No início da minha carreira profissional, ainda estagiário, comecei a frequentar, levado pelo professor Alberto Xavier, os almoços promovidos pela Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF) no Rio de Janeiro. Naqueles eventos, advogados, autoridades, acadêmicos, enfim, os ditos operadores do direito tributário, eram chamados a proferir breves palestras sobre determinados temas, seguidas de debates. O almoço era uma excelente oportunidade de aprendizado e de convívio social com colegas de profissão. Nunca me esqueço do papel de liderança do professor Condorcet Rezende. Sempre bem humorado, com um sorriso no rosto, simplificava para os jovens os complexos assuntos em debate e, principalmente, nos brindava com uma perspectiva histórica sobre os temas em discussão. Quando um assunto “novo” surgia, Condorcet Rezende nos contava “causos” sobre problemas análogos (ou por vezes idênticos) que já se debatiam, por exemplo, no âmbito da Diretoria do Imposto de Renda (DIR) nos primórdios da Era Vargas. A dimensão histórica do direito tributário era uma grande novidade com que nos deliciávamos.
Não pude deixar de recordar essas memórias ao longo do III Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro, realizado pela ABDF na semana passada, muito justamente em homenagem a Condorcet Rezende. O Congresso foi um dos “eventos teste” para o Congresso da International Fiscal Association (IFA), que será no Rio de Janeiro em 2017, organização da qual a ABDF é a representante no Brasil desde a sua fundação. Com mais de 600 inscritos, em três dias memoráveis, representantes de todos os “credos” debateram, no mais alto nível, inúmeros temas do direito tributário. Alguns atualíssimos, sobretudo no plano internacional[1], outros que há muito se repetem, sem solução, no plano interno[2].
Logo na conferência de abertura, Agostinho Tavolaro, Presidente Honorário da ABDF, traçou um histórico dos 65 anos da instituição que foi fundada em 1949 por tributaristas de escol como Gilberto de Ulhôa Canto, Rubens Gomes de Sousa e Tito Rezende. A intervenção de Tavolaro foi emocionante, pois ilustrada por um álbum de retratos dessas personalidades e de outros profissionais que também militaram no direito tributário. Eram fotografias tiradas em colóquios, seminários, congressos e almoços-debates realizados pela ABDF ao longo de todos esses anos. Muitos foram reconhecidos; nas fotos mais recentes, muitos dos presentes se reconheceram, e as imagens, que seguiram sendo projetadas, proporcionaram um momento inesquecível de celebração da memória.
Memória da história de uma instituição umbilicalmente ligada à história do direito tributário brasileiro. Em seu seio foram gestados, sob a liderança de Gomes de Sousa e Ulhôa Canto, a Emenda Constitucional 18, de 1º de dezembro de 1965, e o Código Tributário Nacional (CTN), Lei 5.172, de 25 de outubro de 1966, pilares do nosso direito tributário positivo. Podemos ousar dizer que o direito tributário tal como conhecemos e reconhecemos nasceu no Brasil naquele momento, eis que, até então, era visto como um simples braço do direito financeiro e orçamentário.
Foi sob a inspiração de Gomes de Sousa e Ulhôa Canto que proferimos nossa palestra a respeito do cenário atual e futuro da tributação dos lucros obtidos por sociedades controladas no exterior. E por isso mesmo iniciamos a exposição pelo artigo 43 do CTN — lei complementar disciplinadora do fato gerador dos impostos relacionados da Constituição — que é categórico em apenas permitir a tributação pelo imposto de renda de acréscimos patrimoniais econômica ou juridicamente disponíveis[3]. A lei ordinária que preveja a incidência do imposto de renda sobre aquilo que não configure um acréscimo patrimonial disponível será inconstitucional. Esse foi o caminho traçado pelo artigo 74 da MP 2.158-35/01 e parece ser também, lamentavelmente, o caminho escolhido uma vez mais pelo Poder Executivo na Medida Provisória 627/2013[4].
As pretensões do Fisco procuram amparo no parágrafo 2º do artigo 43 do CTN, acrescentado pela Lei Complementar 104/2001, nos termos do qual “na hipótese de receita ou de rendimento oriundos do exterior, a lei estabelecerá as condições e o momento em que se dará sua disponibilidade, para fins de incidência do imposto referido neste artigo”.
Sucede, porém, que o parágrafo 2º do artigo 43 do CTN não pode ser interpretado desgarrado de seu caput, fora do contexto em que se insere. A autorização para estabelecer “condições e momento” não é autorização para estabelecer presunções ou ficções. O acréscimo patrimonial em que a renda se traduz há de estar previamente disponível para o seu titular para poder ser validamente tributado. O poder de dispor pressupõe titularidade.
Estando traçados pelo caput do artigo 43 do CTN os contornos do fato gerador, a autorização contida no parágrafo 2º limita-se a permitir que o legislador ordinário diga em que condições e que momento se pode considerar ter havido a aquisição da titularidade sobre o lucro da sociedade controlada estrangeira, condição sine qua non do poder de disposição. Ou seja, pode a lei ordinária dizer em que momento temporal nas diversas fases do processo de “disponibilização”, o lucro auferido através de participações societárias no exterior será reputado como disponibilizado. Nunca, jamais, a lei ordinária poderá, sem incidir em inconstitucionalidade, dizer que há disponibilidade enquanto titularidade não houver.
Trata-se, na verdade, da clássica problemática da utilização indevida do recurso à ficção legal para contornar normas imperativas de grau hierárquico superior, questão magistralmente estudada por Gilberto de Ulhôa Canto[5]. Nesse estudo, o autor começa por observar que tanto as presunções quanto as ficções fazem parte do mesmo processo gnoseológico figurativo, pois em ambas chega-se a uma realidade legal que não coincide com a realidade fenomenológica conhecida através dos meios de percepção direta. Na presunção toma-se como sendo verdade de todos os casos aquilo que é a verdade da generalidade dos casos iguais, em virtude de uma lei de frequência ou de resultados conhecidos, ou em decorrência da previsão lógica do desfecho. Na ficção, para efeitos pragmáticos a norma atribui a determinado fato, coisa, pessoa ou situação características ou natureza que no mundo real não existem, nem podem existir, enquanto na presunção a regra é estabelecida dentro dos limites da realidade possível inferida de fatos semelhantes já ocorridos e que, portanto, são não só possíveis como prováveis.
Aplicando esses ensinamentos ao caso do artigo 74 da MP 2.158-35/01, pode-se concluir que a afirmação segundo a qual os lucros de controladas no exterior se reputam disponibilizados no momento da sua apuração reveste a natureza de umaficção legal, pois equipara a uma determinada realidade — a disponibilidade de lucros — uma outra — a apuração do lucro — que consabidamente não tem aquele efeito.[6]
O mesmo se diga da MP 627/13, que prevê sistemática análoga, mas, agora, ainda mais grave. Com efeito, na sistemática anterior, sob a égide da Instrução Normativa 213/02, o objeto da tributação (ilegal, diga-se de passagem)[7] era o resultado positivo da equivalência patrimonial, capturado na relação com as controladas diretas e que equivaleria ao “lucro” potencialmente distribuível. A discussão jurídica centrava-se na (in)existência de disponibilidade sobre tal resultado quando meramente apurado pela controlada. Já na nova sistemática, a tributação incide sobre os resultados positivos de todas as controladas, inclusive e especialmente das indiretas. Como não há possibilidade de compensação de perdas na cadeia ascendente de participações, operando-se a tributação per saltum, não se pode mais falar em tributação antecipada de um resultado potencialmente distribuível. E isso simplesmente porque aqueles resultados indiretos nunca chegarão às mãos da controladora no Brasil. O fluxo dos lucros das controladas indiretas está sendo desviado de seu curso natural.
Por isso que afirmamos que no sistema da MP 627/2013, à discussão da ausência de disponibilidade, antecederá a discussão a respeito da efetiva existência de um acréscimo patrimonial. Os limites postos pelo artigo 43 do CTN estão sendo ultrapassados por mais uma inconstitucional ficção legal de acréscimo patrimonial disponível.
Temos acompanhado o processo de aprovação da Medida Provisória 627/2013 e lamentamos muito que, nessa matéria de lucros no exterior, tenha predominado o interesse arrecadatório. Teria sido um excelente momento para construir-se uma nova legislação para disciplinar a questão, que respeitasse os acordos internacionais e não tolhesse a competitividade das nossas multinacionais no exterior. Competitividade essa não só das empresas nacionais, mas também de empresas brasileiras controladas por estrangeiros que, dada a relevância do Brasil no continente, naturalmente o escolheriam como plataforma de investimentos nos demais países da região, trazendo para nós o centro de imputação jurídico-econômica dos resultados regionais[8].
Infelizmente as alterações promovidas pelo relator até agora não foram profundas o bastante para aperfeiçoar o sistema. As emendas acolhidas visaram apenas reduzir o custo da tributação prevendo-se, por exemplo, (i) a faculdade de consolidação de parcelas do ajuste do valor do investimento em controlada direta ou indireta no exterior, até 2022, em certas situações (artigo 73); (ii) a dedução de um crédito presumido de 9% relativo a investimentos em pessoas jurídicas no exterior que realizem as atividades de fabricação de bebidas, de fabricação de produtos alimentícios e de construção de edifícios e obras de infraestrutura (artigo 83, parágrafo 10); e (iii) a faculdade de pagamento em até 8 anos do imposto de renda e da CSLL incidentes sobre os resultados de certas controladas e coligadas no exterior, com “entrada” de 12,5% e parcelas subsequentes com a incidência de juros à taxa Libor (artigo 86).[9]
Tais medidas não passam de paliativos para reduzir os custos com a tributação, mas não transmitem qualquer segurança jurídica para os investidores. As “bondades” poderão ser contornadas pelo Executivo em próximas medidas provisórias, sempre que precise saciar seu apetite arrecadatório. Evidentemente esse não é o melhor caminho, pois enquanto o puro interesse por arrecadação presidir a lógica deste sistema, não haverá paz e a litigiosidade prosseguirá por mais anos e anos a fio, afastando investidores, gerando insegurança jurídica e falta de confiança no país.[10]
O sistema de tributação de lucros de controladas no exterior que “nasceu torto” seguirá “crescendo torto”, perdendo-se uma excelente oportunidade de “endireitá-lo”.
***
Parabéns para a ABDF. Um brinde aos seus 65 anos, um brinde ao Rio de Janeiro e aquele fraternal abraço ao nosso Condorcet.
[1] Referimo-nos, por exemplo, aos painéis dedicados aos temas “Base Erosion Profit Shifting” (BEPS), novas regras de preços de transferência e regras de subcapitalização.
[2] Não podemos deixar de citar o painel sobre conflitos de competência no ISS onde foi até motivo de ironia a eternização das discussões a respeito do local da ocorrência do fato gerador e as permanentes tentativas de caracterização de certas atividades que não envolvem um facere como serviços tributáveis.
[3]“(...) ‘renda’ é, para efeitos fiscais, o acréscimo patrimonial líquido verificado entre duas datas predeterminadas. Nesta última frase, a palavra-chave é ‘acréscimo’: com efeito, a característica fundamental da renda (....) é a de configurar uma aquisição de riqueza nova que vem aumentar o patrimônio que a produziu e que pode ser consumida ou reinvestida sem o reduzir”, Rubens Gomes de Sousa, in Pareceres – I, Imposto de Renda, São Paulo, 1975, p. 66 e ss
[4] Nos termos da redação original do art. 72 da MP 627/2013, “a pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil ou a ela equiparada, nos termos do art. 79, deverá registrar em subcontas da conta de investimentos em controlada direta no exterior, de forma individualizada, o resultado contábil na variação do valor do investimento equivalente aos lucros ou prejuízos auferidos pela própria controlada direta e suas controladas, direta ou indiretamente, no Brasil ou no exterior, relativo ao ano-calendário em que foram apurados em balanço, observada a proporção de sua participação em cada controlada”, acrescentando o art. 73 que “a parcela do ajuste do valor do investimento em controlada, direta ou indireta, domiciliada no exterior equivalente aos lucros por ela auferidos antes do imposto sobre a renda, deverá ser computada na determinação do lucro real e na base de cálculo da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL da pessoa jurídica controladora domiciliada no Brasil , observado o disposto no art. 72”.
[5] Presunções no Direito Tributário, in Ives Gandra da Silva Martins (org.), Cadernos de Pesquisas Tributárias n.º 9 (1984), 1 ss.
[6] Cfr. Alberto Xavier, Direito Tributário Internacional do Brasil (7ª ed.), 2010, p. 409.
[7] O art. 25, § 6º da Lei 9.249/95 é categórico em prever que a neutralidade tributária da equivalência patrimonial também se aplica aos resultados da avaliação dos investimentos no exterior. A ilegalidade da IN 213/02 já foi reconhecida pelo STJ no RESP n.º 1.211.882/RJ (Rel. Min. Mauro Campbell Marques) e mais recentemente no voto do Ministro Ari Pargendler proferido no RESP n.º 1.325.709/RJ (cfr. http://www.conjur.com.br/2014-mar-26/stj-suspende-julgamento-tributacao-lucro-controladas-exterior)
[8] Como bem chamou atenção o Dr. André Martins de Andrade em nosso painel.
[9] Referimo-nos aos artigos da MP 627/2013 constantes da última versão aprovada pela Comissão Mista da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Cfr. http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t=147274&tp=1
[10] Essas questões foram magistralmente abordadas pelo Professor peruano Andrés Valle, vice-presidente da IFA, em sua conferência de abertura do III Congresso Internacional de Direito Tributário do Rio de Janeiro.
por Roberto Duque Estrada é advogado no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. Sócio do escritório Xavier, Duque Estrada, Emery, Denardi Advogados.
Fonte: Conjur
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