quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Regulamentação não afetou ilegalidade da Lei 13.606/2018

A Lei 13.606/2018 trouxe, escamoteada com o parcelamento do Funrural, a chamada “averbação pré-executória” (sic) de débitos federais, expressão que poderia muito bem ser substituída, em apelo à transparência, por “penhora[1] administrativa”, revelando os efeitos práticos do novel procedimento, bem como para trazer consigo todo o debate já desenvolvido sobre o assunto pela comunidade jurídica[2].

Por sua relevância, o tema, apesar de novo, já foi objeto de bons artigos aqui na ConJur, em especial destacamos o do professor Fernando Facury Scaff A penhora fiscal sem Judiciário e o incentivo ao denuncismo [3], no qual o autor bem demonstra o contexto do pernicioso avanço legislativo sobre os direitos do contribuinte, que desfavorece o ambiente de cooperação ao favorecer o denuncismo.

Há outros relevantes artigos prós e contra a medida em tela publicados nesta valorosa revista eletrônica, mas, em particular, gostaríamos de nos contrapor aos recentes artigos de opinião intitulados Averbação pré-executória prevista na Lei 13.606/2018 é legítima [4] e Averbação pré-executória serve de espaço para diálogo entre PGFN e contribuinte [5], os quais trazem, com o devido respeito aos colegas, informações colocadas de maneira pouco transparentes que não auxiliam os contribuintes sujeitos ao novo procedimento[6].

A começar pelo título dos artigos: o primeiro aduz ser “legítima” a penhora administrativa, adjetivo este que carece de especificação para ser bem empregado, por ser ampla e ambiguamente utilizado em teoria jurídica e política (entre outras ciências), podendo designar adequação a um determinado preceito moral, político, ou mesmo à uma ideologia, e não necessariamente adequação jurídico-sistemática.

O segundo trata a penhora administrativa como uma possibilidade de “diálogo entre PGFN e contribuinte”, ignorando o fato de que este último não participou, em momento algum, do criticado processo legislativo que resultou na Lei 13.606/2018 nem tampouco da Portaria PGFN 33/2018, que “regulamentou” este instrumento. Ademais, os argumentos mais relevantes desenvolvidos no artigo tratam de um maior acesso dos contribuintes aos procuradores, tema que foi ignorado nas novas disposições normativas (tanto na lei quanto na portaria).

Em outras palavras, ambos os artigos começam com afirmações “fortes”, que não se comprometem com o “X da questão”: saber da constitucionalidade e legalidade desta averbação pré-executória. Essa falta de comprometimento se revela, de igual modo, em todo o restante dos artigos.

Por exemplo, o primeiro artigo, publicado em 5/2/2018, inaugura o texto afirmando ser prematura “qualquer discussão acerca da real ou efetiva aderência da averbação ao ordenamento”, em razão de sua aplicação estar condicionada à ulterior regulamentação. No entanto, a regulamentação trazida pela Portaria PGFN 33/2018 em nada afetou a ilegalidade e inconstitucionalidade da referida Lei, tendo em vista o estreito limite de suas disposições e a possibilidade de alteração unilateral a qualquer momento pela PGFN, sem o devido – e necessário – processo legislativo.

Do mesmo modo, no artigo mais recente, publicado em 9/2/2018, sustenta-se que haveria “pertinência temática” entre o parcelamento do Funrural e a averbação pré-executiva, pois “parcelamentos excepcionais (...) são reflexo da falência do modelo atual de cobrança da Dívida Ativa”, afirmação que, se não for incorreta é, no mínimo, parcial, havendo muitos outros fatores que justificam a existência dos parcelamentos extraordinários, nenhum deles, salvo melhor juízo, justificariam a inclusão de novidade legislativa tão relevante em uma lei de parcelamento.

Os autores de tais textos tentam justificar a legitimidade da penhora administrativa em face do “novo paradigma de cobrança da Dívida Ativa da União” e de seu “microssistema de cobrança”. Traduzindo: a novel penhora administrativa está de acordo com o que a própria Procuradoria entende ser a melhor diretriz para a cobrança do crédito tributário e para a redução da litigiosidade entre a Fazenda Pública e os contribuintes. Ou seja, busca-se fundamentar esta inconstitucional e ilegal medida nas Portarias criadas pela própria PGFN, o que absolutamente não equivale a dizer que essas diretrizes sejam constitucionais ou legais.

Ora, a atividade governamental só se legitima juridicamente quando praticada nos estritos ditames legais e constitucionais e, fora destes, traduz-se em arbitrariedade. No Brasil, goste ou não, o caminho previsto pelo legislador para a satisfação do crédito tributário, com a restrição de direitos e a indisponibilidade e expropriação de bens a ela inerentes, passa pelo Poder Judiciário, através do ajuizamento da respectiva ação de execução fiscal, como determina a Constituição Federal em seu artigo 5º, LIV (o aparentemente esquecido “devido processo legal”).

Em ambos os artigos, se defende que a penhora administrativa teria por “finalidade precípua dar publicidade à terceiros da existência de débitos inscritos em dívida ativa”, “evitando a fraude e instrumentalizando a garantia do crédito (artigo 185 CTN), bem como que, para os autores do artigo mais antigo, a “indisponibilidade” prevista nesta nova penhora administrativa seria apenas “mera consequência da averbação”. Entretanto, como cediço, o instituto da averbação não se presta(ria) a constituir qualquer direito, tendo somente caráter informativo, o que não ocorre na chamada “averbação pré-executiva”, na qual há efetiva indisponibilidade do patrimônio do suposto devedor. Não se busca, assim, resguardar o direito de terceiros interessados, para o que bastaria a averbação premonitória prevista no artigo 828 do Código de Processo Civil de 2015.

A nova penhora administrativa deturpa ilegalmente a forma de cobrança do crédito tributário, criando a figura do contribuinte-fraudador-até-que-se-prove-o-contrário, ao permitir restrição aos seus bens como se fraudador fosse. É o famoso argumento Minority Report: pune-se o cidadão antes do cometimento da infração.

E as punições, ao contrário do que o artigo mais recente dá a impressão, são extremamente gravosas e nocivas à atividade empresarial brasileira, podendo chegar, inclusive, na rescisão de concessão ou contrato celebrado com o Poder Público (artigo 7º, VI e VIII, da Portaria PGFN 33/2018). Ora, para quem buscava a “atuação racional e eficiente, com o objetivo de reduzir a litigiosidade”, a adoção de medidas tão extremas induz a um comportamento contrário, abalando por completo a confiança do empresariado e dos advogados nessa “nova” postura da PGFN.

Não negamos que, em alguns aspectos, a Portaria PGFN 33/2018 deve ser valorizada, como na possibilidade de “oferta antecipada de garantia em execução fiscal” — o que, entendemos, nada mais é do que reconhecer a autoridade do precedente decorrente do REsp 1.123.669/RS. De toda sorte, isto não afasta as inconstitucionalidades e ilegalidades incorridas nesta novel penhora administrativa e também das demais previsões constantes da referida regulamentação, as quais poderiam ter sido evitadas se respeitado o regular processo legislativo e efetivo diálogo entre todos os envolvidos. É o que observamos, por exemplo, do artigo 49, § 2º, da referida Portaria[7], que pretende inovar em matéria de prescrição, violando frontalmente a Constituição Federal, o Código Tributário Nacional e a Lei de Execuções Fiscais.

Essa é, talvez, nossa maior crítica aos citados textos, com renovado respeito aos autores, ao não contribuir para uma discussão transparente de um relevante tema para os contribuintes. Sabe-se que há muito o que se conquistar em termos de aproximação e cooperação entre Fisco e contribuintes[8], inclusive para melhorar a arrecadação. No entanto, a atuação da PGFN nessa nova tentativa de penhora administrativa joga contra os “avanços e mudanças de postura no relacionamento entre contribuintes, devedores e PGFN”, pois, recorrer a argumentos consequencialistas (como “não existe forma milagrosa para aumentar a efetividade da cobrança de débitos tributários”) para justificar uma medida evidentemente ilegal e inconstitucional é, em verdade, jogar contra o avanço democrático brasileiro.

1 Termo utilizado, entre outros, pelo Juiz Federal Dr. Renato Lopes Becho em artigo ao jornal Valor Econômico intitulado “Penhora de bens sem autorização judicial”, disponível em: http://www.valor.com.br/legislacao/5297369/penhora-de-bens-sem-autorizacao-judicial?utm_source=Facebook&utm_medium=Social&utm_campaign=Compartilhar. Vale destacar, em sentido contrário, a posição do Professor Paulo Cesar Conrado em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/indisponibilidade-administrativa-08022018.

2 Por exemplo, aqui mesmo no Conjur: https://www.conjur.com.br/2009-mai-09/projeto-fisco-permite-penhora-bens-acao-judicial

3 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-29/justica-tributaria-penhora-fiscal-judiciario-incentivo-denuncismo

4 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-05/opiniao-averbacao-pre-executoria-prevista-lei-13606-legitima

5 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-fev-09/opiniao-averbacao-pre-executoria-serve-dialogo-contribuinte

6 Como se trata de um artigo resposta, recomendamos a leitura dos artigos originais em sua integralidade, de forma a conhecer na íntegra os argumentos apresentados por seus autores.

7 “Art. 49. Localizados, a qualquer tempo, bens ou direitos em nome do devedor, o Procurador da Fazenda Nacional deverá requerer o prosseguimento da execução fiscal, indicando-os à penhora, desde que úteis à satisfação, ainda que parcial, dos créditos executados.

§ 1o. Na hipótese descrita no caput, a prescrição intercorrente somente será interrompida com a efetivação da penhora dos bens ou direitos indicados.

§ 2o. A interrupção da prescrição de que trata o parágrafo anterior retroagirá à data da indicação de bens pela Procuradoria- Geral da Fazenda Nacional.”

8 Como defendemos, por exemplo, em nossos: TAVARES, G. P. O contribuinte Giges e a transparência fiscal - reflexões acerca da moral tributária do contribuinte. Direito Tributário Atual, v. 36, p. 207-221, 2016 e

TAVARES, G. P.. Segurança jurídica e autuação fiscal: a relevância da boa-fé do contribuinte diante dos fatores de insegurança jurídica do sistema tributário nacional. Revista Tributária e de Finanças Públicas, v. 129/2016, p. 321-339, 2016.

Gustavo Perez Tavares é mestre em Direito Tributário (PUC/SP). Especialista em Processo Tributário (PUC/SP). Sócio da área tributária de Watermann e Afonso Advogados.

Leandro Lopes Genaro é mestrando em Direito Tributário (PUC/SP). Especialista em Direito Tributário (FGV/SP) e Processo Tributário (PUC/SP). Sócio da área tributária de Watermann e Afonso Advogados.

Fonte: Conjur

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