Não há na legislação penal a tipificação do crime de apropriação indébita do ICMS, como existe em relação à apropriação indébita da contribuição social devida à Presidência Social, hoje, devida à Secretaria da Receita Federal do Brasil.
É que na contribuição social de natureza previdenciária existe a figura de retenção na fonte do tributo devido pelo trabalhador, empregado ou não, que perceba remuneração por meio da folha de pagamento, efetuada pelo empregador ou por meio de recibo de autônomo. Nessas hipóteses, o beneficiário do rendimento (salário, honorários profissionais ou preços dos serviços prestados) recebe a remuneração pelo seu valor líquido, ficando o tributo devido retido na fonte para ulterior recolhimento, no prazo legal, pela pessoa que efetuou o pagamento do salário, honorários ou preço.
“Art. 168-A. Deixar de repassar à previdência social as contribuições recolhidas dos contribuintes, no prazo e forma legal ou convencional:
Pena – reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.
O § 1º descreve outras condutas assemelhadas.
Em relação ao ICMS é impossível juridicamente falar-se em apropriação indébita. Na falta de tipificação, os agentes do fisco ante ao não pagamento do imposto declarado tentam o enquadramento no art. 168 do CP:
“Art. 168. Apropriar-se de coisa móvel, de que tem a posse ou a detenção: Pena – reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.
Ora, o comerciante que vende a mercadoria mediante emissão de nota fiscal de venda, com destaque do valor do ICMS não tem a posse ou a detenção de coisa móvel, no caso, dinheiro referente ao imposto.
Como tributo indireto que é, o ICMS tem o seu valor incluído no preço de venda da mercadoria que inclui, também, as despesas normais do comerciante, como folha de salários, matérias primas, embalagens, contas de luz, de água, de aluguel etc., além, é claro, da margem de lucro. Se ele continua vendendo pelo mesmo preço que comprou, em pouco tempo estará falido.
No chamado tributo indireto, o valor do imposto entra na composição do preço da mercadoria na condição de custo. O destaque o valor do ICMS na nota fiscal é meramente para efeitos contábeis e fiscais para possibilitar o efeito não cumulativo do imposto, que é uma característica de natureza constitucional do imposto (art. 155, II da CF). Não significa que aquele valor destacado é o valor efetivo do imposto, muito menos que é um dinheiro recebido do adquirente o ou valor retido na fonte. Como o ICMS é calculado por dentro o valor do ICMS representa uma alíquota real bem maior que a alíquota legal que no nosso Estado é de 18%. Na realidade, a alíquota incidente é de 21,951%. A alíquota de 25% incidente sobre o consumo de energia elétrica corresponde a uma alíquota real de 33,333%. Como é possível afirmar que o vendedor se apropriou do valor destacado na nota fiscal que nem corresponde à aplicação de 18% sobre a base de cálculo, como retro demonstrado? O que o vendedor recebe do comprador é o preço da mercadoria, uno e indivisível. Para saber o efetivo valor do imposto embutido no preço da mercadoria seria necessário realizar cálculos e mais cálculos, expurgando, item por item, tudo que não diz respeito ao valor da mercadoria em si, livre de taxas e contribuições sociais e de impostos da União e dos Municípios e dos IPVAs de veículos utilizados na atividade empresarial, de tarifas, de despesas de pessoal, de materiais de consumo, de equipamentos, de aluguel, de juros de empréstimos, etc. que o comerciante precisa gastar para exercer a sua atividade comercial.
Como se disse, o destaque do valor do ICMS na nota fiscal é para mero efeito contábil e fiscal. Ao final do mês confronta-se a soma do valor do crédito do ICMS resultante da entrada de mercadorias no estabelecimento comercial, com a soma do valor do débito do ICMS resultante da saída de mercadorias do mesmo estabelecimento, sendo que a diferença a maior corresponderá ao ICMS devido a ser recolhido, ao passo que, a diferença a menor constituirá crédito a ser transferido para o mês seguinte. Por isso, a quantificação do valor destacada é indiferente. Pode ser de 18% ou de 20%, ou de 10% do valor da mercadoria. De fato, tanto faz creditar R$20 e debitar R$ 20, ou creditar R$30 e debitar os mesmos R$30.
O crédito do ICMS nem natureza física tem, sendo de natureza meramente financeira.
O comerciante em nenhum momento fica com o valor do ICMS destacado na nota fiscal, pois esse valor integra o preço da mercadoria vendida. Todo imposto indireto representa custo, porque o seu valor é calculado por dentro. Diferente o critério de cálculo por fora, como acontece na legislação norte-americana ou japonesa, onde o valor do imposto é segregado do valor da mercadoria ou do serviço: aquele pertence ao fisco e este pertence ao comerciante. Nesse caso, é possível o crime de apropriação indébita, porque o consumidor pagou um preço menor por conta do valor do imposto deixado sob a responsabilidade do vendedor.
N’uma e n’outra hipótese o ônus do tributo recai invariavelmente sobre o consumidor. Por isso, a sabedoria popular denominou o consumidor final de contribuinte de fato. Ademais, é sabido o fenômeno da repercussão econômica do imposto indireto.
Na legislação do ICMS, o imposto destacado, seja ele do próprio contribuinte natural, seja ele do contribuinte por substituição tributária, estará sempre compondo o preço da mercadoria vendida, donde a impossibilidade jurídica de falar-se em apropriação indébita do ICMS que é parte do preço, assim como o valor da embalagem, o valor do frete, o valor representativo da margem de lucro do vendedor.
E aqui convém esclarecer que a substituição tributária não se confunde com a figura da transferência do ônus tributário à terceira pessoa vinculada a situação configuradora do fato gerador, por expressa disposição legal, ficando como responsável tributário. A figura do responsável tributário não implica, ipso facto, a exclusão automática da responsabilidade do contribuinte que poderá ficar com a responsabilidade subsidiária (art. 128 do CTN). A substituição tributária substitui, em caráter definitivo, o contribuinte da etapa seguinte da circulação de mercadoria. É uma espécie de diferimento para trás que a fúria fiscal elevou à categoria constitucional inserindo por meio da Emenda nº 3/93 o § 7º ao art. 150 da CF para evitar contestação à essa aberração jurídica de tributar fatos futuros, valendo-se da teoria do fato gerador presumido, que exatamente por ser presumido não tem a base de cálculo em valor certo e determinado que se dá apenas no momento da realização de cada operação de venda. Valor certo e determinado é requisito intrínseco ao conceito de tributo. Não há, nem pode haver, tributo de valor incerto que sequer comporta arredondamento para menos ou para mais.
Somente por ocasião do encerramento do ciclo de comercialização, com a venda final ao consumidor final, é que se terá o efetivo valor do ICMS antecipadamente recolhido pelo artifício de estimar a base de cálculo da operação futura. Por isso o § 7º, do art. 150 da CF determina a restituição imediata e preferencial da diferença após a operação final de ajuste, como acontece com o imposto de renda no final de cada exercício. Está implícito que se a diferença for para a maior, cabe ao contribuinte recolher a diferença do ICMS por meio da apuração mensal do imposto, com base em sua escrita fiscal.
Em suma, afirmar que comete o crime de apropriação indébito quem destaca o valor do ICMS na nota fiscal e deixa de recolher aos cofres do Estado é o mesmo que acusar de apropriação indébita aquele contribuinte, que em cumprimento à Lei nº 12.741/12, destaca o valor provável de todos os tributos, federal, estadual e municipal embutidos no preço das mercadorias ou serviços e deixa de pagar o valor desses tributos apontados em sua nota fiscal.
Apesar de óbvio e ululante uma tese defendida pelo fisco, por mais absurdo que seja, costuma levar anos para ser rejeitada pelo Judiciário. E o fisco sabem disso, por isso vem investindo a cada dia que passa em novos mecanismos de aumentar a arrecadação na base do susto e da sanção política que agora evoluiu para a sanção penal atípica.
por Kiyoshi Harada - Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica.
Fonte: Harada Advogados
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