Da Consulta
O Consulente esclarece que é advogado de clientes que são titulares de títulos da dívida pública externa emitidos em libras esterlinas que foram inseridos no orçamento Anual da União do Exercício de 2014, para resgate e pagamento naquele exercício, sob a nomenclatura de Operações Especiais, códigos 0409 e 0367, com diversas datas de emissão, todos eles previstos no Decreto-lei nº 6.019/1943. Esses títulos foram reconhecidos pelo Decreto-lei nº 6.019, de 23 de novembro de 1943, prevendo o seu pagamento a partir de 1º de janeiro de 1944 pela forma estabelecida em seu art. 3º. O citado Decreto-lei nº 6.019/43 foi regulamentado pelo Decreto nº 6.410 de 10 de abril de 1944 que facultou a União de emitir novos títulos, em séries correspondentes aos empréstimos originais na forma prevista em seu art. 2º.
Para melhor compreensão dos fatos apresenta os seguintes documentos:
a) Ofício 81/87, de 25-5-87, subscrito por J. Gordon Pereira, agente do Banco do Brasil em Nova York, reconhecendo a perpetuidade dos títulos vinculados ao Decreto-lei nº 6.019/43;
b) Parecer PGFN/COF nº 867/87, de 26-8/87, reconhecendo a imprescritibilidade da dívida externa e a necessidade de pagamento dos títulos pelo governo brasileiro;
c) Carta ao Banco Central do Brasil enviada pelo Banco do Brasil em 17/8/2000 apresentando o cronograma de pagamentos das dívidas vinculadas ao Decreto-lei nº 6.019/43 até 2035;
d) Nota STN /CODIV/GAB nº 1739, de 20-10-2000, reconhecendo a validade dos valores devidos em cada título denominado em libra esterlina;
e) Parecer PGFN/COF/Nº 2367, de 14/11/2000, concluindo que os “títulos emitidos em Londres se encontram com seus pagamentos exigíveis, comportando pagamento, até os respectivos prazos de vencimentos previstos nas planilhas de fls. 994/1038”;
f) Portaria nº 616, de 20-12-2000 da Secretaria do Tesouro Nacional que subdelega às autoridades aí nominadas a competência para autorizar pagamentos relativos a títulos abrangidos pelo Decreto-lei nº 6.019/43;
g) Parecer PGFN/COF/Nº 618/2002, de 18-3-2002, que opina favoravelmente à proposta de resgate dos títulos mencionados no Decreto-lei nº 6.019/43;
Diante do exposto o Consulente apresenta os seguintes quesitos:
1 – Os Títulos da Dívida Externa Brasileira, emitidos em libras esterlinas, comercializados na praça de Londres, foram alcançados pela prescrição?
2 – Uma vez reconhecida a perpetuidade da validade destes títulos é possível sofrer modificação tal entendimento? Por quê?
3- Em caso negativo, estando os mesmos ainda válidos e representando crédito financeiro em desfavor da União Federal, são passiveis de ter o seu valor nominal devidamente corrigido, aplicando-se a cláusula ouro e os juros contratuais?
4 – O pedido de resgate de tais títulos deve se dar exclusivamente no exterior?
5 – O crédito financeiro deles decorrente pode ser utilizado para extinção de obrigação tributária?
6 – Partindo-se da premissa da existência de crédito financeiro válido, líquido e certo, pergunta-se:
6.1 – Os Detentores do crédito podem cedê-los a terceiros?
6.2 – Com base na Portaria 913/2002 pode-se afirmar que o crédito financeiro devidamente alocado na Secretaria do Tesouro Nacional pode ser utilizado para extinção de obrigação tributária?
6.3 – Sendo a DCTF uma obrigação tributária acessória quais as implicações legais na hipótese de não ser ela entregue com os valores devidos? Lembrando que as demais obrigações tributárias foram entregues com as informações corretas.
6.4 – Sabendo que, além das obrigações tributárias acessórias e principais, com exceção da DCTF, foram prestadas as informações dos fatos geradores junto à Secretaria do Tesouro Nacional e à RFB, através de informes alocados em Processos Administrativos, é possível afirmar que foi cometido algum ilícito tributário? Por quê?
Parecer
A questão consultada resume-se em saber: a) se os títulos dos clientes do Consulente emitidos em libras esterlinas são válidos; b) se esses títulos estão prescritos; c) se não estão prescritos podem eles ser objetos de negociação e eventual compensação com tributos federais.
Abordaremos essas três questões precedidas de uma breve introdução acerca dos títulos da dívida pública externa.
– Introdução
Conforme assinalamos em nosso livro, a primeira dívida pública contraída pelo Brasil Império data de 1824, quando foram levantadas 2.000.000 libras esterlinas em condições leoninas. Durante o século XIX as operações com a Praça de Londres se sucederam, quer para financiar a Guerra contra o Paraguai, quer para reprimir movimentos revolucionários, quer para enfrentar crises e déficits crônicos. E ainda por força do tratado firmado em 29 de agosto de 1825, com Portugal que reconhecia a nossa independência, a dívida de 2.000.000 libras contraída pela ex metrópole ficou acrescida àquela original contraída pelo Brasil em 1824.
Com o agravamento da situação financeira o Brasil lançou mão em 1898 e 1914 de operações conhecidas como funding loan consistentes em moratórias, atribuindo aos credores novos títulos em pagamento das prestações e do serviço da dívida. Em 1964 o Brasil ingressou no mercado externo como grande tomador de empréstimos e em fevereiro de 1987 acabou por decretar a suspensão dos pagamentos dos serviços da dívida externa, questionando as cláusulas contratuais não referendadas pelo Congresso Nacional, como determina a Constituição.
Daí o advento de dois planos originários da Secretaria do Tesouro dos Estados Unidos que ficaram com os nomes dos titulares da Secretaria da época: o Plano Backer de 1985 que não produziu os resultados esperados, dando origem ao Plano Brady aprovado durante o governo de George Bush. Esse plano Brady tinha como propostas fundamentais: a) a política de repatriação de bens pelos países devedores; b) a adoção de política visando redução tanto da dívida, quanto de seu serviço, mediante esforço conjunto de países devedores e dos bancos credores no sentido de propiciar novos empréstimos em condições favoráveis; c) o acionamento do FMI e do BIRDE para orientar as instituições financeiras internacionais para viabilizar novos empréstimos, ao mesmo tempo que atuando junto países devedores para reduzir a dívida e o serviço da dívida. O Senado Federal do Brasil, por meio da Resolução nº 98, de 23-12-1992, aprovou esse acordo da dívida externa. Esse acordo permitiu ao Brasil a redução de sua dívida, bem como à sua securitização mediante lançamento do bônus de desconto e de bônus ao par, ambos garantidos pelo Tesouro dos Estados Unidos.
Em 1994 o Brasil, após superar as dificuldades apresentadas pela família Dart, expressiva credora norte-americana, concluiu a reestruturação de sua dívida externa convertendo em novos títulos U$ 49 bilhões do que devia[1].
Esse retrospecto histórico bem ilustra que a dívida pública contraída no exterior não caduca, não prescreve, sujeitando-se a negociações que resultam em novos contratos, em aditamento aos contratos existentes e sempre honrados, evitando que o país seja acionado perante a Corte Internacional de Justiça. Como se sabe, não mais se admite a cobrança forçada, como aquela tentada contra a Venezuela nos idos de 1902 dando nascimento à doutrina de Drago, segundo a qual não se admite a cobrança armada quando o Estado devedor não se submete à arbitragem ou se nega a cumprir o laudo arbitral.
O Brasil sempre honrou seus compromissos internacionais. A moratória decretada em 1987 pelo Governo Sarney foi levantada em 1994, com a sua adesão ao Plano Brady, retornando ao mercado financeiro internacional a partir de 1995, com o lançamento de bônus negociáveis.
2 – Da validade dos títulos sob consulta
Como se verifica da parte introdutória deste parecer as obrigações de natureza financeira contraídas pelo Brasil na praça situada no exterior nunca deixaram de ser cumpridas, quer pelo seu adimplemento no prazo contratual, quer pela prorrogação de prazo mediante aditamentos contratuais, quer pela renegociação da dívida sob diversas modalidades, funding loan, Plano Blacker, Plano Brady e contratação de novos empréstimos para pagamentos de juros vencidos.
A consulta formulada versa sobre títulos vinculados ao Decreto-lei nº 6.019/43 que fixou normas definitivas para pagamentos de empréstimos externos realizados em libras e dólares pelos governos da União, Estados e Municípios, Instituto do Café do Estado de São Paulo e Banco do Estado de São Paulo, como resultado de entendimentos levados a efeito com os representantes do The Council of the Corporation of Foreign Bondholders e do Foreig Bondholders Profective Council, Inc. de Nova York.
Órgãos e autoridades brasileiras sempre se posicionaram pela validade, imprescritibilidade e necessidade de pagamentos dos títulos da dívida pública vinculados aos termos do Decreto-lei nº 6.019/1943, objetos da presente consulta. Senão vejamos:
(a) Ofício nº 81/87, de 25-5-87, subscrito por J. Gordon Pereira, agente do Banco do Brasil em Nova York, responsável pelo pagamento dos títulos naquela praça.
O referido Ofício esclarece que como fechamento da Delegacia do Tesouro Nacional em Nova York em 1974, os recursos financeiros em seu poder para honrar os compromissos junto aos credores foram transferidos para o Banco do Brasil em Nova York, em 1-7-1975.
Quando o Decreto nº 93.872/86 determinou o encerramento das contas existentes no exterior aquele agente do Banco do Brasil endereçou o ofício referido ao Procurador Geral da Fazenda Nacional no sentido da necessidade de manter aquelas contas em aberto, a fim de evitar “inadimplemento por parte do governo brasileiro, com consequências nocivas ao próprio conceito do País no mercado financeiro externo”.
(b) Parecer PGFN / COF nº 867/87, de 26-8-87
O então Procurador Geral da Fazenda Nacional, Cid Heráclito de Queiroz opina pela manutenção das contas nºs 240.3145 e 240.3153 na agência do Banco do Brasil em Nova York, para prosseguir nos pagamentos dos títulos vinculados ao Decreto-lei nº 6.019/43, fundamentando-se no fato de que “existem, ainda, obrigações por resgatar, eis que, provavelmente, por serem os contratos de suas emissões reguladas pela legislação estrangeira, são imprescritíveis”.
(c) Carta ao Banco Central do Brasil enviada pelo Banco do Brasil em 17-8-2000
Com relação aos títulos da dívida pública abrangidos pelo Decreto-lei nº 6.019/43 o Banco do Brasil em atenção a seu expediente FIRCE / CONAC-II-C – 200/869, de 30-6-2000, encaminhou planilhas elaboradas pelo Ministério da Fazenda, onde consta um cronograma para pagamentos dos referidos títulos até o ano de 2035.
(d) Nota STN/CODIV/CAB nº 1739, de 20-10-00, subscrita pelo coordenador Geral da CODIV
Nesta nota o Coordenador Geral do Órgão que tem como atribuição operacionalizar a emissão, registro e acompanhamento de títulos de responsabilidade da União, Antonio de Pádua Ferreira Passos, aprovado pelo Secretário Adjunto do Tesouro Nacional, Rubens Sardenberg, reconhece a plena validade “dos valores devidos em cada título denominado em libra esterlina, esclarecendo ainda que há no Orçamento Geral da União, na unidade Encargos Financeiros da União – EFU – dotação orçamentária que ampare os pagamentos previstos em contrato”.
Resulta da análise dos documentos retrorreferidos que autoridades de órgãos competentes da União pronunciaram-se pela validade dos títulos abrangidos pelo Decreto-lei nº 6019/43 e com aval da Secretaria do Tesouro Nacional opinaram e decidiram pela necessidade de resgatar esses títulos, chegando a apresentar cronograma de desembolsos da União até o ano de 2035. São provas mais do que suficientes quanto à validade jurídica desses títulos que, por si só, afasta a cogitação de prescrição.
Esclareça-se que a Secretaria do Tesouro Nacional foi criada pelo Decreto nº 92.452, de 10-3-1986, incumbida da administração financeira da União, da contabilidade federal, além de exercer atividades relacionadas à emissão e implementação de operações com títulos de dívida pública da União.
Incumbe à STN “controlar as responsabilidades assumidas pelo Tesouro Nacional, em decorrência de contratos de empréstimos e financiamentos, para assegurar o pagamento dos compromissos nas datas de vencimento” (art. 2º, II) e “autorizar os pagamentos necessários à satisfação de compromissos financeiros garantidos pelo Tesouro Nacional e não honrados pelos devedores” (art. 2º, III).
3 – Da imprescritibilidade dos títulos sob exame
Depreende-se dos pareceres e documentos retroexaminados que há opinião unânime das autoridades brasileiras competentes no sentido da imprescritibilidade dos empréstimos celebrados à luz do direito estrangeiro.
Citemos a título ilustrativo três documentos oficiais que afastam a prescrição dos títulos sob exame:
Parecer PGFN/COF/Nº 2367/2000 de 14-11-2000
Este parecer subscrito pela Procuradora da Fazenda Nacional, Maria Conceição Maranhã Sá, encampado pela Coordenadora-Geral, Sônia Portella e aprovado pelo Procurador Geral Adjunto da Fazenda Nacional, Carlos Eduardo da Silva Monteiro, conclui:
“Por conseguinte não tendo sido atingidos pela prescrição, referidos títulos emitidos em Londres encontram-se com seus pagamentos exigíveis, comportando pagamento, até os respectivos prazos de vencimento, previstos nas planilhas de fls. 994/1038”.
Termina o parecer solicitando encaminhamento da “cópia do presente parecer à Secretaria do Tesouro Nacional e ao BACEN, para ciência e providências”.
Parecer PGFN / COF / Nº 618/2002 de 13-3-2002
Neste parecer a Procuradora da Fazenda Nacional, Suely Dib de Souza e Silva, com a concordância da Coordenadora-Geral, Sônia Portella, aprovado pelo Procurador Geral Adjunto da Fazenda Nacional, Daniel Rodrigues Alves, manifesta sua concordância com a proposta de resgate dos títulos mediante a publicação de edital de chamamento aos portadores para resgate de seus títulos em jornal de grande vinculação na Praça de Londres.
O parecer em questão, no seu item II, transcreve a Nota nº 127 STN/CODIV/GEPRE, de 8 de fevereiro de 2002, onde está dito o seguinte:
“[…]
Por outro lado, tem que se levar em conta que esses títulos têm carácter de perpetuidade, tendo o Tesouro Nacional obrigação em relação a eles sempre que ao agente pagador forem apresentados cupons de juros atrasados”.
(c) Na Lei Orçamentária Anual de 2014, constou expressamente a título de Operações Especiais os Códigos 0367 e 0409 pertinentes à dívida externa de que cuida o Decreto-lei nº 6.019/43
A Lei nº 12.952, de 20 de janeiro de 2014, que aprovou a LOA para o exercício de 2014, consignou na parte concernente às Ações Orçamentárias Integrantes da Lei Orçamentária para 2014 os seguintes Códigos:
“0367 – Refinanciamento da Dívida Pública Externa decorrente de Acordos de Reestruturações. Esfera: 10 – Orçamento Fiscal. Função: 28 – Encargos Especiais. Subfunção: 842 – Refinanciamento da Dívida Externa. Base legal da ação: Resoluções do Senado Federal nºs 82/91, 20/91, 7/92, 53/92, 98/92, 96/93; Decretos-Leis nºs 6.019/43 e 6.410/44; Lei nº 10.179/2001 e LC nº 101/2000.”
“0409 – Dívida Externa da União decorrente de Acordos de Reestruturação. Esfera: 10 – Orçamento Fiscal. Função: 28 – Encargos Especiais. Subfunção: 844 – Serviço da Dívida Externa. Base legal da ação: Resoluções do Senado Federal nºs 82/90, 20/91, 7/92, 53/92, 98/92, 96/93; Lei nº 10.179/2001; Decretos-Leis nºs 6.019/43 e 6.410/44;”
Prova maior da imprescritibilidade dos títulos da dívida pública externa não poderia existir, não sendo aplicável em relação a eles a prescrição quinquenal contra a Fazenda Pública regulada pelo Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932.
Ainda que os aludidos títulos tivessem sido atingidos pela prescrição, o que se admite apenas para fins de argumentação, o comportamento do governo brasileiro exteriorizando atos incompatíveis com a prescrição teria importado em renúncia tácita dessa prescrição, consoante regra do art. 191 do Código Civil, in verbis:
“Art. 161 A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá, sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.”
Não há, pois, que se falar em prescrição dos títulos regulados pelo Decreto-lei nº 6.019/43, objeto de consulta.
4 – Cessão dos títulos e seu aproveitamento para compensação tributária
Os títulos da dívida pública externa ou interna, a exemplo dos demais títulos de crédito, são passíveis de cessão, do contrário impossibilitaria sua negociação no mercado.
Quanto à compensação com tributos, a matéria demanda exame acurado e detido do ordenamento jurídico global.
A primeira compensação para quitar a dívida tributária veio com o advento da Emenda Constitucional nº 30/2000, que inseriu o art. 78 ao ADCT prescrevendo em seu § 2º o poder liberatório das parcelas dos precatórios não adimplidas, para pagamento de tributos da entidade devedora.
Logo, a doutrina e a jurisprudência batizaram essa forma de extinção da obrigação tributária por dação de precatório em pagamento, de compensação tributária mediante utilização de precatórios.
Depois, a jurisprudência do STF chegou a admitir essa compensação em relação a precatórios de natureza alimentar não incluídos na moratória da EC nº 30/00, conforme decisão monocrática proferida pelo Min. Eros Grau no RE nº 550.400-RS, Dj de 18-9-2007. O feito restou prejudicado com o advento da 3ª moratória dos precatórios que se deu com a promulgação da EC nº 62/2009 a qual convalidou as compensações consumadas e regulou a compensação dos precatórios com tributos, por iniciativa da Fazenda devedora, conforme § 9º acrescido ao art. 100 da CF. Esse parágrafo foi declarado inconstitucional, como de resto decretada a inconstitucionalidade do regime de pagamento instituído pela EC nº 62/2009 nos autos da ADIs nºs 4357 e 4425.
Contudo, a Corte Suprema procedeu a modulação de efeitos para:
“1) dar sobrevida ao regime especial de pagamento de precatórios por 5 (cinco) exercícios a contar de 1º de janeiro de 2016;
[…]
5) delegar a competência ao Conselho Nacional de Justiça para que considere a apresentação de proposta normativa que discipline: (I) …; (II) a possibilidade de compensação de precatórios vencidos, próprios ou de terceiros, com o estoque de créditos inscritos em dívida ativa até 25-3-2015, por opção do credor do precatório”.
O CNJ vem se omitindo na atribuição de resolver o problema dos precatórios ditos “impagáveis” por falta de vontade política, quando a sua ação positiva poderia reduzir em mais de 80% as demandas judiciais de natureza tributária que vêm emperrando o judiciário.
A compensação tributária no nível infraconstitucional tem previsão no art. 170 do CTN, nos seguintes termos:
“A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.”
Como se verifica, o art. 170 do CTN não é autoaplicável. A compensação sempre depende da lei da entidade política competente.
E a Lei nº 10.179, de 6 de fevereiro de 2001, previu a compensação dos títulos da dívida pública com tributos, só que de forma restritiva, escolhendo aleatoriamente os títulos que poderiam ser compensados, conforme art. 6º in verbis:
“Art. 6º A partir de seu vencimento, os títulos da dívida pública referidos no art. 2º[2] terão poder liberatório para pagamento de qualquer tributo federal, de responsabilidade de seus titulares ou de terceiros, pelo seu valor de resgate”.
A interpretação literal do art. 6º da Lei c.c o art. 2º conduz à conclusão de que apenas as LTN, LFT e NTN podem ser compensadas.
Entretanto, o art. 6º deve ser interpretado de forma sistemática, considerando a ordem jurídica global, principalmente, os princípios da razoabilidade e da isonomia.
Essa Lei de nº 10.179/2001 deve, em primeiro lugar, ser entendida à luz do princípio da razoabilidade que é um limite imposto à ação do próprio legislador.
O art. 2º da Lei faz alusão a títulos “de que trata o caput do artigo anterior”.
Logo, precisamos examinar o caput do art. 1º. Esse artigo autoriza o Poder Executivo a emitir títulos da dívida pública, de responsabilidade do Tesouro Nacional, com a finalidade de:
I – prover o Tesouro Nacional de recursos….
…
III – troca por Bônus da Dívida Externa Brasileira, de emissão do Tesouro Nacional, que foram objeto de permuta por dívida externa do setor público, registrada no Banco Central do Brasil, por meio do “Brazil Investment Bonde Exchange Agreement”, de 22 de setembro de 1988;
IV – troca por títulos emitidos em decorrência de reestruturação de dívida externa brasileira, exclusive critério do Ministro da Fazenda (Revogado pela Lei nº 13.043/2014):
…
VII – permuta por títulos de responsabilidade do Tesouro Nacional ou por créditos decorrentes de securitização de obrigações da União, ambos na forma escritural, observada a equivalência econômica;
VIII – pagamento de dívidas assumidas ou reconhecidas pela União, a critério do Ministro de Estado da Fazenda.
Da interpretação conjugada dos textos legais citados, de duas uma:
os títulos cujos resgates foram definidos pelo Decreto-lei nº 6.019/43 (empréstimos em libras e dólares pelos governos da União, Estados, Municípios e Instituto do Café-SP) estão abrangidos pela compensação a que se refere o art. 6º, ou
(b) Os títulos vinculados ao Decreto-lei nº 6.019/43 não podem ser compensados com títulos federais, porque não abrangidos pelo art. 6º.
Na hipótese “a” não há questão a ser dirimida. Mas, na hipótese “b” há ofensa a princípios constitucionais e legais.
Realmente, incluir alguns títulos e excluir outros mais antigos, como os regulados pelo Decreto-lei nº 6.019/43, afronta o princípio da razoabilidade e o princípio da isonomia, conferindo privilégios a uns e, excluindo outros que se encontram em situações iguais (todos são credores ante o Tesouro Nacional).
Tanto viola o art. 5º da CF dispensar tratamento igual aos desiguais, como adotar tratamento diferenciado entre os iguais.
Outrossim, a exclusão de uns e a inclusão de outros amparado na expressão “a critério do Ministro de Estado da Fazenda” fere, às escâncaras, os princípios da impessoalidade, da moralidade e da razoabilidade, expressos no caput do art. 37 da CF.
Aliás, o princípio da impessoalidade, que proíbe a designação de casos e pessoas, decorre do princípio maior da moralidade pública.
Finalmente, efetuar o pagamento mediante compensação de tributos com os títulos mais recentes, em prejuízo de títulos mais antigos, inverte a lógica e ofende, às escâncaras, os princípios constitucionais retrorreferidos.
O princípio da moralidade, de tão importante, é referido duplamente na Constituição Federal. No art. 37, que cuida das disposições aplicáveis à Administração Pública, e no art. 5º, inciso LXXIII, que legitima o cidadão a impetrar ação popular em casos lesivos à moralidade administrativa. O enriquecimento ilícito do Estado é uma imoralidade não permitida pelo nosso ordenamento jurídico. E aqui cabe uma reprodução do que já escrevemos:
“O protecionismo ou a perseguição política são práticas imorais que geralmente se dão sob o manto da legalidade. Na mesma linha, é imoral deixar de pagar o que é devido, ou procrastinar o pagamento, deixando a dívida para a próxima gestão, assim como insistir em teses vencidas, ajuizando ou contestando ações ao arrepio da jurisprudência. Há administradores que protelam suas decisões indefinidamente, não tendo escrúpulos em recomendar aos administrados que recorram à Justiça” (Cf. nosso Dicionário de direito público. São Paulo: MP Editora, 2. Edição, 2005, p. 264-265).
Sobre o outro princípio, o da razoabilidade, assim nos manifestamos:
“A razoabilidade, como princípio do Direito Administrativo, condiciona o exercício do poder discricionário da Administração, de forma a coibir a arbitrariedade, pelo excesso ou falta de proporção entre o ato e a finalidade a que se destina. Um ato, mesmo observando os requisitos legais pra a sua formação, pode recair na ilegalidade se não for razoável, exorbitando do poder discricionário. Assim, embora sob a capa da legalidade, resultam ilegais, v.g., os atos que aplicam penalidades desproporcionais às infrações cometidas ou aqueles que destinam recursos superiores aos exigidos por determinado empreendimento (….) Não raro, a exorbitância desse poder leva ao abuso de poder ou desvio de finalidade, a suscitar prontamente a atuação do Judiciário. Quando não, o excesso decorrerá da falta de critérios razoáveis, a traduzir um ato desproporcional, que contraria o bom-senso ou o senso comum pelos quais deve se pautar a conduta da Administração” (Cf. nossa ob. cit., p. 318).
Esses dois princípios, o da moralidade e o da razoabilidade, norteiam, não apenas a conduta dos administradores, como também a própria atividade legislativa do Estado, representando um verdadeiro limite aos legisladores. Estes não podem aprovar leis que firam a moralidade pública, como por exemplo, legislando em causa própria. Nem podem aprovar leis que beneficiam, por exemplo, aqueles que praticam determinados atos de forma irregular, enquanto penalizam outros que praticam os mesmos atos, porém de forma regular.
Assim, fere a ordem jurídica positiva efetuar o pagamento de títulos recentes deixando de honrar os compromissos assumidos na Praça de Londres e que vêm sendo postergados até hoje, apesar do advento do Decreto-lei nº 6.019/43 editado por pressão de órgãos internacionais.
Outros fatores contribuem para fortalecer a tese da compensação. A Portaria SRF nº 913, de 25 de julho de 2002, inclui a Secretaria do Tesouro Nacional – STN – na Rede Arrecadadora de Receitas Federais – Rarf, nos termos do art. 1º assim prescrito:
“Art.1º O pagamento de tributos e contribuições administrados pela Secretaria da Receita Federal (SRF) e das demais receitas federais recolhidas em Documento de Arrecadação de Receitas Federais (Darf) poderá ser efetuado por intermédio da Secretaria do Tesouro Nacional (STN), que passa a integrar a Rede Arrecadadora de Receitas Federais (Rarf) sob o Código Nacional de Compensação 009.
Parágrafo único. A STN está apta a prestar serviços de arrecadação de que trata a Portaria SRF nº 2.609, de 20 de setembro de 2001, nos casos de pagamento de receitas federais com:
I – recursos integrantes da Conta Única do Tesouro Nacional por meio do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi);
II – transferência de recursos para a Conta Única do Tesouro Nacional por meio do Sistema de Pagamentos Brasileiros (SPB)”.
Como visto no item 2 deste parecer, a Secretaria do Tesouro Nacional, criada pelo Decreto nº 92.452/86, é órgão incumbido da administração financeira, da contabilidade federal e por meio da Coordenação Geral de Controle da Dívida Pública – CODIV – exerce as atividades de emissão e implementação de operações com títulos da dívida pública da União a fim de:
a) controlar as responsabilidades assumidas pelo Tesouro Nacional decorrentes de contratos de empréstimos para assegurar o pagamento desses compromissos nas datas dos vencimentos;
b) autorizar os pagamentos para solução dos compromissos financeiros assumidos pelo Tesouro Nacional e não honrados pelos devedores.
Além das atribuições previstas no Decreto nº 90.452/86, a STN passou a ser órgão arrecadador de tributos da União integrando a Rarf, por força da já citada Portaria SRF n° 913/2002.
Dessa forma, a STN passou a exercer dupla função: (a) a de órgão arrecadador de tributos; e (b) a de órgão pagador das dívidas da União apta, portanto, a operar a compensação tributária para extinguir as dívidas da União.
Para tanto, a Secretaria do Tesouro Nacional editou a Portaria nº 616, de 20 de dezembro de 2000, promovendo subdelegações para autorizar pagamentos dos títulos da dívida pública referidos no Decreto-lei nº 6.019/2000, nos seguintes termos:
“O Secretário do Tesouro Nacional, tendo em vista a disposto no inciso II da Portaria GM/MF Nº 428 de 27 de novembro de 2000, resolve:
Art. 1º Subdelegar competência a ANTÔNIO DE PÁDUA FERREIRA PASSOS, Coordenador-Geral de Assuntos Externos; ADRIANO PEREIRA DE PAULA, Coordenador, ARTUR CLÉBER ASSUNÇÃO DO VALE, Assistente, e PRISCILA DE SOUZA CAVALCANTE DE CASTRO, Auxiliar, para:
I – autorizar transferências para pagamentos relativos aos empréstimos externos contraídos nos termos do Decreto-lei nº 6.019/43, bem assim dos respectivos serviços;
II – administrar os saldos bancários decorrentes das operações de crédito externo de que trata o Decreto-lei nº 6.019/43, podendo determinar a abertura e o encerramento de contas e efetuar saques, depósitos e ordens de pagamentos;
III – negociar junto aos agentes pagadores, aplicações e reaplicações financeiras”;
Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico envolvendo princípios constitucionais, leis ordinárias, Decreto-lei, Decretos, Portarias, Pareceres da PGFN e da STN conduz, seguramente, à possibilidade de compensação dos títulos referidos no Decreto-lei nº 6.019/43, objeto de consulta, com os tributos federais, de conformidade com o art. 170 do CTN, combinado com a Lei nº 10.179/01.
Outro não foi o objetivo quando se conferiu à STN, órgão encarregado do controle e pagamento dos títulos públicos, dentre os quais, aqueles referidos no Decreto-lei nº 6.019/43, o poder de arrecadar tributos federais integrando a Rarf. Concentrou-se na STN o poder de compensar os tributos federais com títulos da dívida pública, restando à SRF a competência para promover as demais compensações entre tributos de competência impositiva da União.
5 – Respostas aos quesitos
1 – Os Títulos da Dívida Externa Brasileira, emitidos em libras esterlinas, comercializados na praça de Londres, foram alcançados pela prescrição?
R: Conforme abordado no item 2 deste parecer são as próprias autoridades brasileiras competentes que firmam posição no sentido de validade e perpetuidade dos contratos de empréstimos firmados no exterior, especificamente aqueles previstos no Decreto-lei nº 6.019/43, objeto de consulta. Assim, aqueles títulos não foram alcançados pela prescrição, e se tivesse ocorrido a prescrição teria havido renúncia a essa suposta prescrição, por força do disposto no art. 161 do Código Civil.
2 – Uma vez reconhecida a perpetuidade da validade destes títulos é possível sofrer modificação tal entendimento? Por quê?
R: O reconhecimento do caráter de perpetuidade desses títulos pelas autoridades brasileiras não são passíveis de alteração.
Aludidos contratos foram celebrados segundo o disposto no direito estrangeiro, fazendo incidir normas de direito internacional que obrigam as partes contratantes de tratados ou convenções internacionais de natureza multilateral incorporar no respectivo ordenamento jurídico interno as normas convencionais.
3- Em caso negativo, estando os mesmos ainda válidos e representando crédito financeiro em desfavor da União Federal, são passiveis de ter o seu valor nominal devidamente corrigido, aplicando-se a cláusula ouro e os juros contratuais?
R: Os títulos da dívida pública externa devem ser resgatados pelos valores da moeda estrangeira convertidos em moeda nacional por seus valores equivalentes, acrescidos de juros contratuais. A cláusula ouro acha-se revogada desde o advento do Decreto nº 23.501 de 27-11-1933.
4 – O pedido de resgate de tais títulos deve se dar exclusivamente no exterior?
R: Não. A partir do fechamento da Delegacia do Tesouro Nacional em Nova York as atribuições daquele órgão foram transferidas para o Ministério da Fazenda. A Secretaria do Tesouro Nacional – STN – passou a ser o órgão responsável pelo controle da dívida externa e por meio da Coordenação Geral de Controle da Dívida Pública – CODIV – passou a exercer as atividades de emissão e implementação de operações com títulos da dívida pública, controlando as responsabilidades assumidas pelo Tesouro Nacional e autorizando os pagamentos para solução dos compromissos financeiros de responsabilidade do Tesouro Nacional e não honrados pelos devedores.
Por meio da Portaria nº 616, de 20 de dezembro de 2000, a Secretaria do Tesouro Nacional subdelegou a competência aos agentes aí referidos para autorizar transferências para pagamentos relativos aos empréstimos externos contraídos nos termos do Decreto-lei nº 6.019/43; administrar os saldos bancários decorrentes das operações de crédito externo de que trata o Decreto-lei nº 6.019/43; e negociar junto aos agentes pagadores, aplicações e reaplicações financeiras.
5 – O crédito financeiro deles decorrente pode ser utilizado para extinção de obrigação tributária?
R: Sim, conforme demonstrado no tópico 4 deste parecer.
6 – Partindo-se da premissa da existência de crédito financeiro válido, líquido e certo, pergunta-se:
6.1 – Os Detentores do crédito podem cedê-los a terceiros?
R: Sim. A cessão é da natureza do crédito representado por títulos da dívida pública externa ou interna.
6.2 – Com base na Portaria 913/2002 pode-se afirmar que o crédito financeiro devidamente alocado na Secretaria do Tesouro Nacional pode ser utilizado para extinção de obrigação tributária?
R: Sim, conforme demonstrado no tópico 4 deste parecer.
6.3 – Sendo a DCTF uma obrigação tributária acessória quais as implicações legais na hipótese de não ser ela entregue com os valores devidos? Lembrando que as demais obrigações tributárias foram entregues com as informações corretas.
R: Desde que não há no sistema eletrônico de informações fiscais campo próprio para inserir qualquer tipo de observação ou justificativa, as consequências da não inserção dos valores nas DCTFs depende do exame de cada caso concreto. Se o valores não apontados nas DCTFs estiverem sendo objetos de compensação essa circunstância pode ser levada ao conhecimento da SRF por meio de uma carta ou ofício. Poderá, também, aguardar a iniciativa do fisco, ocasião em que o contribuinte apresentará as suas razões.
6.4 – Sabendo que, além das obrigações tributárias acessórias e principais, com exceção da DCTF, foram prestadas as informações dos fatos geradores junto à Secretaria do Tesouro Nacional e à RFB, através de informes alocados em Processos Administrativos, é possível afirmar que foi cometido algum ilícito tributário? Por quê?
R: Não, conforme resposta dada ao quesito anterior.
É o nosso parecer.
São Paulo, 9 de setembro de 2016.
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Kiyoshi Harada Marcelo Kiyoshi Harada
OAB/SP 20.317 OAB/SP
[1] Cf. nosso Direito Financeiro do Tributário. 25ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, V. 166-170.
[2] “Art. 2º Os títulos de que trata o caput do art. anterior terão as seguintes denominações:
I – Leras do Tesouro Nacional – LTN, emitidas preferencialmente para financiamento de curto e médio prazo;
II – Letras Financeiras do Tesouro – LFT, emitidas preferencialmente de curto e médio prazo;
III – Notas do Tesouro Nacional – NTN, emitidas preferencialmente para financiamentos de médio e longo prazo.
Parágrafo único. Além dos títulos referidos neste artigo, poderão ser emitidos certificados, qualificados no ato da emissão, preferencialmente para operações com finalidades específicas definidas em lei”.
por Kiyoshi Harada
Fonte: Harada Advogados
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