Desaparecido há três anos, Domingos Cravo
marcou gerações de alunos e de professores. Quem usufruiu do privilégio de com
ele ter lidado, testemunhou o elevado nível de conhecimentos e o apelo a um
permanente espírito crítico.
Fez três anos, no passado dia 18 de março,
que vimos partir o Prof. Domingos Cravo, um homem que moldou decisivamente a
minha forma de «pensar a Contabilidade» e a de muitos outros que, em algum
momento, se cruzaram no seu caminho.
O Prof. Domingos Cravo foi, e será sempre,
uma figura marcante da Contabilidade em Portugal, nas suas mais diversas áreas
de atuação: professor, normalizador, TOC e ROC.
Como TOC e ROC colaborou assiduamente com
as respetivas Ordens profissionais, designadamente na formação dos seus
membros. A sua intervenção ativa, capacidade crítica e o seu domínio de conhecimentos
valeram-lhe, em julho de 2009, a nomeação para presidente da Comissão de
Normalização Contabilística, função que desempenhou até aos seus últimos dias
com zelo, entusiasmo e dedicação exemplares.
Mas terá sido o papel de professor aquele
que, com maior gozo, terá desempenhado. Este texto pretende ser, assim, uma
humilde e singela homenagem ao Prof. Domingos Cravo. Centrando-me no ensino da
Contabilidade, procuro partilhar as preocupações e reflexões do Professor sobre
uma temática que lhe era muito querida, e relativamente à qual deixou a sua
marca, no modode ensinar a Contabilidade.
Para esta homenagem, que denominei «Os
paradigmas do ensino da Contabilidade segundo o Professor Domingos Cravo»,
baseei-me no seu artigo publicado, em 1999, na Revista Estudos do ISCAA,
intitulado «O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior – Tendências. Algumas
Questões/Reflexões»1, embora complementado com outros artigos de opinião e
entrevistas2 mais recentes, a última das quais publicada na revista da OTOC, em
fevereiro de 2010.3
A essência do paradigma da utilidade pode,
na minha opinião, ser reinterpretada no contexto do ensino da Contabilidade: as
instituições de ensino superior devem formar estudantes com conhecimentos
adequados à satisfação das necessidades dos seus utilizadores, os quais serão,
numa primeira análise, as entidades em que os estudantes exercerão a sua
profissão e, numa segunda análise, a própria sociedade que toma decisões com
base na informação preparada por aqueles futuros profissionais.
Ora, uma das grandes preocupações do Prof.
Domingos Cravo era, precisamente, a de encontrar o melhor modelo de ensino que
permitisse formar profissionais com competências que fossem ao encontro das
necessidades das organizações, da própria sociedade.
À questão que o próprio Professor reconhece
parecer óbvia - «Ensinamos para quê?» - responde que, evidentemente, «ensinamos
para que os formandos possam vir a exercer uma profissão.» Contudo, esta
resposta levanta novas questões, centrando agora o Professor o problema «na
análise do gap que existe entre a formação teórica, “fornecida” pelas escolas e
o nível de conhecimentos práticos que a profissão espera poder encontrar dos
seus “novos” membros.»
Ou seja, na perspetiva do Prof. Domingos
Cravo, nem sempre as escolas se têm pautado por aquilo a que designo de
«paradigma da utilidade aplicado ao Ensino», porquanto nem sempre têm
conseguido formar estudantes que respondam inteiramente às necessidades e às
exigências do mercado de trabalho.
Modelos
de ensino
Se assim é, impõe-se então identificar as
causas e as soluções para tal desiderato, para o que o Professor começa por
identificar três modelos puros de ensino:
- Um primeiro, o «equivalente ao sistema
francês, cujo estudo das disciplinas contabilísticas assenta basicamente no
estudo do [então] plano (oficial) de contabilidade [atualmente SNC]»;
- Um segundo modelo, «baseado no estudo de
um conjunto de normas, v.g. as NIC [Normas Internacionais de Contabilidade]»; e
- Um terceiro «sistema de ensino que dá
prevalência ao estudo teórico da disciplina.»
Na opinião do Professor, o número de cursos
de Contabilidade que adota os dois primeiros modelos (isto é, assentes em
normas) é «largamente superior.» As razões que, em seu entender, «explica[m] –
embora não justifique[m]» esta situação
prendem-se, por um lado, com um «excesso de opções pragmáticas na estruturação
dos programas» e, por outro lado, com «um conjunto de opções eventualmente mais
cómodas de alguns docentes.»
Mas, se assim é, pergunta-se: será através
do conhecimento predominante da normalização contabilística que o interesse
informativo das empresas é maximizado, ou seja, será aquele modelo de ensino o
mais útil ao mercado?
A este respeito, o Professor partilha a
ideia de que «uma boa formação teórica cimenta o conhecimento e permite encarar
com maior preparação os desafios da mudança. Um estudante médio, possuidor de
uma razoável formação ao nível conceptual reunirá excelentes condições para se
adaptar a qualquer alteração normativa.» Evidentemente que, com isto, o
Professor não defendia que a «formação deverá ser exclusivamente teórica.» Nas
suas palavras, «uma solução mitigada arrasta maiores vantagens para o processo
de formação.»
Conhecidas estas brevíssimas reflexões
teóricas do Professor, acerca do que entendia ser o mais adequado modelo de
ensino da Contabilidade, importa agora complementar esta sua visão com a
evidência empírica, ou seja, aferir se, verdadeiramente, o Professor aplicou na
prática a sua conceção de um ensino baseado «no pensar a Contabilidade.»
Ora, a evidência empírica existe e
traduz-se, por exemplo, no modelo de ensino que o Professor sempre defendeu e
implementou na “sua” escola (ISCA de Aveiro), e que naturalmente foi
conseguindo incutir nos colegas que com ele trabalharam. Ainda numa das suas
últimas entrevistas, à OTOC, em 2010, o Professor referia: «Com o passar dos
anos cada vez mais me vou convencendo do acerto que é a lecionação na base da
Teoria da Contabilidade, em vez da lecionação na base de um qualquer sistema
normativo», argumentando que os «fundamentos da primeira são perenes.»
Muitos de nós são o produto deste modelo de
ensino, que nas palavras do Professor nos conduz a um nível superior: do «aprender a aprender. » Como
muitas vezes referia «é preciso pensar a Contabilidade» e, tal, concretiza-se
quando a definição do plano de estudos desenvolva «a aptidão para a
interrogação, o espírito lógico e a crítica.» Este foi, em minha opinião, um
dos seus mais notáveis legados: o pensamento crítico e a partilha do saber!
Mas, muito embora fosse este o modelo de
ensino que, não só defendia, como aplicava na prática, o Professor alertava
para o facto de conhecer «algumas escolas onde, verdadeiramente, não se ensinou
Contabilidade, mas apenas se ensinou a mecânica inerente à utilização do
[então] POC...» enfrentando «alguma dificuldade de adaptação» às mudanças
induzidas pelo SNC.
Uma vez mais, o Professor tinha razão!
Tinha razão quando nos incutiu o ensino com base na Teoria da Contabilidade,
sem um total apego a um normativo, afastando-nos de uma qualquer “folha
cor-de-rosa” com códigos de contas, que muitos identificavam como sendo o já
desaparecido Plano Oficial de Contabilidade. Como dizia o Prof. Domingos Cravo,
em bom rigor, em SNC continuámos a ensinar os mesmos conceitos, princípios e
pressupostos que já ensinávamos antes. O grande esforço de adaptação foi à nova
estrutura do SNC e à respetiva mudança de terminologia.
O
sucesso da Simulação Empresarial
Ainda no que respeita à metodologia de
ensino, o Professor foi percursor na idealização, e posterior aplicação no
ISCA-UA, do ensino complementado com o estudo de casos. Já em 1999, o Professor
auspiciava que «o ensino magistral-tutorial deixará de predominar na docência
da disciplina para, numa primeira fase, vir a ser complementado pelo estudo de
casos, saltando em estádio mais evoluído para um sistema de ensino interativo.»
E, no ISCA-UA, assim o é, por mérito do
Professor e, claro, de todos os restantes colegas que implementaram (e
continuam a desenvolver na prática) a ideia inovadora do Professor, que se
traduziu na unidade curricular, que hoje, sob a denominação de Simulação
Empresarial, é um reconhecido caso de sucesso.
O Professor defendia, igualmente, que «a
atuação das escolas não deve ser induzida pelas mudanças das normas, mas devem,
isso sim, ser indutoras das mudanças. Só assim cumprem a sua missão.» Nas
palavras do Professor, «os alunos com quem vou iniciar o novo curso esperam
legitimamente que eu os auxilie a compreender aquilo que eles encontrarão nas
empresas dentro de três anos e não os instrumentos que as empresas utilizam
hoje.»
E, também neste aspeto, o Professor não se
ficou pelas palavras, pelo «dever ser», mas pelo «fazer», procurando sempre
antecipar a realidade prática. Veja-se, a título de exemplo, uma das suas
últimas contribuições. Corria o ano de 2008, quando ainda estava em discussão
pública o projeto do SNC, e o Professor já lecionava as unidades curriculares
de Contabilidade Financeira, acolhendo a nova terminologia e filosofia
subjacente ao novo modelo de normalização. De tal modo que, em 2010, ano da
aplicação pela primeira vez do SNC, já do ISCA-UA saíam os primeiros
licenciados com a sua formação, não só em Teoria da Contabilidade, mas mitigada
com a aplicação prática do normativo que estava em vigor quando aqueles alunos
entraram no mercado de trabalho.
O Professor conseguiu, deste modo, que o
ensino da Contabilidade cumprisse com o paradigma da utilidade, fosse útil aos
profissionais, às entidades que os empregam e, em última instância, à
sociedade.
Todas estas evidências, e muitas outras
aqui não referidas, são um legado que o Prof. Domingos Cravo deixou ao ensino
da Contabilidade em Portugal e a cada um de nós que, em algum momento, foi
“tocado” pelo seu saber e a sua forma de ensinar a Contabilidade. Quem usufruiu
do privilégio de o ter tido como Professor, bem pode testemunhar o elevado
nível de conhecimentos que transmitia em cada aula, sempre com o entusiasmo que
lhe era característico.
Cabe-nos seguir o seu exemplo… e para isso
podemos contar com os ensinamentos, que perdurarão para sempre na memória
daqueles que com o Professor se cruzaram, assim como nos livros e artigos que
continuarão a influenciar outros na forma de «pensar a Contabilidade.»
Bem-haja, Professor! Continue a inspirar-me…
continue a inspirar-nos…
Notas
1 Não obstante este artigo ter já uma
década e meia, a visão e as ideias nele explanadas são intemporais e
perfeitamente aplicáveis à atualidade (ver Revista Estudos do ISCAA (1999),
II.ª Série, n.º 5: 101-112).
2 Os excertos dos textos do Prof. Domingos
Cravo estão devidamente assinalados a negrito entre aspas.
3 Ver em Revista TOC (2010), n.º 119: 6-13.
Por Carla Carvalho - Docente do ISCA-UA
Fonte: Revista OTOC n° 180
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