O recente Ato Declaratório Interpretativo (ADI) n. 7 da Receita Federal do Brasil divulgou inusitado entendimento fazendário sobre o regime tributário da integralização de capital de sociedade, no Brasil, por sócio residente no exterior, quando realizada por meio de cessão de direito – situação na qual o Fisco interpreta que há incidência de imposto de renda de fonte (IRF) à alíquota de 15%.
O artigo 72 da Lei 9.430/1996 tem, de fato, uma redação razoavelmente ampla: “Estão sujeitas à incidência do imposto na fonte, à alíquota de quinze por cento, as importâncias pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas para o exterior pela aquisição ou pela remuneração, a qualquer título, de qualquer forma de direito, inclusive à transmissão, por meio de rádio ou televisão ou por qualquer outro meio, de quaisquer filmes ou eventos, mesmo os de competições desportivas das quais faça parte representação brasileira”.
Por certo que a integralização de capital da sociedade consiste em uma troca, segundo a qual o sócio transfere à sociedade uma parcela de seu patrimônio, e dela recebe quotas ou ações representativas do capital integralizado. Mas as quotas ou ações assim recebidas não são uma “importância” em dinheiro – e tampouco são “pagas, creditadas, entregues, empregadas ou remetidas para o exterior”.
O citado ADI também estipula que, na hipótese de direitos que impliquem aquisição de conhecimentos tecnológicos ou transferência de tecnologia, essa integralização de capital fica sujeita, adicionalmente, à contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) de que trata a Lei n. 10.168/2000.
Essa lei também define a base de cálculo da contribuição como sendo “os valores pagos, creditados, entregues, empregados ou remetidos, a cada mês, a residentes ou domiciliados no exterior, a título de remuneração decorrente das obrigações” de que cuida aquele diploma legal. Não parece haver espaço, também aqui, para a interpretação no sentido de que as ações ou quotas de capital cedidas ao sócio no exterior configuram uma “remuneração” pelo direito cedido – muito menos “valores” pagos, creditados, entregues ou remetidos.
Evidentemente, há possibilidade de que os direitos aqui analisados sejam transferidos à pessoa jurídica no Brasil, em integralização de capital, e na sequência essa participação societária seja alienada a terceiro, com efetiva remessa – aqui sim – de “importância” ao exterior, correspondente ao preço da alienação dessa participação. É até ponderável acreditar que em situações de patologia jurídica esse procedimento seja adotado com o objetivo de disfarçar uma compra e venda dos direitos – o que, em todo caso, remete a um abuso de forma que deve ser objeto de lançamento de ofício, dependendo das circunstâncias.
Mas é inviável a leitura de que, como regra geral, toda e qualquer integralização de capital com tais direitos estaria desde logo equiparada à remessa (ou crédito) de “importância” (na redação da regra de IRF) ou de “valores” (no texto da norma sobre a CIDE) ao exterior.
Com efeito, isso equivaleria ao emprego da analogia para exigência de tributo não expressamente previsto na lei (o que é vedado pelo art. 108 do CTN) – o que conduz necessariamente a uma ofensa ao princípio da legalidade em matéria tributária (Constituição, art. 150, I).
O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por exemplo, que a pretensão de cobrar ICMS sobre a habilitação de aparelho móvel celular – exigida pelo Convênio ICMS 69/98 – configura analogia para estender ilegalmente o âmbito material de incidência do tributo (Recurso Especial n. 816.512/PI, j. 25.11.2009, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção daquela Corte).
A analogia fazendária também foi afastada, na jurisprudência daquela Corte, em outro caso em que o fisco federal pretendia (ilegalmente) excluir contribuinte do regime mais favorecido do SIMPLES (à época, regido pela Lei n. 9.317/96), com amparo em que sua atividade – fabricação de esquadrias – encontrava obstáculo na regra que vedava a opção do regime às empresas de construção civil.
A interpretação fazendária aqui analisada, contudo, é particularmente nociva porque não se limita a gerar efeitos no que tange aos tributos nela expressamente mencionados. É importante reconhecer que, além de poder gerar inúteis (e evitáveis) discussões no Poder Judiciário, à vista dos precedentes acima citados, essa leitura criativa da norma acaba por fomentar também possíveis outras exigências igualmente ilegais.
Basta citar que, a prevalecer o entendimento contido no ato fazendário, a integralização de capital com direitos poderia teoricamente estar submetida também à incidência de PIS e COFINS, por equiparação a uma importação de serviços, além do ISS municipal.
Se o propósito do Ato Declaratório Interpretativo 7/2016 foi o de aumentar arrecadação – sobretudo numa época em que a União Federal vê seu orçamento apresentar forte “déficit” – é relevante considerar que as operações aqui analisadas (integralização de capital com direitos) são muitíssimo raras. Trata-se, portanto, de ato normativo inutilmente ilegal.
Por Rogério Pires da Silva
Advogado em São Paulo (SP), Sócio de Boccuzzi Advogados Associados
Fonte: Jota
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