constitucional de competências tributárias combinada com a revolução tecnológica experimentada pela sociedade possibilita a ausência de sujeição de determinadas utilidades ao ISS e ICMS, simultaneamente. Isso revelaria a necessidade de reforma do cinquentenário sistema tributário para substituir o ISS, ICMS, IPI, PIS e Cofins, tributos que gravam o consumo, por um IVA Nacional, não-cumulativo. Isso facilitaria a cobrança de tributo sobre todo e qualquer processo de agregação econômica de valor.

A par dessa questão, a recente LC 157/16 introduziu normas relacionadas à denominada “guerra fiscal” de ISS que serão objeto deste exame.

A guerra fiscal caracteriza-se pela competição generalizada entre os entes subnacionais pelos investimentos privados [1] tendo como contrapartida a concessão de incentivos ou benefícios tributários [2]. Essa disputa tem impacto sobre a livre concorrência e a receita pública, que tende a um ponto de equilíbrio “no fundo do poço” (racetothebottom) [3]. Dentre outras possíveis causas, a guerra fiscal é reflexo da falta de cooperação no federalismo brasileiro, resultante da ausência de uma política de desenvolvimento nacional [4].

Para evitar a guerra fiscal relacionada ao ISS (entre municípios), a LC 157/16 procurou regular o disposto nos incisos I e III do §3º do art. 156 da Constituição Federal. Referidos artigos impõem à Lei Complementar o estabelecimento das alíquotas mínimas e máximas do imposto, bem como a forma e as condições para a concessão de incentivos fiscais.

Até agora a LC 116/03 era omissa quanto à alíquota mínima e à forma de concessão dos incentivos fiscais de ISS. A questão vinha sendo tratada temporariamente pelo artigo 88 do ADCT, o qual estabelece alíquota mínima de 2% para o ISS [5] e veda a concessão de incentivos que resultem, direta ou indiretamente, na redução da referida alíquota.

Nesse ponto, a LC 157/2016 praticamente repetiu o que já estava posto no ADCT. Acresceu à LC 116/03 o artigo 8-A para estabelecer, em seu caput, a mesma alíquota mínima já prevista no ADCT (2%) [6]. No parágrafo primeiro do mesmo dispositivo [7] vedou definitivamente a possibilidade de concessão de incentivos fiscais de ISS, seja qual for a sua forma de atuação sobre a “regra-matriz de incidência tributária” [8]. Em regra [9], qualquer incentivo que atue sobre a alíquota, a base de cálculo ou mediante a concessão de créditos será considerado ilegal.

Em relação à fixação da alíquota mínima, poder-se-ia sustentar ter havido afronta à autonomia municipal (artigo 18 da CF). No entanto, a ponderação entre os princípios da autonomia municipal e do pacto federativo sugere a prevalência do segundo (artigos 1º e 60, § 4º, I da CF). A fixação de alíquota mínima é essencial para evitar a concorrência fratricida entre os municípios. Garante, portanto, a harmonia do pacto federativo. Esse sopesamento já havia sido realizado pelo constituinte derivado quando, por intermédio da EC 37/02, introduziu a norma do artigo 88, I, do ADCT. Sem esse piso o caminho estaria aberto para os municípios fixarem alíquotas reduzidíssimas do imposto com o consequente recrudescimento da guerra fiscal.

Quanto à forma de concessão de incentivos fiscais, a LC 157/16 parece não ter suprido a exigência do artigo 156, §3º, III da CF. Isso porque a Constituição não veda definitivamente a concessão de incentivos de ISS. Ao contrário, a Carta Maior reza que caberá à lei complementar “regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados”. O verbo “serão” denota que o Constituinte não pretendia vedar todo e qualquer incentivo fiscal, mas admitia que esses pudessem ser concedidos após a lei complementar estabelecer “a forma” e “as condições” para tanto. No mesmo sentido é a previsão para a “revogação” de incentivos que pressupõe logicamente sua prévia concessão. A necessidade de regulação por lei complementar gerou apenas uma proibição temporária para a concessão de incentivos, nos termos do artigo 88, II do ADCT, enquanto não satisfeita a referida condição legislativa.

Ao deixar de regular a forma e as condições pelas quais os incentivos fiscais poderiam ser concedidos e simplesmente vedar a sua concessão, a lei complementar parece ter descumprido sua finalidade à luz do artigo 156, §3º, III da CF.

Destaca-se, ainda, a previsão da LC 157/16 de que será nula a lei ou o ato do município ou do Distrito Federal que desrespeitar as referidas vedações “no caso de serviço prestado a tomador ou intermediário localizado em município diverso daquele onde está localizado o prestador do serviço”, possibilitando ao “prestador do serviço, perante o município ou o Distrito Federal que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula” (artigo 8º-A, §§ 2º e 3º). Além dessa sanção direcionada à pessoa jurídica de direito público (município), a lei complementar acresceu o artigo 10-A à Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/1992), segundo o qual o agente público que conceder (ato comissivo) ou mantiver (ato omissivo) benefício fiscal contrário às diretrizes constantes do artigo 8-A da LC 116/03 responderá por ato de improbidade administrativa, perderá a função pública, terá seus direitos políticos suspensos de 5 a 8 anos e pagará multa de até três vezes o valor do benefício.

Essas três regras têm o condão de contribuir para a prevenção da guerra fiscal de ISS. Isso porque penalizam o agente público que mantiver ou conceder incentivos fiscais e o próprio município na hipótese em que o serviço é prestado a tomador localizado em município diverso. Em suma, se o município reduz ilegalmente a alíquota mínima para serviço prestado exclusivamente em seu território — ou seja, causa um prejuízo apenas para si — a sanção ficará circunscrita ao agente público. Se o serviço for prestado a tomador ou intermediário localizado em outro município — ou seja, o prejuízo extrapola os seus limites territoriais para atingir municípios vizinhos — haverá sanção também aos cofres do município incentivador que restituirá integralmente o tributo pago pelo contribuinte, sem prejuízo da aplicação da pena de improbidade ao agente público.

Registre-se que o projeto original em trâmite no Senado previa a inclusão de um 4º parágrafo ao artigo 3º da LC 116/03 em que expressamente se transferia a competência do imposto para o município do domicílio do tomador (ou intermediário) do serviço na hipótese de concessão de incentivo fiscal de ISS [10]. Essa norma foi vetada pela Presidência da República [11], sob o plausível fundamento de que seriam criados problemas operacionais para as empresas em função da modificação do sujeito ativo da relação jurídica tributária depois da realização do fato gerador. Apesar do veto presidencial em relação ao §4º, permaneceram hígidas as normas dos §§2º e 3º do artigo 8-A da LC 116/03. Estas, conforme visto, induzem [12] os municípios a não concederem incentivos que afetem a concorrência intermunicipal, sob pena de ainda serem obrigados a restituir o tributo incentivado.

O mecanismo criado tende a ser mais eficaz para acabar com a guerra fiscal do que o estabelecido no artigo 8º, II da LC 24/75 para os incentivos fiscais de ICMS. No caso do ICMS, o Estado que concede incentivo fiscal ilícito deve cobrar a diferença de imposto do contribuinte. Ou seja, relativamente ao ICMS, o Estado que age inconstitucionalmente é obrigado pela lei a aproveitar-se de sua própria torpeza mediante a cobrança do diferencial de imposto. No caso do ISS isso aparentemente não ocorrerá. O município incentivador perderá o que arrecadou com o benefício na hipótese de o tomador do serviço localizar-se em Município diverso.

Além de consubstanciarem um “incentivo negativo” [13] aos entes subnacionais para a realização da guerra fiscal, as novas disposições legais revelam um “diálogo institucional” [14] entre o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal que, em 2016, fixou a tese de que “é inconstitucional lei municipal que veicule exclusão de valores da base de cálculo do ISSQN fora das hipóteses previstas em lei complementar nacional” no julgamento da ADPF 190 [15].

Em suma, a LC 157/2016 parece ter descumprido sua finalidade ao deixar de regular o artigo 156, §3º, III da CF relativamente à forma e às condições para a concessão de incentivos fiscais de ISS, simplesmente vedando-os. Por outro lado, andou bem ao estabelecer sanções para a concessão de incentivos fiscais ilícitos de ISS. Ao prever a responsabilização do agente público e impor sanção patrimonial ao município, a lei desestimula a realização da guerra fiscal entre os municípios.

1 Guilherme Bueno de Camargo explicita que a guerra fiscal decorre da generalização “(...) de uma competição entre entes subnacionais pela alocação de investimentos privativos por meio da concessão de benefícios e renúncia fiscal, conflito este que se dá em decorrência de estratégias não cooperativas dos entes da Federação e pela ausência de coordenação e composição dos interesses por parte do governo central” (CAMARGO, Guilherme Bueno de. A guerra fiscal e seus efeitos: autonomia x centralização. In: CONTI, José Maurício (Org.). Federalismo fiscal. São Paulo: Manole, 2004, p. 187).

2 Segundo o Supremo Tribunal Federal, “incentivos ou estímulos fiscais são todas as normas jurídicas ditadas com finalidades extrafiscais de promoção do desenvolvimento econômico e social que excluem total ou parcialmente o crédito tributário” (577348, Relator(a):  Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, REPERCUSSÃO GERAL - DJe-035 26-02-2010).

3 Comentando sobre a Guerra Fiscal de ICMS, José Roberto Afonso assenta que “(...) a pior faceta da guerra fiscal não passa pela tributação em si, nem mesmo em minar a receita efetiva e as finanças estaduais, mas a grave distorção que impõe a livre concorrência no País. Como é um incentivo que afeta diretamente o nível de preço, e permite uma arbitrariedade ao infinito, plantas iguais, de produtos iguais, suportam um ônus de carga diferente dependendo do local em que for instalada e das vantagens que conseguiram angariar do Estado numa negociação individualizada – e, na maioria das vezes, nada publica. Talvez não haja uma forma de intervenção estatal tão aguda na economia porque distorce totalmente as condições de concorrência. Foi criada uma lógica perversa: muitos empreendedores, mesmo que talvez preferissem evitar o risco de um benefício irregular, são compelidos à guerra fiscal simplesmente se seu concorrente conseguir uma vantagem fiscal que o deixe em melhor condição para competir. Neste contexto, por opção ou falta dela, por atração ou por reação, a guerra fiscal do ICMS se tornou uma prática universal e chegou perto de provocar um equilíbrio contraditório: quando todos os estados concedem incentivos, de uma ou outra forma, e quanto todos os investidores produtivos acabam sendo incentivados, de certa forma se chegou a um equilíbrio, entretanto, ‘no fundo do poço’ (tomando emprestada a expressão racetothebottom, comum na literatura internacional sobre a matéria)” (AFONSO, José Roberto. ICMS: diagnóstico e perspectivas. In: REZENDE, Fernando (Org.). O federalismo brasileiro em seu labirinto: crise e necessidade de reformas. Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 212). Vide também: SHAH, Anwar. Competição inter-regional e cooperação federal: competir ou cooperar? Não é essa a questão. Fórum Internacional sobre Federalismo no México Veracruz. México, 15-17 novembro de 2001, p. 7.

4 Vide a propósito: BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, estado e constituição. São Paulo: Max Limonad, 2003.

5 Excetuados os serviços de (i) execução, por administração, empreitada ou subempreitada, de obras de construção civil, hidráulica ou elétrica e de outras obras semelhantes, inclusive sondagem, perfuração de poços, escavação, drenagem e irrigação, terraplanagem, pavimentação, concretagem e a instalação e montagem de produtos, peças e equipamentos (item 7.02 da lista anexa de serviços), (ii) reparação, conservação e reforma de edifícios, estradas, pontes, portos e congêneres (item 7.05) e de transporte coletivo municipal rodoviário, metroviário, ferroviário e aquaviário de passageiros (item 16.01).

6 Art. 8o-A.  A alíquota mínima do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é de 2% (dois por cento).

7 § 1o  O imposto não será objeto de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros, inclusive de redução de base de cálculo ou de crédito presumido ou outorgado, ou sob qualquer outra forma que resulte, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida no caput, exceto para os serviços a que se referem os subitens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa a esta Lei Complementar.

8 Vide CARVALHO, Paulo de Barros, Curso de Direito Tributário, 26ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 331/335.

9 Exceto para os serviços também excluídos da alíquota mínima (itens 7.02, 7.05 e 16.01 da lista anexa à lei).

10 “§ 4o Na hipótese de descumprimento do disposto no caput ou no § 1o, ambos do art. 8o-A desta Lei Complementar, o imposto será devido no local do estabelecimento do tomador ou intermediário do serviço ou, na falta de estabelecimento, onde ele estiver domiciliado.”

11 Justificativa ao veto do § 4º do art. 3º da LC 116/03 (na redação da LC 157/16): “Os dispositivos imputariam elevado custo operacional às empresas. Além disso, a definição da competência tributária deve vir expressamente definida em lei complementar, não cabendo sua definição a posteriori, como pode ocorrer nas hipóteses previstas pelos dispositivos.” (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2016/Msg/VEP-720.htm)

12 Sobre as normas indutoras de comportamentos em matéria tributária, vide: SCHOUERI, Luís Eduardo. Normas tributárias indutoras e intervenção econômica. Rio de janeiro: Forense, 2005.

13 Essa foi a expressão utilizada na exposição de motivos da LC 157/2016: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/108390

14 Sobre o tema, vide: VICTOR, Sérgio Antônio Ferreira. Diálogo institucional e controle de constitucionalidade: debate entre o STF e o Congresso Nacional. São Paulo: Saraiva, 2015.

15 Julgamento realizado pelo Plenário do STF em 29/09/2016.

por Daniel Corrêa Szelbracikowski é advogado, mestre em Direito Constitucional, especialista em Direito Tributário e sócio da Advocacia Dias de Souza

Fonte: Conjur

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