A Proposta de Emenda Constitucional 96/2015 pretende inserir na Constituição um artigo 153-A, facultando à União criar “adicional” ao ITCMD denominado Imposto sobre Grandes Heranças e Doações, com alíquotas progressivas e limitadas à mais alta do IRPF e com arrecadação destinada ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, afastada a vedação do artigo 167, inciso IV, da Carta.
A justificativa da PEC é indigente, resumindo-se a uma lista pouco precisa das alíquotas nominais máximas do imposto sobre heranças e doações em cinco países desenvolvidos, sem considerar que as alíquotas efetivas são muito inferiores, dadas as múltiplas deduções admitidas na base de cálculo.
Nesta análise, porém, deixaremos de lado a pouca simpatia que nutrimos pela proposta, concentrando-nos de forma exclusiva em seus aspectos jurídicos.
Comecemos pela identificação de seu conteúdo. A PEC fala em “adicional” ao ITCMD. Ao mesmo tempo, determina que as suas alíquotas serão “progressivas em função da base de cálculo” e dá-lhe nome próprio (Imposto sobre Grandes Heranças e Doações — doravante IGHD), razoavelmente distinto daquele do imposto que lhe serve de inspiração (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis ou Doação, de Qualquer Bem ou Direito — ITCMD).
A característica destacada na primeira frase do parágrafo anterior aponta para uma sistemática de cálculo: os impostos adicionais, por definição, são o produto de sua alíquota pelo valor devido a título do imposto subjacente. Assim era, por exemplo, o Adicional Estadual do Imposto de Renda, previsto na redação original do artigo 155, inciso II, da Constituição (“adicional de até cinco por cento do que for pago à União por pessoas físicas ou jurídicas domiciliadas nos respectivos territórios, a título do imposto previsto no art. 153, III, incidente sobre lucros, ganhos e rendimentos de capital”).
Por sua vez, ainda que algo equívocas, as notas destacadas na segunda frase do mesmo parágrafo indicam metodologia diversa: incidência das alíquotas do novo imposto diretamente sobre o valor das grandes heranças ou doações.
A diferença é brutal: tomando-se as alíquotas máximas de ambos os impostos, chega-se no primeiro caso à carga tributária global de 10,2% (8% de ITCMD[1] + 27,5% de 8%); no segundo, a 35,5% (8% + 27,5%).
Pensamos que, em caso de aprovação da PEC e de instituição por lei do imposto, esta será uma controvérsia a exigir definição judicial. Sopesados os argumentos favoráveis a cada uma das leituras, temos que a segunda é a mais correta, seja do ponto de vista formal (a menção a adicional devendo ser entendida como atecnia do constituinte derivado), seja pela virtual inutilidade a que a outra reduz o novo tributo.
Resta definir o que são “grandes heranças e doações”, conceito a que a PEC vincula a competência federal. Embora se trate de expressão com elevado grau de indefinição, algum significado ela decerto tem. Um bom ponto de partida é a noção de “grande fortuna”, empregada no artigo 153, inciso VII, da Constituição. À diferença do que ocorre em outros países, onde o imposto patrimonial grava todos os contribuintes, ou todos os detentores de fortuna (caso da França, que a fixa em 1,3 milhão de euros líquidos), aqui se exige algo mais: uma grande fortuna. O termo há de ser valorizado, em atenção ao cânon de que a lei não contém palavras inúteis.
Thomas Piketty, que não pode ser tachado de direitista, propõe as seguintes faixas: pequeno ou médio patrimônio: menos de 1 milhão de euros; grande patrimônio: 1 a 5 milhões de euros; grande fortuna: acima de 1 bilhão de euros; donde se deduz que, para o autor, um patrimônio entre 5 milhões e 1 bilhão de euros constitui uma fortuna[2].
Não vamos a tanto, mas estamos convencidos da impropriedade dos pisos fixados nos projetos de lei em tramitação quanto ao Imposto sobre as Grandes Fortunas: R$ 5,5 milhões (deputado federal Dr. Aluízio), R$ 2 milhões (deputada federal Luciana Genro), e assim por diante.
Voltando ao IGHD, impõe-se observar que o qualificativo grande aplica-se de forma diferente a uma herança (uma universalidade de direito) ou à doação ou ao legado de um bem único. O limiar será mais alto para aquela do que para estes. Uma grande doação, a nosso sentir, deve ser fixada no mínimo de R$ 1 milhão. Uma grande herança, no mínimo de R$ 10 milhões. Uma fortuna (que não é objeto desta coluna), entre R$ 30 milhões e R$ 100 milhões. E uma grande fortuna (idem), no mínimo de R$ 100 milhões, sendo todos esses valores sujeitos a correção automática pela inflação.
Passemos agora ao juízo sobre a constitucionalidade da PEC. O artigo 5º da Constituição erige em cláusulas pétreas o direito à propriedade (caput e inciso XXII) e à herança (inciso XXX). Isso não impede, é evidente, a incidência de tributos sobre uma ou outra, como o ITR, o IPVA, o IPTU e o próprio ITCMD, além do Imposto sobre Grandes Fortunas, jamais instituído.
Ademais, a inclusão e a revogação de competências tributárias pelo constituinte derivado têm sido entendidas, em tese, como compatíveis com os direitos e garantias individuais (previsão do IPMF e da CPMF: Emendas Constitucionais 3/93, 12/96, 21/99, 37/2002 e 42/2003; da CIDE-combustíveis: EC 33/2001; da contribuição de iluminação pública: EC 39/2002; e das contribuições sociais e interventivas sobre as importações: EC 42/2003) e com a forma federal de Estado (supressão do adicional estadual do Imposto de Renda e do imposto municipal sobre venda a varejo de combustíveis: EC 3/93).
Os parâmetros de análise hão de ser outros, portanto. Duas são as principais teses arguíveis contra a PEC: (i) ofensa ao princípio federativo pela reiteração do fato gerador e da base de cálculo do ITCMD e (ii) violação ao não confisco. Pensamos que nenhuma delas prospera, pelo menos em relação à emenda em si mesma considerada — a segunda pode impor-se no controle da lei editada com base na emenda, a depender do respectivo teor.
A primeira tese baseia-se no artigo 154 da Constituição, que veicula a competência residual da União. Diz-se que o seu inciso I veda a reiteração de fato gerador ou base de cálculo próprios de imposto discriminado na Carta, o que a PEC decerto faz. Acrescenta-se que o comando exige lei complementar e não cumulatividade, requisitos que a PEC negligencia. E que a sobreposição de impostos só se admite em estado bélico ou pré-bélico (inciso II), em que não nos encontramos.
Os argumentos não convencem. Deveras, as limitações aplicam-se à União como ente federado, mas não ao Congresso Nacional como titular do poder constituinte reformador. De forma específica, a possibilidade de uma emenda superar os entraves do artigo 154 foi afirmada pelo STF no julgamento que convalidou, salvo quanto à anterioridade e à imunidade recíproca, a criação do IPMF (i) por lei ordinária e (ii) sem prejuízo de sua manifesta cumulatividade.
Nem nos parece — e aqui se enfrenta o coração do problema — que a autonomia estadual, de resto mitigada pela existência de um teto fixado pelo Senado, fique comprometida pela previsão de gravame justaposto ao ITCMD, se a alíquota deste último não é reduzida.
Mitigado fica, sim, o potencial de majoração do imposto estadual, que será menor do que era à falta do seu dublê federal. Mas aquela margem já não podia ser explorada de forma livre, face ao teto senatorial. E a calibração entre os dois impostos, sendo questão política da alçada do Senado (ITCMD) e do Congresso Nacional (IGHD), não virá necessariamente em detrimento dos estados.
Com isso entramos na segunda discussão. A somatória do ITMCD e do IGHD deverá, sem dúvida, obediência ao não confisco, que o STF já disse ser aferível a partir da carga tributária total incidente sobre o contribuinte[3].
Mas tal vício, se ocorrer, defluirá dos critérios de quantificação postos pela lei instituidora do IGHD (eis que o ITCMD atualmente não merece a pecha). O que não cabe é atribuí-lo desde logo à norma de competência, e isso nem mesmo à luz da alíquota máxima ali estabelecida, que pode ser reservada pelo legislador a valores tão elevados a ponto de mostrar-se aceitável.
Em síntese: consideramos a PEC uma ideia infeliz, mas nem por isso inconstitucional. Em tempos de judicialização da política e de politização do Judiciário, parece-nos salutar insistir na distinção entre esses dois campos.
[1] Resolução 9/92 do Senado Federal.
[2] O Capital no Século XXI. Trad. Monica Baumgarten de Bolle. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014, p. 503.
[3] Pleno, ADI 2.010-MC/DF, relator ministro Celso de Mello, DJ 12/4/2002.
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG.
Fonte: Conjur
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