Tanto as autoridades fazendárias quanto os nossos legisladores gostam muito de errar em matéria tributária. Mas os legisladores levam vantagem, pois quando alertados sobre o erro procuram afastá-lo. As autoridades, especialmente aquelas que ocupam cargos a partir de concursos públicos, preferem persistir no erro, na esperança de provar que toda a humanidade está equivocada, pertencendo só a eles o privilégio do acerto. Porque fizeram um concurso público, imaginam-se em nível superior a todos os demais cidadãos.
Exemplos dessa dicotomia são os recentes casos onde, de um lado, um deputado pretendia criar gratificação beneficiando quem denunciasse atos de sonegação e, de outro lado, um deputado sugeriu que se criasse taxa de R$ 15 a R$ 25, adicionada ao IPVA e cobrada dos proprietários de veículos, destinando-se a arrecadação à construção de ciclovias.
O projeto da denúncia foi analisado em 14/11/2011 e logo em seguida seu autor o retirou, reconhecendo que faltava base legal à ideia. Agora, o tal adicional ao IPVA ou taxa de bicicleta para quem tem carro (sic) parece que também foi descartado, até porque, neste caso, trata-se de aberração jurídica pior, pois taxa é tributo definido no artigo 77 do C TN, isto na hipótese de admitirmos que o proprietário do veículo possa vir a utilizar potencialmente a ciclovia.
Na verdade, o automóvel no Brasil é o grande vilão para muita gente. Menos, é claro, se o carro é oficial. Seu preço embute cerca de 50% de impostos, pagamos um combustível caríssimo e também tributado, isto é pagamos porque o possuímos e também pelo uso. Aliás, o IPVA é um imposto absurdamente indevido, verdadeira aberração jurídica, pois faz incidir imposto sobre patrimônio sobre bem de consumo, como já analisamos em 21/11/2011.
Mas se o legislador quase sempre erra ao imaginar a possibilidade de criar tributo novo, muito pior faz a autoridade fiscal quando pensa que pode criar e aplicar qualquer aberração jurídica sob a justificativa de combate à sonegação.
Estamos num regime democrático de direito e assim, há normas a serem obedecidas, especialmente as constitucionais. Essa história de que o fim justifica os meios não tem qualquer valor nesse regime.
Como qualquer aluno de primeiro ano de Direito sabe, enquanto o cidadão comum pode fazer qualquer coisa que a lei não proíba, o servidor público só pode fazer o que a lei expressamente permite.
Aos concursos de auditores fiscais, tanto na área federal quanto estadual ou municipal, são admitidos apenas candidatos com formação superior. Mas essa graduação universitária pode ser em odontologia, filosofia, arquitetura, veterinária, geologia, enfim, qualquer área de conhecimento.
Isso já fez com que um engenheiro eletricista, na Receita Federal, se visse no direito de considerar um “monte de besteiras” o despacho de um juiz que havia concedido uma liminar, que ele cumpriu a contragosto, garantindo que ela seria cassada. A liminar foi mantida por uma sentença, depois confirmada pelo TRF, ou seja, prevaleceu o “monte de besteiras”, que não sucumbiu à enorme cultura de apostilas do servidor.
Mas as autoridades fazendárias são muito criativas. Recentemente criou-se um mecanismo que implica em bloquear a emissão de nota fiscal caso o destinatário da mercadoria tenha algum problema em seu cadastro da repartição.
Através de um ato administrativo, denominado Comunicado CAT 05 de 17/2/2012, a Fazenda do Estado de São Paulo declara que o Confaz e o secretário da Receita Federal baixaram um tal de Ajuste SINIEF 10/11 que permitiria denegar a emissão da NFe.
O Confaz é a reunião dos secretários de Fazenda dos Estados. Não tem, como é óbvio, qualquer parcela de poder legislativo, ou seja, de criar leis. De igual forma, o secretário da Receita Federal também não tem. Nenhuma dessas pessoas recebeu um único voto para sua nomeação ao cargo que ocupam. Portanto, não possui o fisco estadual qualquer poder para suspender inscrição, a não ser mediante o devido processo legal. A Constituição garante no artigo 5° o acesso ao Judiciário para aqueles que se sintam prejudicados.
Ora, se o contribuinte obteve inscrição, presume-se que tenha ele comprovado as condições legais para possuí-la: inscrição no registro de comércio, instalação apropriada para seu ramo de atividade, etc. A inscrição não é fornecida de modo irresponsável, não se obtém em troca de propina nem pode ser obtida por outro meio ilícito.
Se uma empresa tem inscrição e, de repente, ela é considerada inapta, é indispensável que o contribuinte seja regularmente notificado da suposta irregularidade e possa defender-se. Mas não é isso que está ocorrendo.
Servidores públicos que se julgam muito importantes e poderosos cancelam a inscrição, publicam a decisão no Diário Oficial e o contribuinte que trate de correr atrás do prejuízo, tentando defender-se sem poder vender ou comprar qualquer coisa.
Quando ocorre esse cancelamento de inscrição, deve o contribuinte defender-se através do Judiciário. Há inúmeras decisões que garantem isso, inclusive duas súmulas:
Súmula 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.
Súmula 547 – Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais.
Caso o fisco alegue que não se trata de débito de tributo, mas de irregularidades cadastrais, são válidas outras decisões do STF inclusive:
“RE 57.235, in RTJ 33/99 – “Não se permite à autoridade o bloqueio ou a suspensão das atividades profissionais do contribuinte faltoso.”
O ministro Marco Aurélio (STF) em entrevista ao ConJur registrou a perplexidade de todo operador do direito quando se constata a inobservância dos posicionamentos adotados pacificamente pelo Judiciário, afirmando:
“A ausência de respeito às decisões do Supremo revela a quadra do nosso Estado, que talvez não seja, como se diz na nomenclatura, um Estado Democrático de Direito. É inconcebível que o Supremo decida, e decida de forma reiterada, e o Poder Público — gênero, estados, municípios ou a União — ignore a decisão. O que nós precisamos no Brasil é de ética. É de homens, principalmente homens públicos, que observem a ordem jurídica constitucional.”
Caso o fisco insista na prática de atos ilegais, devemos acionar nossas entidades de classe, inclusive a OAB, para que sejam processados os responsáveis. O fisco não tem o direito de errar de forma tão reiterada, causando prejuízos às empresas e mesmo diante de decisões judiciais que reconhecem o abuso, ainda insistir em recursos protelatórios e destituídos de fundamento. Os advogados do fisco devem ser representados perante o Tribunal de Ética da OAB pela infração que cometem e que está prevista na lei.
por Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.
Fonte: Conjur
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