sábado, 17 de setembro de 2016

Ainda o RERCT: é preciso tributar consumo anterior ao prazo decadencial?

A criação do regime especial de regularização cambial e tributária (RERCT), introduzido pela Lei nº 13.254/2016, tem como pano de fundo a premência de trocas automáticas de informações entre as autoridades tributárias de mais de uma centena de países aderentes aoCommon Reporting Standard (CRS), aprovado no âmbito do G20 da OCDE. Trata-se de assegurar aos cidadãos que mantêm ou mantiveram recursos de forma ilícita no exterior a possibilidade de regularizarem e repatriarem tais bens sem a imposição das sanções penais típicas relativas aos crimes de lavagem de capitais, evasão de divisas e contra a ordem tributária. O custo atrelado à regularização é o pagamento de tributos: 15% de imposto de renda, mais 15% de multa, ao câmbio de 31/12/2014.

Nos termos do artigo 5o da lei, a concretização da adesão depende da “entrega da declaração dos recursos, bens e direitos sujeitos à regularização” e do pagamento integral do imposto e da multa previstos, respectivamente, nos artigos 6o e 8o. Apenas com o cumprimento de tais condições é que se tem a extinção da punibilidade dos crimes acima listados – esse é o teor do parágrafo 1o desse mesmo artigo 5o. Estamos diante, portanto, de uma norma tributária que atribui efeitos penais ao pagamento de tributo realizado no contexto da declaração.

Uma das grandes controvérsias existentes em torno do RERCT encontra-se no critério para a eleição do valor a ser declarado: deve-se considerar o patrimônio estático do contribuinte em 31/12/2014 (data de corte estabelecida pela lei) ou, ao contrário, há o dever de declarar todo o saldo já consumido, mesmo que anterior a essa data? A posição da Receita Federal é a de que os efeitos da lei somente serão integralmente estendidos aos bens e às condutas a eles relativos se houver a declaração tanto do valor remanescente em 31/12/2014 quanto da parcela consumida, juntamente com o recolhimento do tributo e multa[1].

Ou seja, o contribuinte tem o dever de declarar tanto a posição estática de seu patrimônio em 31/12/2014 quanto os bens e valores que porventura tenha consumido até esta data. A ausência de declaração e pagamento do imposto de renda e multa implicará a preservação dos efeitos penais relativos àquelas condutas.

Esse posicionamento da administração resulta em dois problemas, um tributário e um penal. A questão tributária envolve o prazo de decadência tributária. Ainda que a manutenção de recursos no exterior de forma irregular gere para a administração o direito de exigir os tributos devidos sobre tal manifestação de riqueza, há uma limitação temporal: o prazo é de cinco anos, calculado nos termos do artigo 173, inciso I, do Código Tributário Nacional. E é nesse exato sentido o entendimento da administração – para fins tributários, a declaração deve se limitar aos bens e direitos havidos no prazo decadencial[2].

Porém, do ponto de vista penal, o prazo prescricional dos crimes objeto de extinção da punibilidade superam, e muito, o prazo de decadência tributária: são 12 anos para evasão de divisas e crimes contra a ordem tributária e 16 anos para lavagem de capitais. Seria, então, necessário que o contribuinte recolhesse tributo decaído com vistas a obter a extinção da punibilidade (em termos leigos, o “perdão” dos crimes cometidos) dos fatos anteriores ao prazo decadencial? Entendemos que não.

De todos os modelos disponíveis para arregimentar a dita anistia, o legislador escolheu o tributário, criando, assim, um novo fator gerador, uma alíquota, uma multa etc. Deve, portanto, ser coerente com essa escolha. Parece ser esse o motivo de a Receita ter aditado o Perguntas e Respostas sobre o Regime Especial, em sua questão 48, mais precisamente em ter incluído a Nota 01, que determina que o prazo decadencial deve ter como referência a data atual e não a de 31 de dezembro de 2014. Ora, do ponto de vista tributário, se a data inicial fosse 31 de dezembro de 2014 ter-se-ia criado uma regra ad hoc em tema de decadência.

Com muito mais razão, o consectário lógico tributário há de estender efeitos no campo penal. A Lei nº 13.254/2016 traz como pressuposto da extinção da punibilidade penal o pagamento do imposto de renda e da multa respectiva sobre os recursos mantidos de forma irregular no exterior. Essa é a redação literal do caput e parágrafo 1o do artigo 5o da lei. Ora, o pagamento de imposto implica que ele seja devido.

O ministro Cezar Peluso, quando do julgamento do habeas corpus n. 81.611/DF, divisor de águas em matéria de penal tributário (verdadeiro embrião da Súmula Vinculante n. 24), consignou que o delito tributário dependia da redução de crédito tributário devido, ainda que o vocábulo “devido” não constasse expressamente do tipo penal. Entendemos que o racional se aplica aqui diretamente: em sendo norma tributária que gera efeitos penais, está sujeita aos limites do Direito tributário, notadamente no campo da decadência. Para períodos anteriores, a extinção da punibilidade se alcançaria com a descrição das condutas nos campos apropriados.

Recentemente, porém, a procuradora da República Carla de Carli publicou, no jornal Valor Econômico, posição em sentido contrário, o que pode sinalizar a posição do Ministério Público Federal no assunto. Assim, a decisão do quanto retroagir na Declaração para fins de valores consumidos comporta um certo apetite para riscos, considerando a incerteza interpretativa da Lei, à míngua de jurisprudência que poderia nortear o debate.
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[1] Conforme pergunta 39 do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat
[2] Conforme pergunta 46 do Ato Declaratório Interpretativo nº 5/2016. Disponível em: http://idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat

Por Davi TangerinoSócio de Trench, Rossi, Watanabe Advogados. Professor Doutor de Direito penal da FGV Direito SP e da UERJ.
Por Tathiane PiscitelliProfessora da FGV Direito SP. Coordenadora do Núcleo de Direito Tributário Aplicado da mesma instituição. Doutora e mestre em direito pela USP

Fonte: Jota

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