sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Dação em pagamento de imóveis para a extinção do crédito tributário

A dação em pagamento de imóveis é uma das modalidades de extinção do crédito tributário, conforme previsão do inciso XI do art. 156 do CTN na forma e condições fixadas em lei.

A lei a que se refere o texto do Código Tributário Nacional é aquela em sentido estrito elaborada e sancionada pela entidade política tributante competente por inserir essa modalidade de extinção de crédito tributário na seara do direito administrativo tributário.

No âmbito da União, a primeira lei a prever esse tipo de extinção do crédito tributário foi a Lei nº 13.259, de 16-3-2016 que dispôs em seu art. 4º:

Art. 4º. A extinção do crédito tributário pela dação em pagamento em imóveis, na forma do inciso XI do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, atenderá às seguintes condições:

I – será precedida de avaliação judicial do bem ou bens ofertados, segundo critérios de mercado;

II – deverá abranger a totalidade do débito ou débitos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da dívida e o valor do bem ou bens ofertados em dação.

Entretanto, a Medida Provisória nº 719, de 2016, veio estabelecer restrições à redação original do art. 4º retrotranscrito, nos seguintes termos:

Art. 4º. O crédito tributário inscrito em dívida ativa da União poderá ser extinto, nos termos do inciso XI do caput do art. 156 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966 – Código Tributário Nacional, mediante dação em pagamento de bens imóveis, a critério do credor, na forma desta Lei, desde que atendidas as seguintes condições

I – a dação seja precedida de avaliação do bem ou dos bens ofertados, que devem estar livres e desembaraçados de quaisquer ônus, nos termos de ato do Ministério da Fazenda; e

II – a dação abranja a totalidade do crédito ou créditos que se pretende liquidar com atualização, juros, multa e encargos legais, sem desconto de qualquer natureza, assegurando-se ao devedor a possibilidade de complementação em dinheiro de eventual diferença entre os valores da totalidade da dívida e o valor do bem ou dos bens ofertados em dação.

1º. O disposto no caput não se aplica aos créditos tributários referentes ao Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional.

2º. Caso o crédito que se pretenda extinguir seja objeto de discussão judicial, a dação em pagamento somente produzirá efeitos após a desistência da referida ação pelo devedor ou corresponsável e a renúncia do direito sobre o qual se funda a ação, devendo o devedor ou o corresponsável arcar com o pagamento das custas judiciais e honorários advocatícios.

3º. A União observará a destinação específica dos créditos extintos por dação em pagamento, nos termos de ato do Ministério da Fazenda”.

Verifica-se do novo texto que a dação em pagamento ficou restrita à extinção de créditos tributários inscritos na dívida ativa. E o que antes era um direito do contribuinte-devedor, agora, tornou-se uma faculdade do poder público a ser exercida a seu critério, o que se depreende pelo exame da expressão “poderá ser extinto” e “a critério do credor”.

O § 1º veda a dação em pagamento em relação a créditos tributários sumetidos ao regime do Simples Nacional. O § 2º dispõe sobre o óbvio, pois quem requer a extinção do crédito tributário mediante dação em pagamento é porque abriu mão da continuidade da discussão judicial daquele crédito tributário. E o § 3º é norma de natureza orçamentária, sem intersse para o contribuinte.

Por fim, a Medida Provisória nº 719/16 foi convertida na Lei nº 13.313, de 14-7-2016 sem alterações.

Examinemos, pois o conteúdo desse art. 4º.

Quanto à limitação da modalidade de extinção do crédito tributário por meio de dação em pagamento, relativamente àquele inscrito na dívida ativa, nada temos a opor, por se tratar de faculdade legítima da entidade política tributante.

Entretanto, a inovação legislativa transformando o direito do contribuinte em débito para simples faculdade do sujeito ativo do tributo é questionável.

O inciso XI do art. 156 do CTN prescreve de forma clara e cristalina que dação em pagamento de imóveis “na forma e condições estabelecidas em lei” extingue o crédito tributário. Estava correta a redação original desse art. 4º.

De fato, a faculdade de extinguir ou não o crédito tributário pela modalidade de dação em pagamento não se insere no conceito de “forma e condições estabelecidas em lei”. O legislador ordinário deve se limitar a estabelecer a forma e os requisitos da dação em pagamento de imóveis como determina o Código Tributário Nacional, se quiser adotar a essa modalidade de extinção do crédito tributário. Uma vez eleitos pelo legislador as condições ou requisitos objetivos para a dação em pagamento de imóveis na forma determinada pelo CTN, falece à entidade política que editou a lei a faculdade de implementar ou não a referida dação em pagamento. A faculdade do ente político diz respeito à elaboração legislativa, nunca à aplicação ou não da lei elaborada e aprovada. A expressão “a critério do credor” contida no art. 4º sob comento, igualmente, não pode ser interpretada no sentido de conferir discricionariedade ao fisco. Todas as condições objetivas para a dação em pagamento de imóveis devem estar fixadas em lei, tornando-se a autoridade administrativa competente o executor fiel da lei. Em outras palavras, no caso, a União vincula-se aos preceitos da lei que editou, descabendo deixar a critério da autoridade administrativa competente estabelecer outras condições, quer de natureza objetiva, quer de natureza subjetiva, muito menos deixar a critério da autoridade administrativa a faculdade de acolher ou não os pedidos dos contribuintes que preencheram as condições da lei.

O referido art. 4º da Lei nº 13.259/16 na redação dada pela Lei nº 13.313/16 foi regulamentado pela Portaria PGFN nº 32, de 8-2-2018. Estabelece normas burocráticas para a apresentação do pedido de dação em pagamento de imóvel para extinção do crédito tributário em nada contribuindo para a correta interpretação do texto legal. Ao contrário, o seu art. 6º prescreve que “atendidos os requisitos formais indicados no artigo anterior[1], a unidade descentralizada da PGFN deverá se manifestar sobre a conveniência e oportunidade da dação em pagamento de bem imóvel para a recuperação do crédito tributário inscrito em Dívida Ativa da União e, na hipótese de manifestação ser favorável, submeter o processo administrativo à apreciação da Coordenação-Geral de Estratégia de Recuperação de Crédito (CGR/PGFN)”.

Ora, se atendidos os requisitos formais estabelecidos pela própria Portaria, que vai além dos limites do art. 4º da Lei sob comento que, por sua vez, extrapola a exigência prevista no CTN, impõe-se o parecer pelo deferimento do pedido, e não a manifestação sobre a conveniência e oportunidade da dação em pagamento do bem imóvel.

Estabeleceu-se uma gradativa limitação do direito à extinção do crédito tributário mediante dação em pagamento de bem imóvel na razão inversa da hierarquia dos instrumentos normativos. Quanto menor a hierarquia da norma, maior a restrição ao direito do contribuinte em débito. Não faz o menor sentido submeter o contribuinte à apresentação de um número infindável de documentos que implicam despesas de monta, para, ao final, se estiver tudo de conformidade com os requisitos estabelecidos com inusitado sadismo burocrático, ter que se submeter ao critério de oportunidade e conveniência da dação em pagamento de imóvel, sempre dependente da vontade subjetiva do servidor público da unidade descentralizada da PGFN.

Patente a ilegalidade dessas normas da Portaria PGFN nº 32/18 que extrapolam os limites do art. 4º objeto de regulamentação. Patente também a inconstitucionalidade do art. 4º da lei sob comento que inova o dispositivo do CTN afrontando o disposto na letra b do inciso III do art. 146 da CF à medida que convola o direito do contribuinte em faculdade do poder público tributante.

Logo, o contribuinte que satisfizer a forma e condições estabelecidas no citado art. 4º faz jus à extinção do crédito tributário mediante dação em pagamento de imóvel, complementando em dinheiro na hipótese de diferença entre os valores da totalidade da dívida e o valor do imóvel objeto de dação em pagamento. Não cabe ao ente político tributante o exame da oportunidade e conveniência da aplicação da lei que editou. Essa discricionariedade situa-se no plano pré-legislativo, como vimos.

Entender o contrário seria afrontar o princípio da razoabilidade que se coloca como um limite à ação do próprio legislador. Cumpridos pelo contribuinte todos os requisitos da lei instituidora da modalidade de extinção do credito tributário mediante dação em pagamento de imóvel, a produção de seus efeitos não pode ficar na dependência da vontade da administração pública. Se a administração tributária não quer essa modalidade de extinção de crédito tributário, o ente político a que pertence essa administração pública não deve editar a lei. Editando-a, deverá fazê-lo de conformidade com o que dispõe o CTN, pois a matéria pertinente ao crédito tributário está sob reserva de lei complementar nos precisos termos do art. 146, III, b, da CF.

SP, 19-2-18.

www.haradaadvogados.com.br

[1] Dispõe sobre requerimento de dação em pagamento mediante preenchimentos de requisitos que menciona.

Kiyoshi Harada
é Mestre em Teoria Geral do Processo. Especialista em Direito Tributário, Ciência das Finanças e Teoria Geral do Processo. Professor de Direito Administrativo, Tributário e Financeiro em diversas instituições de ensino superior. Autor de 31 obras jurídicas publicadas por diferentes editoras. Ex-Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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