domingo, 20 de agosto de 2017

Novos frontes da guerra fiscal

Dentre as relações entre Constituição e Tributação, grandes temas exsurgem das definições jurídicas, políticas e econômicas do federalismo fiscal. Com efeito, a capacidade de autonomia, autogoverno e auto-organização – afirmada aos entes federativos – apenas é possível no plano fático quando subsidiada por recursos financeiros que subsidiem seu exercício. É dizer: sem autonomia financeira, prejudica-se a autonomia política.

A partir dessas premissas é que o texto constitucional reparte entre os entes federativos a competência para instituição dos tributos ali arrolados, disposições dentre as quais se atribui aos Estados-membros a instituição do ICMS, imposto que embora seja de competência estadual, adquire importância nacional dentro da realidade tributária brasileira. Paralelamente à possibilidade de instituição, assegura-se, em princípio, também a decisão de conceder ou não benefícios fiscais relativos aos tributos abrangidos pela competência de cada ente federativo, desde que observada a reserva de lei (art. 150, §6º, da CRFB/88).

Entretanto, em relação ao ICMS o texto constitucional contempla um requisito a mais, remetendo à lei complementar a regulamentação de como as isenções, os incentivos e os benefícios fiscais referentes a esse imposto serão concedidos e revogados, fazendo menção expressa à necessidade de deliberação dos Estados e do Distrito Federal. Tradicionalmente, sempre se apontou que a ratio essendi do dispositivo é a própria reafirmação do pacto federativo e do equilíbrio entre seus entes integrantes. A finalidade da disposição constitucional específica revela uma preocupação com o fenômeno da guerra fiscal, que corresponde à disputa entre os entes federativos quanto ao oferecimento de condições fiscais mais vantajosas ao mercado, atraindo para si maiores investimentos. A concessão dos benefícios fiscais, portanto, assumiria importante vetor estratégico frente à concorrência e à rivalidade dos demais entes, em realidade oposta ao federalismo de cooperação que se pretende afirmar.

Destaca-se, aliás, que preocupação legislativa semelhante foi manifestada a nível municipal em relação ao Imposto Sobre Serviços – ISS pela Lei Complementar nº 157/2016, que, em linha com o que já determinava o art. 88 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), fixou alíquota mínima para o tributo, reafirmando a impossibilidade de concessão de isenções, incentivos ou benefícios tributários ou financeiros que resultem, direta ou indiretamente, em carga tributária menor que a decorrente da aplicação da alíquota mínima estabelecida (observadas as exceções expressamente ali estabelecidas). Adicionalmente, criou-se nova modalidade de ato de improbidade administrativa – pela inclusão do art. 10-A na Lei nº 8.429/1992 – consubstanciado na concessão ou aplicação indevida de benefício financeiro ou tributário relativo ao ISS.

Retomando o que se dispõe quanto ao ICMS, a determinação constitucional relativa à especificidade da concessão de seus benefícios restou atendida pela recepção inicial da Lei Complementar nº 24/1975[1], que estabeleceu o critério da unanimidade, ao dispor em seu art. 2º que “a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes”. Na prática, porém, a regra foi amplamente descumprida, em razão das recorrentes e sucessivas concessões de benefícios fiscais de forma unilateral pelos Estados-membros, ante a impossibilidade de obtenção de um consenso unânime no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ).

Veja-se, a propósito, a grande quantidade de Ações Diretas de Inconstitucionalidade ajuizadas junto ao Supremo Tribunal Federal relativas à temática, que fatalmente resultavam na declaração da inconstitucionalidade das leis ou atos normativos que descumpriam a regra evidenciada. Aliás, desde 2012 tramita na Corte Proposta de Súmula Vinculante (PSV 69) sobre o tema, cujo enunciado inicialmente proposto dispõe que “Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional”.

Considerada a rigidez da unanimidade, estabeleceu-se certo consenso acerca da severidade desse quórum, cuja dificuldade de cumprimento, a inviabilizar o exercício da política fiscal por parte dos Estados, culminou em estímulo à concessão unilateral de benefícios. A partir dessa noção, começaram a surgir propostas legislativas de modificação ou mitigação da regra constante na LC nº 24/1975, contexto no qual recentemente exsurgiu a Lei Complementar n° 160/2017, com a pretensão de amenizar os problemas advindos da guerra fiscal entre os Estados, no que concerne à concessão unilateral de benefícios em relação ao ICMS.

Antes que se adentre às especificidades da novidade legislativa, convém destacar que o seu tema normativo (concessão de remissão e anistia relativas a débitos de ICMS oriundos da concessão de benefícios fiscais de maneira irregular pelos Estados) já havia sido objeto de tratamento também no âmbito do CONFAZ, por meio do Convênio ICMS nº 70, de 29 de julho de 2014. O referido acordo, inicialmente ratificado por vinte e uma unidades federativas (Acre, Alagoas, Amapá, Bahia, Maranhão, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, São Paulo, Sergipe, Tocantins e o Distrito Federal), representou uma espécie de protocolo de intenções, por meio do qual as unidades signatárias se comprometeram a remitir e anistiar os débitos de ICMS, constituídos ou não, decorrentes de benefícios vinculados ao imposto, concedidos sem a aprovação unânime dos Estados no âmbito do CONFAZ, até a data da sua publicação. Previa-se, ainda, a possibilidade de continuidade de aplicação dos benefícios pelos Estados, desde que objeto de registro no CONFAZ em até noventa dias da publicação do Convênio.

Entretanto, a produção de efeitos do Convênio ICMS nº 70/2014 restou condicionada a uma série de requisitos, previstos pelo próprio acordo, quais sejam: (a) edição de Emenda Constitucional que promovesse a repartição do ICMS entre o Estado de origem e o de destino, em operações interestaduais não presenciais, que destinassem bens/serviços a consumidor final não contribuinte do imposto; (b) promulgação de leis complementares instituidoras de fundos federativos, afastando a aplicação de normas específicas da Lei de Responsabilidade Fiscal sobre o tema; (c) edição de legislação criadora de novos critérios de atualização monetária para os contratos de refinanciamento celebrados entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; e (d) edição de Resolução do Senado Federal que estabelecesse a redução gradual das alíquotas interestaduais de ICMS.

Como fruto desse compromisso federativo, em 16 de abril de 2015, foi editada a Emenda Constitucional nº 87 de 2015, que alterou as regras constitucionais de recolhimento do ICMS em operações interestaduais realizadas com contribuintes ou não do imposto. Em decorrência da nova regra, independentemente de o bem/serviço ser destinado a contribuinte ou não de ICMS localizado em outro Estado, a alíquota aplicável à operação, por ocasião da saída do bem/serviço do Estado de origem será a interestadual vigente, devendo a diferença entre ela e a alíquota interna do Estado de destino ser recolhida pelo remetente a este último. Estabeleceu-se, ainda, regra de transição com a inclusão do art. 99 no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias ADCT, de modo que somente a partir de 2019 a totalidade da diferença entre as alíquotas ficará efetivamente a cargo do Estado de destino. Na prática, a emenda constitucional objetivou solucionar importante controvérsia relativa à equalização da receita de ICMS, em decorrência das disparidades socioeconômicas regionais, acentuadas com a expansão do e-commerce.

Dentro desse pacote de medidas, podemos citar, ainda, o Projeto de Resolução do Senado nº 01/2013, em trâmite no Legislativo, com o objetivo de promover a redução das alíquotas de ICMS em operações interestaduais, nos termos do já mencionado Convênio ICMS nº 70/2014, bem como a recém-publicada Lei Complementar nº 159, de 19 de maio de 2017, que instituiu o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal, trazendo regras específicas para a renegociação das dívidas desses últimos com a União. Além de critérios e condições para o refinanciamento, a LC nº 159/2017 promoveu algumas alterações na Lei de Responsabilidade Fiscal, com a finalidade de propiciar o cumprimento do regime pelos Estados.

Finalmente, chega-se ao tema que no início se anunciou: em continuidade ao cumprimento das condições estabelecidas no Convênio ICMS nº 70/2014, foi publicada no dia 08 de agosto de 2017 a Lei Complementar nº 160/2017, originada a partir do PLS nº 130/2014, que autoriza os Estados a perdoar os créditos tributários decorrentes de benefícios fiscais relativos ao ICMS, concedidos em desacordo com o disposto no art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal, até a data da produção de efeitos da referida lei complementar, bem como a prorrogar os referidos benefícios, atendidos os requisitos legislativos.

Em verdade, nota-se que a LC nº 160/2017 seguiu a ideia inicialmente lançada pelo Convênio ICMS nº 70/2014, introduzindo algumas novidades. A primeira delas, que merece o devido destaque, é a adoção de diferente quórum deliberativo para convalidação e reinstituição dos benefícios no âmbito do CONFAZ. Com efeito, a lei afirma a possibilidade de autorização da remissão dos créditos tributários, mas esta somente será efetivada a partir da aprovação e ratificação de Convênio pelos Estados, devendo a referida aprovação ocorrer em até 180 (cento e oitenta) dias contados da data da publicação da LC nº 160/2017, sob pena de perderem eficácia os demais dispositivos da lei. Para tanto, seu art. 2º prevê um quórum reduzido, de dois terços dos Estados, para aprovação do mencionado Convênio no CONFAZ, e, cumulativamente, a aprovação de um terço das unidades federadas, integrantes das cinco regiões do país.

Apesar de se entender que essa flexibilização em relação ao quórum previsto pela LC nº 24/1975 represente um avanço – e, certamente, a única forma de possibilitar a deliberação dos Estados sobre os benefícios concedidos –, o ponto é que ele só poderá ser aplicado para sanear benefícios passados, de modo que os novos benefícios deverão continuar seguindo as regras constantes na LC nº 24/1975, dentre elas, a unanimidade para deliberação no âmbito do CONFAZ. Apesar de se tratar de um primeiro passo, esse parece ter se dado de forma mais curta do que se entende devido, já que o Legislativo foi aquém do que poderia ter ido, se tivesse aproveitado o veículo normativo adequado para efetivamente alterar o quórum previsto na LC nº 24/1975.

Ainda quanto a suas disposições, a lei traz a necessidade de publicação de todos os atos normativos que veiculem benefícios pelos Estados, bem como o registro e o depósito dos atos concessivos na Secretaria Executiva do CONFAZ, requisitos indispensáveis para possibilitar a remissão e a prorrogação dos referidos benefícios, nos termos do art. 1º da LC nº 160/2017. Permite-se, também, a prorrogação do prazo de vigência dos incentivos, em até quinze anos, de acordo com o setor econômico atingido.

Nesse ponto, é interessante notar que o substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados, que previa a redução gradual dos benefícios durante o prazo de vigência (à exceção dos relacionados ao fomento das atividades agropecuária e industrial, inclusive agroindustrial, e ao investimento em infraestrutura rodoviária, aquaviária, ferroviária, portuária, aeroportuária e de transporte urbano) não foi acolhido pelo Senado Federal quanto a esta parte. De acordo com a proposta da Câmara, os benefícios fiscais de ICMS relativos a esses setores vigorariam integralmente pelo prazo de quinze anos contados da produção de efeitos do futuro Convênio, enquanto os demais sofreriam redução gradual. Entretanto, sob a justificativa de prestigiar a isonomia, o Senado rejeitou o tratamento diferenciado conferido a tais setores e, em atenção aos possíveis efeitos negativos para a economia, igualmente rejeitou a proposta de redução gradual dos incentivos. Faculta-se, porém, aos Estados que assim decidirem, a redução dos benefícios antes de findo o prazo de prorrogação previsto na lei, além de poderem aderir aos benefícios concedidos ou prorrogados por outro Estado da mesma Região, enquanto estiverem vigentes.

Outra novidade, fruto de inclusão pela Câmara no substitutivo, e que foi mantida pelo Senado, é a previsão do art. 6º da LC nº 160/2017, que determina a aplicação de sanções financeiras, previstas nos incisos I a III do § 3º, do art. 23, da Lei de Responsabilidade Fiscal, para aqueles entes que concederem incentivos sem a aprovação mediante Convênio. Basicamente, as sanções consistem em: (i) impossibilidade de receber transferências voluntárias; (ii) impossibilidade de obtenção de garantia, direta ou indireta, de outro ente; e (iii) proibição de realização de operações de crédito, salvo as destinadas ao refinanciamento da dívida mobiliária e as que visem à redução das despesas com pessoal. Ao invés de simplesmente ocorrer a perda dos efeitos do Convênio para o Estado que conceder incentivos contrariamente a suas disposições – atingindo, de certo modo, as empresas beneficiadas, cujos efeitos da convalidação não estariam garantidos –, foram fixadas, em adição às sanções previstas pelo art. 8º da LC nº 25/1975, penalidades para o próprio ente infrator, as quais já existiam na Lei de Responsabilidade Fiscal. A aplicação das sanções, entretanto, fica condicionada ao acolhimento, pelo Ministro de Estado da Fazenda, de representação apresentada por Governador de Estado ou do Distrito Federal, oportunizada a ampla defesa e o contraditório à unidade federada infratora, mediante processo administrativo regular.

Por fim, ressalte-se que a proposta da Câmara quanto ao reconhecimento dos incentivos fiscais concedidos pelos Estados em relação ao ICMS como subvenções para investimento, embora tenha sido mantida pelo Senado, foi vetada pela Presidência da República. A justificativa foi que não se apresentou o impacto orçamentário e financeiro decorrente da renúncia fiscal, além da possibilidade de serem causadas distorções, ao equiparar subvenções para custeio às subvenções para investimento, podendo, de modo inverso ao pretendido, estimular a guerra fiscal.

Ainda, a questão do enquadramento dos benefícios fiscais de ICMS como subvenções para custeio ou para investimento possui outros desdobramentos importantes, como o reflexo direto na composição da base de cálculo do IRPJ e da CSLL para as empresas optantes pelo lucro real, matéria que constitui objeto de intenso debate no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF e na jurisprudência dos tribunais do país. Destaca-se que a controvérsia está sob apreciação do Supremo Tribunal Federal em seu Plenário Virtual, a fim de reconhecer seu caráter infraconstitucional ou não (RE 1.052.277, Rel. Min. Dias Toffoli, término da votação: 18/08/17). Seja como for, o fato é que a discussão acerca da natureza dos incentivos, para fins de cálculo do IRPJ e da CSLL, ainda perdurará no Judiciário e no CARF.

A temática da guerra fiscal, novamente levantada pela importante LC 160/2017, constitui o primeiro tema escolhido para debate na coluna que ora se institui. Sob a temática de Constituição & Tributação, apresenta-se, como de costume, o escopo principal de tecer comentários aos julgados tributários analisados pelo Supremo Tribunal Federal, sem prejuízo da liberdade de suscitar os debates sobre temas relevantes relacionados à Constituição, à Tributação e à Justiça Fiscal.
—————————-

[1] Destaca-se que a própria recepção da Lei pela ordem constitucional vigente é questionável, existindo arguição de descumprimento fundamental em trâmite no Supremo Tribunal Federal em que se questiona recepção da regra deliberativa da unanimidade pela Constituição de 1988 (ADPF 198, rel. Min. Dias Toffoli).

por Abhner Youssif Mota Arabi - Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Autor do livro: “A Tensão Institucional entre Judiciário e Legislativo: controle de constitucionalidade, diálogo e a legitimidade da atuação do Supremo Tribunal Federal” (Editora Prismas, 2015); coordenador da obra “Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional” (Editora Juruá, 2016) e autor de diversos capítulos de livro e artigos jurídicos.

Raquel de Andrade Vieira Alves - Assessora de Ministro do Supremo Tribunal Federal. Mestre em Finanças Públicas, Tributação e Desenvolvimento pela UERJ. Coordenadora da obra “Direito Financeiro e Jurisdição Constitucional” (Editora Juruá, 2016) e autora de capítulos de livro e artigos jurídicos publicados em periódicos de circulação nacional.

Fonte: Jota.info/

Nenhum comentário:

Postar um comentário