Estou de partida para o exterior. Serão quase duas semanas fora do Brasil, a trabalho e participando em dois importantes eventos da área tributária.
O primeiro, que será em Lisboa, já havia sido anunciado na última coluna. Trata-se de mesa redonda organizada pelo Instituto de Direito Econômico Financeiro e Fiscal (IDEFF) da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, sobre o tema “Tendências do Direito Fiscal Internacional”[1], por ocasião do lançamento de obra em três volumes em homenagem ao Professor Alberto Xavier[2].
O segundo será em Miami. Trata-se do 7º US-Latin Tax Planning Strategies Conference[3] organizado pelas instituições International Bar Association (IBA), American Bar Association (ABA) e International Fiscal Association (IFA) onde participarei de mesa de debates sobre tributação de operações internacionais envolvendo licenciamento de direitos e captação de recursos.
Levar notícias do Brasil para o exterior nunca é um trabalho fácil na área tributária. Principalmente quando gostaríamos de dar boas notícias. Afinal, no meio internacional já somos bastante conhecidos pelas interpretações fiscais sui generis, construídas por interesses arrecadatórios, que cada vez mais prejudicam a confiança no país como parceiro leal, cumpridor de seus compromissos. Uma complexíssima legislação tributária e autuações fiscais cada vez mais agressivas e exacerbadas, que transformaram os tributos em sanção pelo ato alegadamente ilícito de perseguir economia fiscal, completam o triste cenário de insegurança jurídica que vivenciamos no país.
Mas dessa vez teremos boas notícias para dar. Boas notícias vindas do Poder Judiciário. Não tenham dúvidas que iremos falar dos recentes julgamentos do Superior Tribunal de Justiça, já considerados históricos no direito tributário internacional.
Referimo-nos, em primeiro lugar, ao julgamento do recurso especial 1.325.709/RJ pela 1ª Turma, que foi objeto de nossa última coluna[4]. Como se sabe, naquele julgado, o STJ reconheceu a incompatibilidade do regime de tributação automática, pelo método aditivo, dos lucros de sociedades controladas no exterior com o artigo 7º dos tratados contra a dupla tributação celebrados pelo Brasil com base no Modelo OCDE.
E, em segundo lugar, ao julgamento do recurso especial 1.161.467/RS pela 2ª Turma, que foi abordado em nossa coluna de junho de 2012[5], em que o mesmo STJ reconheceu também à luz do mesmo artigo 7º dos tratados, a competência tributária exclusiva do país de domicílio do prestador de serviços para a tributação dos lucros provenientes de tais atividades. Tal decisão afastou a aplicação da lei interna (artigo 7º da Lei 9.779/99) que estabelece a incidência do imposto de renda na fonte de 25% sobre as remessas ao exterior a título de pagamento de serviços.
A razão desse tratamento está em que apenas no país de domicílio do prestador, onde serão apurados todos os custos relacionados à atividade, é que se poderá saber se houve ou não lucro[6]. Extirpar pela aplicação de uma tributação na fonte parcela substantiva do rendimento bruto em que o preço pago se traduz, torna, na maioria das vezes, economicamente inviável a operação, a não ser que a fonte pagadora assuma o ônus do tributo. Por isso que se tornou tão oneroso para o contribuinte brasileiro importar serviços, ainda mais considerando as incidências em cascata do PIS/COFINS e do ISS.
Lamentavelmente não poderemos dar as boas notícias sem ressalvas, pois o direito dos contribuintes que penaram pela proteção do Poder Judiciário e acharam que a teriam obtido com esses precedentes, segue sendo sabotado pelo Fisco-Legislador.
No que concerne à tributação de controladas no exterior, a Lei 12.973, de 13 de maio de 2014, resultante da conversão da Medida Provisória 677, sobre a qual já havíamos nos manifestado em coluna de abril passado[7], repetiu o sistema repudiado pelo STJ. Mas repetiu-o de forma ainda mais insidiosa, porque passou a prever a incidência dos tributos sobre base de cálculo constituída pela “parcela do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior equivalente aos lucros por ela auferidos antes do imposto sobre a renda” (artigo 77, caput), parcela essa coincidentemente idêntica aos “(...) lucros auferidos no período, não alcançando as demais parcelas que influenciaram o patrimônio líquido da controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior” (artigo 77, parágrafo 1º).
Nenhuma palavra ou ressalva em relação à incompatibilidade com os tratados contra a dupla tributação. Como deverão se comportar os contribuintes diante de tal silêncio eloquente? Respeitarão os agentes fiscais os tratados contra a dupla tributação ou continuarão a sustentar que a tributação recai sobre a empresa brasileira, embora o tributo continue a incidir sobre o lucro da estrangeira adicionado ao lucro real da brasileira, agora sob a “mascarada” denominação de “parcela do ajuste do valor do investimento”?
No que concerne à tributação das prestações internacionais de serviços, ao acórdão do STJ seguiu-se a emissão do Parecer PGFN/CAT/2362/2013, cujo preâmbulo[8] nos revela a declaração de “guerra” diplomática da Finlândia, insatisfeita com a constante violação pelo Brasil de seus compromissos internacionais. O parecer diz reconhecer e se render à posição do STJ, mas ao mesmo tempo constrói uma linha de interpretação tão estreita do conceito de serviço submetido ao artigo 7º que acabará por esvaziar, na prática, o seu âmbito de aplicação.
Com efeito, grande parte dos tratados brasileiros, pela via de protocolos, submete ao regime tributário dos royalties (retenção no estado da fonte) os pagamentos de serviços técnicos e de assistência técnica. Naturalmente são pagamentos de serviços acessórios ou conexos a uma operação principal, ensejadora do pagamento de royalties. Doutrinariamente se reconhece a aplicação de referida tributação aos contratos de know-how[9].
Mas o dito Fisco-legislador, pela Instrução Normativa 1.455, de 6 de março de 2014, conceituou serviço técnico como “a execução de serviço que dependa de conhecimentos técnicos especializados ou que envolva assistência administrativa ou prestação de consultoria, realizado por profissionais independentes ou com vínculo empregatício ou, ainda, decorrente de estruturas automatizadas com claro conteúdo tecnológico” (artigo 17, parágrafo 1º, II, b). É evidente que com essa definição amplíssima planejou-se, nas sombras das repartições, uma artimanha para esvaziar a aplicação do tratado. Qualquer serviço passou a ser “técnico”. Tratados seguirão sendo violados. Como se comportará a Finlândia? Quantos compromissos internacionais serão rompidos pela desobediência brasileira?
Será essa a tendência do Brasil? Desrespeitar o Judiciário com artimanhas legislativas, no caso da MP 677, ou sabotar suas decisões com atos administrativos ardilosos, como é o caso da IN 1.455.
Não é nada animador ter que criticar seu país no exterior, mas diante desses fatos não há opções.
Mas não só pela faceta “legisladora” que o Fisco tem causado severos danos aos cidadãos e à imagem do país. A aplicação pelos órgãos de lançamento de autos de infração acusando os particulares de simulação e fraude generalizou-se de tal forma nos últimos anos que nenhuma operação, seja ela qual seja, passa incólume às punições do Fisco.
O tributo desvirtuou-se de tal forma que virou “castigo” aplicado pelo Fisco-punidor. Basta vislumbrar-se o mínimo de economia tributária ou, melhor, racionalismo fiscal na opção adotada pelo particular que ela é imediatamente acusada de ilícita. Que o caminho a seguir deveria ser o mais oneroso. Que a operação poderia ter sido realizada de outra forma. Fraude à lei, simulação, falta de propósito negocial, abuso de direito entre outros, tudo isso é misturado nos “liquidificadores” acusatórios que se transformaram os termos de constatação fiscal. Estão sendo solenemente ignorados todos os limites postos na lei tributária, com único propósito de taxar, sem dó nem piedade, contribuintes que acreditaram que poderiam adotar comportamentos previstos em lei.
O caso mais flagrante e generalizado nos últimos anos tem sido o ágio. A dedução da amortização do ágio nas operações de reorganização societária cujos requisitos estavam previstos em lei (artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97) doravante passou a ser terminantemente proibida pelos agentes fiscais. Toda e qualquer operação apresenta algum vício ou defeito que sustentará a glosa das deduções e cobrança de tributos que, supostamente, deixaram de serem pagos, acrescidos das mais severas penalidades. De um momento para o outro, toda e qualquer empresa que adotou o tratamento tributário do ágio prescrito em lei foi autuada.
Tudo isso fez com que no domínio das operações de reorganização societária vigore a mais absoluta insegurança jurídica a respeito das opções a adotar. Como explicar nos fóruns internacionais que no Brasil a adoção dos comportamentos previstos em lei pode ser interpretada pelo Fisco ao seu bel prazer? Que conceitos doutrinários não positivados podem ser livremente invocados pelos órgãos de lançamento, que deveriam atuar estritamente vinculados à lei (artigo 142 do CTN) e a nada mais.
Por isso que na epígrafe citamos a frase ameaçadora do seriado Game of Thrones. Winter is coming (O inverno está chegando). Esse inverno de destruição se aproxima e os sinais são evidentes.
A muralha de resistência ao ataque desse inverno de insegurança tem sido os órgãos judicantes. Nessa coluna louvamos decisões do STJ. Mas não podemos deixar também de louvar o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), constituído por competentes profissionais, sejam de indicação fazendária, sejam de indicação dos contribuintes.
A luta dos conselheiros para o balizamento da atuação da fiscalização nos termos da lei tem sido admirável. Por isso encerramos hoje com as lúcidas palavras de advertência do Conselheiro Alberto Pinto Souza Júnior no voto proferido no Acórdão 1302-001-150, de 7 de agosto de 2013:
“Os julgadores do CARF prestarão um grande serviço ao Estado e a sociedade brasileiras se imprimirem segurança jurídica e isonomia ao sistema, evitando que suas decisões fiquem ao sabor lotérico do entendimento de cada conselheiro sobre conceitos vagos não positivados como, por exemplo, “falta de propósito negocial”, que não passa de uma construção jurisprudencial alienígena sem respaldo no ordenamento jurídico pátrio”. (....)
“O conceito de propósito negocial é vago e não se enquadra em qualquer dos incisos, nem mesmo no inciso II, pois ainda que os sócios não tivessem a intenção de perpetuar a empresa, isso não torna a sua cláusula de constituição menos verdadeira. O propósito negocial pode ser, exatamente, o de realizar uma reorganização societária para se valer das normas permissivas criadas pelo Estado. O entendimento de que o contribuinte pode se reorganizar desde que não seja exclusivamente para reduzir carga tributária (causa extratributária) é apenas uma teoria sem amparo no Direito posto. A finalidade da sociedade empresária é maximizar seus lucros, pelo aumento do faturamento e redução de custo, o que é legítimo desde que suas condutas sejam lícitas”.
Levaremos na bagagem a advertência desse julgador, conselheiro fazendário, para mostrar que o inverno ainda não chegou desse lado da muralha e que podemos dizer que ainda há esperança em dias mais ensolarados.
[1] Cfr. http://www.ideff.pt/ini_detail.php?zID=26&aID=564
[2] A obra em três volumes intitula-se “Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Alberto Xavier, Economia, Finanças Públicas e Direito Fiscal” e foi editada pela Ed. Almedina, Coimbra, 2013.
[3] Para maiores informações, cfr. www.meetings.abanet.org/meeting/tax/MIAMI14/register.cfm
[4] Coluna de 30/4/2014 (http://www.conjur.com.br/2014-abr-30/consultor-tributario-julgamento-historico-stj-dupla-tributacao)
[5] http://www.conjur.com.br/2012-jun-06/consultor-tributario-supremo-stj-freiam-voracidade-arrecadatoria-fisco
[6] Para maiores detalhes sobre a matéria cfr. http://www.conjur.com.br/2012-abr-04/consultor-tributario-brasil-obedecer-regras-fiscais-jogo
[7] http://www.conjur.com.br/2014-abr-02/consultor-tributario-mp-627-ficcao-inconstitucional
[8] “Por intermédio do Memorando nº 1061/2013-RFB-Gabin, de 4 de setembro de 2013, a Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), encaminhou à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), “para apreciação e demais providências, com amparo no art. 13 da Lei Complementar nº 73, de 10 de fevereiro de 1993, a Nota Técnica Cosit nº 23, de 30 de agosto de 2013, que analisou o Memorando nº 64/2013/Suari/Corin/Datin, de 19 de abril de 2013, da Coordenação de Relações Internacionais (Corin), que encaminhou ofício do Ministério das Finanças da Finlândia, de 27 de fevereiro de 2013, em que é manifestada a intenção do Governo da Finlândia de apresentar denúncia do acordo para evitar a dupla tributação, assinada pelo Brasil e aquele país, caso se confirme o entendimento firmado pela Secretaria da Receita Federal do Brasil (RFB), favorável à tributação no Brasil de remessas em pagamento de serviços técnicos realizados na Finlândia.”
[9] Para maiores desenvolvimentos, cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil, 7ª edição, 2010, Rio de Janeiro, ed. Forense págs. 567 e ss.
por Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Fonte: Conjur
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