terça-feira, 19 de maio de 2015

19/05 A escrita, a Contabilidade e os contabilistas nas civilizações antigas do Próximo Oriente

O início da colaboração do ISCAC começa com uma viagem pelos tempos: a contabilidade é tão antiga quanto o homem que pensa. Sem deixar de ser a escrita, ou sem deixar de ser linguagem é, antes de mais, pensamento, raciocínio.

O exercício da prática contabilística impõe ao técnico oficial de contas, não só o conhecimento da técnica contabilística, mas também o domínio das teorias da contabilidade.1

Falar de doutrinas ou de teorias da contabilidade remete-nos para o campo do pensamento especulativo e reflexivo do conhecimento contabilístico, isto é, para a Filosofia da Contabilidade, onde se procura indagar das causas do objeto, do método e do fim da Contabilidade. A Filosofia da Contabilidade, na sua vertente epistemológica, é o produto do estudo, da pesquisa, da reflexão e da interpretação de muitos autores no decurso da história da humanidade, que se preocuparam em saber, não só «o que é» a contabilidade (sentido positivo), mas também «o que deve ser» a contabilidade (sentido normativo), de modo a que ela possa atingir os seus desideratos, que são o controlo da riqueza e a prestação de informação de natureza económica, financeira e patrimonial. Quer num caso quer noutro, impõe-se que se conheça também «o que foi» a contabilidade, como nasceu e como se desenvolveu, ou seja, importa ter um conhecimento da História da Contabilidade e, consequentemente, da história da profissão contabilística.

Porém, não há técnica, ou tecnologia, que não tenha por detrás a ciência e não há ciência que não tenha a sua história. Referia August Comte: «Não se conhece bem uma ciência enquanto não se conhecer a sua história»2 ou, como defende, atualmente, Amorim da Costa: «A História da Ciência é a História da evolução da humanidade onde o homem melhor transparece e melhor se afirma em toda a sua grandeza, onde cada indivíduo é o elo de uma cadeia ininterrupta começada há muito tempo antes de nós e que continuará depois de nós.»3

Perde-se na noite dos tempos a data a partir da qual o homem passou a ter conhecimento contabilístico. Mesmo antes da existência da escrita, e da existência de moeda, era possível encontrar por aí o homo ratiocinator (o homem contabilista) de mãos dadas, ora com o homo economicus, ora com o homo sapiens. O nosso amigo e saudoso Professor Lopes de Sá ensinou-nos que a Contabilidade existe desde o Paleolítico Superior, ou seja, há cerca de 20 mil anos4, ou até antes dessa data (nas eras Pré-líticas), segundo Masi.5

A escrita, que apareceu com os povos da Suméria, na Baixa Mesopotâmia, no IV milénio antes de Cristo (a.C.), marcou a entrada da humanidade na História e na civilização6 e permite localizar os primeiros exemplos de contabilidade escrita, pese embora em data anterior, no VI milénio a.C., seja provável que o homem primitivo tivesse procedido a formas rudimentares de contagem de bens, praticando a contabilidade, quando inventariava os seus instrumentos de caça ou de pesca, ou quando procedia à contagem dos animais que aprendeu a domesticar. Seja como for, a contabilidade é tão antiga quanto o homem que pensa, visto que a Contabilidade, sem deixar de ser a escrita, ou sem deixar de ser linguagem é, antes de mais, pensamento, raciocínio. Nas palavras de Melis: «Desde que o homem se preocupou com o amanhã, preocupou-se, também, em “fazer contas”, mas, na verdade, nem sempre soube, racionalmente, o que fazer com as informações que guardou.»7

Havia, portanto, como defendeu Lopes de Amorim, uma «contabilidade de memória», que teria antecedido a «contabilidade escrita.»8 Mas, se quisermos ser prudentes, poder-se-á dizer, como afirma Iudícibus, que a Contabilidade «é tão antiga quanto o homem que conta e é capaz de simbolizar os objetos e seres do mundo por meio da escrita, que nas línguas primitivas tomava, em muitos casos, feição pictórica.»9

A Contabilidade é, então, anterior à escrita10. A escrita apareceu por causa da Contabilidade11. A Contabilidade desenvolveu-se com a escrita. A Contabilidade também é escrita ou escrituração, enquanto sistema de linguagem multissecular.

Dois sistemas de escrita

Com a invenção da escrita tornou-se necessário, a partir dos sinais que ela se serve, fixar, de forma material, a linguagem humana e, desse modo, conservá-la. Por outro lado, importava, concomitantemente, difundir e transmitir essa linguagem no percurso dos tempos. Eram dois os sistemas de escrita utilizados pelos povos da antiguidade do Próximo Oriente12: O alfabético, quando um signo representava cada articulação fónica da linguagem; e o não alfabético, quando um simples caracter tanto podia traduzir uma palavra (a escrita ideográfrica), como traduzir uma sílaba (a escrita silábica)13.

A escrita ideográfica caracterizava-se pelo facto de coisas ou ideias serem representadas por ideogramas, que são desenhos simplificados. A representação gráfica de coisas, animais, plantas e de tudo o que rodeasse o ser humano era, no princípio, mais desenho do que escrita, sendo através dessa pictografia que a comunicação entre os homens teve origem. Com o passar dos tempos, os esquemas pictográficos foram, paulatinamente, simplificados e acabaram por representar, não só objetos, mas também ideias (ideogramas).

Uma das mais antigas escritas ideográficas da Europa e da Ásia surgiu, por volta dos anos 3.500 a.C., nas civilizações da Mesopotâmia e da Pérsia, constituída por sinais em forma de cunha, designada de escrita cuneiforme. Durante esse IV milénio a.C., os egípcios comunicavam as suas ideias através dos hieróglifos, mais figurativos que os signos que os precederam e que perduraram até ao séc. IV a.C., embora com formato mais simplificado.

A escrita alfabética caracteriza-se pelo facto de cada palavra ser representada por um número, preciso, de signos, isto é, um signo por cada fonema. O alfabeto mais antigo, utilizado na escrita semítica, no séc. XIII a.C., foi encontrado em Ugarit (Ras Shamra), na Fenícia (atualmente Líbano) e que foi a fonte de todos os outros.

O alfabeto fenício foi, posteriormente, transmitido ao mundo do Próximo Oriente, do qual resultou o alfabeto semita dos arameus e dos hebreus e, provavelmente, o da Índia, e foi também adotado pelo Chipre (séc. IX a.C.) e adaptado pela Grécia: Creta e Melos (séc. IX a. C.).

A escrita do grego moderno continua a usar esse alfabeto adaptado de origem fenícia, tendo sido a partir dele que surgiu o alfabeto latino, o qual foi acatado pela maioria dos países modernos do Ocidente, entre os quais se encontra Portugal14.

Mas, afinal, quem foram os inventores do alfabeto? A resposta é simples: foram os escribas, ou seja, os contabilistas da Antiguidade. A Fenícia era um território com atividade comercial bastante intensa, onde se cruzavam as rotas marítimas do Oriente com as do Ocidente Mediterrânico. A escrita ou escrituração utilizada pelos escribas fenícios na atividade comercial parece ter resultado da escrita hierática egípcia, que era uma espécie de estenografia ou taquigrafia modernas, que abreviava os hieróglifos. Os escribas fenícios não fizeram mais do que transformar essas abreviaturas em carateres ou letras. Alicia Pérez e Marta Vidal referem-se a esses escribas ou contabilistas, nos termos seguintes15:

«A humanidade deveria mostrar-se reconhecida ao escrivão ou guarda-livros que trabalhando na solidão de uma feitoria, talvez no deserto, para abreviar os seus inventários começou a utilizar uns quantos sinais lineares [as letras do alfabeto] que servem hoje para recolher e perpetuar sobre a terra as mais altas manifestações do espírito, facilitando as relações entre os homens”. Parafraseando o filósofo do Renascimento, Erasmo de Roterdão, esse «Elogio da Loucura», proclamado pelas autoras ora aludidas, já tinha sido feito por Goody, quando afirmou16:

«O facto de a contabilização desempenhar um papel tão preeminente entre as utilizações da escrita na economia política do Próximo Oriente Antigo, teve uma série de consequências para o sistema cultural. Significava que se dava uma grande ênfase, não às utilizações mais complicadas – narrativa, descritiva ou literária – da linguagem, mas às de um tipo não-sintático que caracterizam a arte do guarda-livros e o cálculo.»

Bibliografia disponível para consulta em («A Ordem – Publicações – Revista TOC - Bibliografia»)

1 A importância da teoria preceder a prática profissional era reconhecida, no Renascimento, por Leonardo da Vinci (1542-1519), quando afirmava: «Aqueles que se enamoram da prática, sem a ciência, são como o navegador que entra no navio sem timão ou bússola, que jamais tem a certeza para onde vai. A prática deve ser sempre edificada sobre a teoria.»

2 August Comte (1825): Considétations Philosophiques sur les Sciences et les Savants.

3 Amorim da Costa, A. M. (2002): Introdução à História e Filosofia das Ciências, p. 21.

4 Lopes de Sá, A. (1998): História Geral e das Doutrinas da Contabilidade, p. 25.

5 Masi, V. (1964): La Ragioneria nella Preistoria e Nell’Antichitá, pp 49 e ss..

6 Cabanes, P. (2009): Introdução à História da Antiguidade, p. 125.

7 Melis, F. (1950): Storia della Ragionera, p. 3.

8 Citado por Noel Monteiro, M. (1979): Ob. cit, p. 16.

9 Iudícibus, S. (1980): Teoria da Contabilidade p. 30.

10 Conhecem-se pinturas líticas ou gravações em ossos de rena em que os desenhos e os traços aí existentes traduzem registos contabilísticos de quantidades, por regra, de animais, que registava em “conta”.

11 De facto, a escrita contabilística nasceu em data anterior à escrita comum, como comprovam estudos arqueológicos encontrados na Suméria. A prioridade dos registos patrimoniais, com objetivos de conhecimento da riqueza, prevaleceu sobre os restantes registos, segundo Goody, J. (1987): A Lógica da Escrita e a Organização da Sociedade, p. 67. Nesse sentido, também escreveu Vaz Freixo, M. J. (2011): Teorias e Modelos de Comunicação, p. 40, nos termos seguintes: «A argila, seca ao sol ou cozida no forno, desempenhou um papel decisivo na origem da escrita, tendo-se chegado à escrita por razões essencialmente económicas. Os produtos da terra eram postos em circulação e uma grande parte deles acabava como tributo ao deus da cidade. Portanto, face à necessidade de os sacerdotes disporem de um registo da diversidade de dádivas dos fiéis, surgiu a necessidade de um sistema de controlo e de contabilidade criado pela poderosa casta dos sacerdotes.» Sobre o assunto vide Lopes de Sá, A. (1998): Ob. cit., pp. 15 e 16.

12 Editorial Verbo (2004): A Enciclopédia, Vol. 8, Dir. Ed. de João Miguel Guedes, p. 3 246.

13 As únicas escritas ideográficas que sobreviveram até à era contemporânea foram a chinesa e a japonesa, e a escrita silábica é representada pela que atualmente se encontra em vigor no Japão.

14 A escrita cirílica, utilizada na Rússia e na Bulgária resultou da adaptação do alfabeto grego pelo apóstolo dos eslavos, Cirilo de Salónica, por necessidade de liturgia.

15 Pérez, A.; Vidal, M. (Cood. Ed.) (2005): História Universal, Vol. 2 – Antiguidade: Egito e Médio Oriente, p. 459.

16 Goody, J. (1987): Ob. cit., p. 115.

Por Telmo Pascoal - Professor adjunto no Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Coimbra (ISCAC)

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