sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

A Previdência superavitária

Inicio hoje um conjunto de quatro textos em favor da reforma previdenciária. Por já ter escrito muito sobre o assunto e dada a dinâmica que marcará o tratamento da questão no Congresso ­ onde os opositores à reforma levantarão objeções a aspectos específicos ­ não vou expor nos artigos as razões, conhecidas por todos, que sustentam a necessidade da reforma e sim irei me deter nas críticas principais que costumam ser feitas a propósito do tema. 

Os pontos abordados serão: 1­ a tese de que "a previdência é superavitária"; 2­ a possibilidade de substituir a reforma pela cobrança da dívida ativa; 3­ a idade mínima em comparação com a expectativa de vida e 4­ as diferenças regionais. Hoje tratarei aqui do primeiro ponto. 

Abordo o tema pela importância que assumiu. Esclareço para o leitor, porém, que considero espantoso que uma ideia tão esdrúxula quanto essa da qual estamos falando tenha alcançado a repercussão que assumiu. 

Há quem sustente a tese, assim como há grupos nos EUA que argumentam que "Elvis Presley não morreu" ou que a notícia de que o homem chegou à Lua não teria passado de uma fraude cinematográfica. Há de tudo no mundo e qualquer um é livre de acreditar no que quiser, desde "Elvis não morreu" até a existência do ET de Varginha. A verdade, porém, é que Elvis morreu e o homem chegou à Lua. Pensar o contrário é digno da literatura fantástica. 

Entenda o leitor do que estamos falando. Em 1995, a receita de contribuições do INSS foi de 4,6 % do PIB e a sua despesa com o pagamento de benefícios, de igual montante, caracterizando uma situação de equilíbrio de caixa. Em 2016, estima-se que esses percentuais terão sido da ordem de 5,7 % e 8,1 % do PIB, respectivamente. Em outras palavras, o INSS em 21 anos terá passado do equilíbrio de caixa a um déficit de 2,4 % do PIB.

Os críticos alegam que isso é falso, porque se a receita do INSS incorporar algumas outras rubricas tributárias hoje arrecadadas pelo Tesouro Nacional (TN) e parte da sua despesa for assumida pelo Tesouro (sempre ele!) o déficit se tornaria um superávit. O leitor deve estar se perguntando que mágica é essa e se, afinal de contas, o TN fica em Marte, a ponto de desviar para lá os problemas que, afinal de contas, afligem a quem vive nas fronteiras demarcadas entre o Oiapoque e o Chuí. Vejamos essa alquimia contábil mais de perto. 

Quem afirma que a reforma pode ser evitada com uma reclassificação contábil não entendeu a essência da questão 

Vamos considerar que o Governo Federal inclui duas entidades: o TN e o INSS. Para efeitos de simplificação, vamos assumir que o primeiro tem duas fontes de receita (A e B) e o segundo uma (C). Concretamente, nos termos do debate, A pode ser representada por impostos, B por contribuições exceto a previdenciária e C pela contribuição previdenciária. Por sua vez, assume­se aqui que o TN tem um gasto (D) na forma de despesas gerais e o INSS dois tipos de gasto, com benefícios urbanos (E) e rurais (F). Assim, temos as equações 

Resultado TN = A + B ­ D 

Resultado INSS = C ­ E ­ F 

Resultado Governo Federal = A + B ­ D + C ­ E ­ F, que é equivalente a 

Resultado Governo Federal = A + B + C ­ D ­ E ­ F 

Em que consiste a contabilidade criativa do batalhão antirreformista? Numa manipulação algébrica que levaria a deslocar a receita B de contribuições exceto a previdenciária do TN para o INSS e repassar a despesa F rural deste para o TN. Como ficariam então as equações? Assim: 

Resultado TN = A ­ D ­ F 

Resultado INSS = B + C ­ E 

O que acontece com o resultado do Governo Central? Ele é igual à soma dos dois resultados anteriores, ou seja, 

Resultado do Governo federal = A ­ D ­ F + B + C ­ E, que é equivalente a 

Resultado Governo Federal = A + B + C ­ D ­ E ­ F 

Como o leitor já percebeu, no final não mudou nada! Sim, caro leitor, o que os antirreformistas propõem é, pura e simplesmente, dar uma volta de 360 graus, mudando toda a classificação da contabilidade fiscal para deixar tudo rigorosamente como está. 

O centro da discussão é que há questões que é preciso deixar bem claras:

A despesa primária ­ exceto juros ­ do Governo Central passou de 14% do PIB em 1991 para 23% do PIB em 2016. 

No Brasil, a idade em que as pessoas se aposentam em média por tempo de contribuição é de 53 anos no caso das mulheres e de 55 anos no caso dos homens. 

Pelas projeções do IBGE, em 2017 o número de pessoas entre 15 e 59 anos de idade é de 136 milhões e o de 60 anos e mais, de 26 milhões; em 2050, o primeiro grupo será menor (128 milhões) e o segundo terá se multiplicado por um fator 2,5 (66 milhões). 

Não estamos discutindo uma questão contábil: estamos lidando com uma questão física de matemática elementar: a relação entre as pessoas que estarão com 60 anos e mais e o grupo que genericamente se considerou no passado como de "idade para trabalhar", nos próximos 33 anos, passará de 19% para 52%. 

Quem enche a boca para afirmar que a reforma previdenciária pode ser evitada mediante uma reclassificação contábil não entendeu a essência da questão ­ ou entendeu e substituiu a matemática pela ideologia. 

Fabio Giambiagi, economista, é superintendente da área de Planejamento e Pesquisa do BNDES e coorganizador do livro "Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2010" (Editora Campus). E­mail: fgiambia@terra.com.br.

Fonte: Valor

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