quinta-feira, 14 de maio de 2015

14/05 Os paradigmas do ensino da Contabilidade segundo o Professor Domingos Cravo - uma homenagem

Desaparecido há três anos, Domingos Cravo marcou gerações de alunos e de professores. Quem usufruiu do privilégio de com ele ter lidado, testemunhou o elevado nível de conhecimentos e o apelo a um permanente espírito crítico.

Fez três anos, no passado dia 18 de março, que vimos partir o Prof. Domingos Cravo, um homem que moldou decisivamente a minha forma de «pensar a Contabilidade» e a de muitos outros que, em algum momento, se cruzaram no seu caminho.

O Prof. Domingos Cravo foi, e será sempre, uma figura marcante da Contabilidade em Portugal, nas suas mais diversas áreas de atuação: professor, normalizador, TOC e ROC.
Como TOC e ROC colaborou assiduamente com as respetivas Ordens profissionais, designadamente na formação dos seus membros. A sua intervenção ativa, capacidade crítica e o seu domínio de conhecimentos valeram-lhe, em julho de 2009, a nomeação para presidente da Comissão de Normalização Contabilística, função que desempenhou até aos seus últimos dias com zelo, entusiasmo e dedicação exemplares.

Mas terá sido o papel de professor aquele que, com maior gozo, terá desempenhado. Este texto pretende ser, assim, uma humilde e singela homenagem ao Prof. Domingos Cravo. Centrando-me no ensino da Contabilidade, procuro partilhar as preocupações e reflexões do Professor sobre uma temática que lhe era muito querida, e relativamente à qual deixou a sua marca, no modode ensinar a Contabilidade.

Para esta homenagem, que denominei «Os paradigmas do ensino da Contabilidade segundo o Professor Domingos Cravo», baseei-me no seu artigo publicado, em 1999, na Revista Estudos do ISCAA, intitulado «O Ensino da Contabilidade no Ensino Superior – Tendências. Algumas Questões/Reflexões»1, embora complementado com outros artigos de opinião e entrevistas2 mais recentes, a última das quais publicada na revista da OTOC, em fevereiro de 2010.3

A essência do paradigma da utilidade pode, na minha opinião, ser reinterpretada no contexto do ensino da Contabilidade: as instituições de ensino superior devem formar estudantes com conhecimentos adequados à satisfação das necessidades dos seus utilizadores, os quais serão, numa primeira análise, as entidades em que os estudantes exercerão a sua profissão e, numa segunda análise, a própria sociedade que toma decisões com base na informação preparada por aqueles futuros profissionais.

Ora, uma das grandes preocupações do Prof. Domingos Cravo era, precisamente, a de encontrar o melhor modelo de ensino que permitisse formar profissionais com competências que fossem ao encontro das necessidades das organizações, da própria sociedade.

À questão que o próprio Professor reconhece parecer óbvia - «Ensinamos para quê?» - responde que, evidentemente, «ensinamos para que os formandos possam vir a exercer uma profissão.» Contudo, esta resposta levanta novas questões, centrando agora o Professor o problema «na análise do gap que existe entre a formação teórica, “fornecida” pelas escolas e o nível de conhecimentos práticos que a profissão espera poder encontrar dos seus “novos” membros.»

Ou seja, na perspetiva do Prof. Domingos Cravo, nem sempre as escolas se têm pautado por aquilo a que designo de «paradigma da utilidade aplicado ao Ensino», porquanto nem sempre têm conseguido formar estudantes que respondam inteiramente às necessidades e às exigências do mercado de trabalho.

Modelos de ensino

Se assim é, impõe-se então identificar as causas e as soluções para tal desiderato, para o que o Professor começa por identificar três modelos puros de ensino:

- Um primeiro, o «equivalente ao sistema francês, cujo estudo das disciplinas contabilísticas assenta basicamente no estudo do [então] plano (oficial) de contabilidade [atualmente SNC]»;

- Um segundo modelo, «baseado no estudo de um conjunto de normas, v.g. as NIC [Normas Internacionais de Contabilidade]»; e

- Um terceiro «sistema de ensino que dá prevalência ao estudo teórico da disciplina.»

Na opinião do Professor, o número de cursos de Contabilidade que adota os dois primeiros modelos (isto é, assentes em normas) é «largamente superior.» As razões que, em seu entender, «explica[m] – embora  não justifique[m]» esta situação prendem-se, por um lado, com um «excesso de opções pragmáticas na estruturação dos programas» e, por outro lado, com «um conjunto de opções eventualmente mais cómodas de alguns docentes.»

Mas, se assim é, pergunta-se: será através do conhecimento predominante da normalização contabilística que o interesse informativo das empresas é maximizado, ou seja, será aquele modelo de ensino o mais útil ao mercado?

A este respeito, o Professor partilha a ideia de que «uma boa formação teórica cimenta o conhecimento e permite encarar com maior preparação os desafios da mudança. Um estudante médio, possuidor de uma razoável formação ao nível conceptual reunirá excelentes condições para se adaptar a qualquer alteração normativa.» Evidentemente que, com isto, o Professor não defendia que a «formação deverá ser exclusivamente teórica.» Nas suas palavras, «uma solução mitigada arrasta maiores vantagens para o processo de formação.»

Conhecidas estas brevíssimas reflexões teóricas do Professor, acerca do que entendia ser o mais adequado modelo de ensino da Contabilidade, importa agora complementar esta sua visão com a evidência empírica, ou seja, aferir se, verdadeiramente, o Professor aplicou na prática a sua conceção de um ensino baseado «no pensar a Contabilidade.»

Ora, a evidência empírica existe e traduz-se, por exemplo, no modelo de ensino que o Professor sempre defendeu e implementou na “sua” escola (ISCA de Aveiro), e que naturalmente foi conseguindo incutir nos colegas que com ele trabalharam. Ainda numa das suas últimas entrevistas, à OTOC, em 2010, o Professor referia: «Com o passar dos anos cada vez mais me vou convencendo do acerto que é a lecionação na base da Teoria da Contabilidade, em vez da lecionação na base de um qualquer sistema normativo», argumentando que os «fundamentos da primeira são perenes.»

Muitos de nós são o produto deste modelo de ensino, que nas palavras do Professor nos conduz a um nível  superior: do «aprender a aprender. » Como muitas vezes referia «é preciso pensar a Contabilidade» e, tal, concretiza-se quando a definição do plano de estudos desenvolva «a aptidão para a interrogação, o espírito lógico e a crítica.» Este foi, em minha opinião, um dos seus mais notáveis legados: o pensamento crítico e a partilha do saber!

Mas, muito embora fosse este o modelo de ensino que, não só defendia, como aplicava na prática, o Professor alertava para o facto de conhecer «algumas escolas onde, verdadeiramente, não se ensinou Contabilidade, mas apenas se ensinou a mecânica inerente à utilização do [então] POC...» enfrentando «alguma dificuldade de adaptação» às mudanças induzidas pelo SNC.

Uma vez mais, o Professor tinha razão! Tinha razão quando nos incutiu o ensino com base na Teoria da Contabilidade, sem um total apego a um normativo, afastando-nos de uma qualquer “folha cor-de-rosa” com códigos de contas, que muitos identificavam como sendo o já desaparecido Plano Oficial de Contabilidade. Como dizia o Prof. Domingos Cravo, em bom rigor, em SNC continuámos a ensinar os mesmos conceitos, princípios e pressupostos que já ensinávamos antes. O grande esforço de adaptação foi à nova estrutura do SNC e à respetiva mudança de terminologia.

O sucesso da Simulação Empresarial

Ainda no que respeita à metodologia de ensino, o Professor foi percursor na idealização, e posterior aplicação no ISCA-UA, do ensino complementado com o estudo de casos. Já em 1999, o Professor auspiciava que «o ensino magistral-tutorial deixará de predominar na docência da disciplina para, numa primeira fase, vir a ser complementado pelo estudo de casos, saltando em estádio mais evoluído para um sistema de ensino interativo.»

E, no ISCA-UA, assim o é, por mérito do Professor e, claro, de todos os restantes colegas que implementaram (e continuam a desenvolver na prática) a ideia inovadora do Professor, que se traduziu na unidade curricular, que hoje, sob a denominação de Simulação Empresarial, é um reconhecido caso de sucesso.

O Professor defendia, igualmente, que «a atuação das escolas não deve ser induzida pelas mudanças das normas, mas devem, isso sim, ser indutoras das mudanças. Só assim cumprem a sua missão.» Nas palavras do Professor, «os alunos com quem vou iniciar o novo curso esperam legitimamente que eu os auxilie a compreender aquilo que eles encontrarão nas empresas dentro de três anos e não os instrumentos que as empresas utilizam hoje.»

E, também neste aspeto, o Professor não se ficou pelas palavras, pelo «dever ser», mas pelo «fazer», procurando sempre antecipar a realidade prática. Veja-se, a título de exemplo, uma das suas últimas contribuições. Corria o ano de 2008, quando ainda estava em discussão pública o projeto do SNC, e o Professor já lecionava as unidades curriculares de Contabilidade Financeira, acolhendo a nova terminologia e filosofia subjacente ao novo modelo de normalização. De tal modo que, em 2010, ano da aplicação pela primeira vez do SNC, já do ISCA-UA saíam os primeiros licenciados com a sua formação, não só em Teoria da Contabilidade, mas mitigada com a aplicação prática do normativo que estava em vigor quando aqueles alunos entraram no mercado de trabalho.

O Professor conseguiu, deste modo, que o ensino da Contabilidade cumprisse com o paradigma da utilidade, fosse útil aos profissionais, às entidades que os empregam e, em última instância, à sociedade.

Todas estas evidências, e muitas outras aqui não referidas, são um legado que o Prof. Domingos Cravo deixou ao ensino da Contabilidade em Portugal e a cada um de nós que, em algum momento, foi “tocado” pelo seu saber e a sua forma de ensinar a Contabilidade. Quem usufruiu do privilégio de o ter tido como Professor, bem pode testemunhar o elevado nível de conhecimentos que transmitia em cada aula, sempre com o entusiasmo que lhe era característico.

Cabe-nos seguir o seu exemplo… e para isso podemos contar com os ensinamentos, que perdurarão para sempre na memória daqueles que com o Professor se cruzaram, assim como nos livros e artigos que continuarão a influenciar outros na forma de «pensar a Contabilidade.»

Bem-haja, Professor! Continue a inspirar-me… continue a inspirar-nos…

Notas

1 Não obstante este artigo ter já uma década e meia, a visão e as ideias nele explanadas são intemporais e perfeitamente aplicáveis à atualidade (ver Revista Estudos do ISCAA (1999), II.ª Série, n.º 5: 101-112).
2 Os excertos dos textos do Prof. Domingos Cravo estão devidamente assinalados a negrito entre aspas.

3 Ver em Revista TOC (2010), n.º 119: 6-13.

Por Carla Carvalho - Docente do ISCA-UA

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