O artigo 4º do Decreto-lei 288/67, que instituiu a Zona Franca de Manaus, equipara a exportações, para todos os fins, as vendas interestaduais de mercadorias para aquela região, quer se trate de matérias-primas a serem industrializadas ali, quer se trate de produtos acabados para consumo local.
O artigo 49 do diploma estendeu a equiparação ao ICM, valendo lembrar que a concessão, pela União, de isenção de impostos estaduais e municipais era autorizada pela Constituição então vigente (artigo 20, parágrafo 2º, da Carta de 1967, depois artigo 19, parágrafo 2º, da Constituição Emendada de 1969).
É certo que o Decreto-lei 288/67 não tinha o status exigido pelos citados comandos constitucionais (lei complementar). Mas o defeito foi sanado pela expressa convalidação de seu artigo 4º pelo artigo 5º da Lei Complementar 4/69.
Tem-se, assim, que a assimilação a exportações das remessas interestaduais de quaisquer produtos para a Zona Franca de Manaus estava em plena vigência quando do advento da Constituição de 1988, a qual, no artigo 40 das Disposições Transitórias, convalidou todos os incentivos anteriores relativos àquela área, primeiro até 2013 (redação original), depois até 2023 (Emenda Constitucional 42/2003).
Bem por isso, a jurisprudência é firme em aplicar a tais operações o regime das exportações, inclusive para efeito de ICMS, independentemente da natureza e da destinação da mercadoria: industrializada ou a industrializar, para consumo, beneficiamento ou revenda. Nesse sentido, entre outros: STJ, 2ª Turma, REsp. 34.388/SP, Relator Ministro Ari Pargendler, DJ 19.05.97; STJ, 1ª Turma, EDcl. no REsp. 223.405/MT, Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, DJ 10.11.2003; STF, Pleno, ADI 2.348-MC/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 07.11.2003; STF, Pleno, ADI 1.799-MC/DF, Relator Ministro Marco Aurélio, DJ 12.04.2002.
Pois bem: segundo as Constituições de 1967 (artigo 23, parágrafo 5º), 1969 (artigo 23, parágrafo 7º) e 1988 (artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea a), as exportações de produtos industrializados eram imunes ao ICM/ICMS. Com a Emenda Constitucional 42/2003, a imunidade passou a abranger também os produtos não-industrializados e os serviços – regra antecipada pelo artigo 3º, inciso II, da Lei Complementar 87/96, estribado no artigo 155, parágrafo 2º, inciso XII, alínea e, da Constituição de 1988.
Se praticamente não há dúvidas quanto à inexigibilidade de ICMS nas vendas para a Zona Franca de Manaus, o mesmo não se pode dizer quanto ao destino dos créditos decorrentes das operações imediatamente anteriores, vale dizer, aqueles obtidos pelo remetente na aquisição (a) das mercadorias depois revendidas para aquela região ou (b) dos insumos necessários à sua fabricação.
E isso decorre da acidentada evolução que esta matéria teve para os próprios exportadores, aos quais dito remetente está identificado.
No início, vigia o Decreto-lei 406/68, que só mantinha os créditos de ICM por insumos e material de embalagem utilizados na elaboração da mercadoria a ser exportada, ademais excluindo as matérias-primas de origem vegetal ou animal que representassem mais de 50% do valor do produto final (artigo 3º, parágrafo 3º).
Nada de créditos, pois, pelos produtos acabados adquiridos para exportação. Foi nesse contexto que adveio Convênio 65/88, específico para a Zona Franca de Manaus, cuja cláusula terceira era simples reprodução do comando legal que se vem de descrever.
O Convênio 66/88, que trouxe normas gerais em matéria de ICMS, com apoio no artigo 34, parágrafo 8º, do ADCT, nada trouxe que alterasse tal cenário, permanecendo as operações para a Zona Franca de Manaus regidas pelo Convênio 65/88.
Na sequência, a cláusula terceira do Convênio 65/88 foi revogada pelo Convênio 6/90, cujo intuito era vedar todo e qualquer crédito ao remetente de mercadorias para aquela área de livre comércio.
O diploma – entre outros que não interessam para esta discussão específica – foi combatido pelo Governador do Estado do Amazonas na ADI 310/DF, que o STF acaba de julgar procedente, ao fundamento de que o artigo 40 do ADCT constitucionalizou todos os incentivos preexistentes, mesmo que veiculados por norma legal.
A isso somava-se, a nosso ver, a ineficácia da revogação da regra convenial, ante a subsistência do artigo 3º, parágrafo 3º, do Decreto-lei 406/68, do qual aquela era simples cópia, e dada a extensão à Zona Franca de Manaus do regime jurídico das exportações.
De notar, por oportuno, que o decreto-lei não poderia ser tangido sequer pelo especialíssimo Convênio 66/88, que só tinha estatura de norma geral de Direito Tributário quanto às matérias omitidas pelo primeiro[1].
Essa antiga discussão, só agora concluída no Supremo, mantinha-se relevante apenas para o período anterior à Lei Complementar 87/96, cujo artigo 21, parágrafo 2º, superando a legislação preexistente (sobre cuja revogação se debatia), garantiu ao exportador a manutenção de todos os seus créditos anteriores, sem restrições de nenhum tipo.
O direito foi depois constitucionalizado pela Emenda 42/2003, que deu nova redação ao artigo 155, parágrafo 2º, inciso X, alínea a, da Carta.
Esse ponto não foi compreendido – por razões mais financeiras do que jurídicas, ao que pensamos – pelos Fiscos de algumas unidades federadas. Tome-se como exemplo a Fazenda paulista, que continuou a aplicar até muito recentemente o art. 14 das Disposições Transitórias do Regulamento estadual do ICMS, que submetia ao resultado da ADI 310/DF a apropriação de créditos – ainda assim restritos a insumos industriais e material de embalagem – pelo remetente de mercadorias à Zona Franca de Manaus[2].
Ora, para fatos geradores posteriores à Lei Complementar 87/96 o resultado da ADI era de todo indiferente, pois o creditamento passou a fundar-se no novo diploma, e não mais no Convênio 65/88.
Em recente coluna neste espaço, Heleno Tôrres fez veemente defesa da Zona Franca de Manaus face aos questionamentos lançados pela União Europeia perante a Organização Mundial do Comércio (clique aqui para ler – http://www.conjur.com.br/2014-mar-12/consultor-tributario-zona-franca-manaus-garantias-respeitadas).
Parece, porém, que os Estados adversários deste regime tributário especial não são apenas os estrangeiros.
[1] A inaptidão do Convênio 66/88 para contrariar o Decreto-lei 406/68 é de há muito questão resolvida. Nessa linha: STJ, 1ª Turma, REsp. 64.083/SP, Relator Ministro GARCIA VIEIRA, DJ 28.08.95.
É bem verdade que o STF, na Súmula 661, convalidou a alteração no fato gerador do ICMS-importação feita pelo Convênio ICM 66/88. Fê-lo, contudo, não por reconhecer ao Convênio força para contrariar o Decreto-lei 406/68, mas sim por entender que a definição por este último dada ao fato gerador não teria sido recepcionada pela Constituição de 1988, fazendo-se um vácuo na matéria a reclamar a disciplina provisória autorizada pelo artigo 34, paragrafo 8º, do ADCT. Nesse sentido: Pleno, RE 193.817/RJ, Relator Ministro ILMAR GALVÃO, DJ 10.08.2001.
[2] “Art. 14. Enquanto não for proferida decisão definitiva na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 310-1/90, impetrada pelo Governo do Estado do Amazonas perante o Supremo Tribunal Federal, com deferimento de liminar em favor daquele Estado, não produzem efeitos as seguintes disposições deste regulamento relacionadas com as remessas de produtos industrializados para os municípios de Manaus, Rio Preto da Eva e Presidente Figueiredo, prevalecendo, em todas as operações indicadas, a isenção nas remessas para as áreas incentivadas, com manutenção integral dos créditos fiscais relativos à mercadoria utilizada como matéria-prima ou material secundário na fabricação e embalagem dos produtos:
(...)
III – estorno dos créditos fiscais a ser realizado pelos remetentes paulistas nas remessas de produtos beneficiados com isenção – artigo 84 do Anexo I.”
por Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG. Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Fonte: Conjur
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