quarta-feira, 17 de maio de 2017

O preço da inconstitucionalidade

O colendo Supremo Tribunal Federal (STF), em recente decisão, determinou que o ICMS não compõe a base de cálculo das contribuições PIS e Cofins. A notícia é alvissareira para um país cansado da ganância arrecadatória crescente. Felizmente, enquanto houver lei no Brasil, haverá esperança de algum tipo de justiça fiscal. O panorama, no entanto, é complexo e desafiador. Nossa legislação tributária é confusa e desencontrada, permitindo um perigoso subjetivismo fazendário que, de pouco em pouco, acaba tributando o que não deve.

Sem cortinas, embora possa pensar que seja absoluto, o fato é que o poder tributante não pode tudo. O problema surge com um Estado ostensivamente inchado, que só consegue se manter em pé, arrochando o contribuinte. Logo, as raízes de nosso assistemático sistema tributário está na acrônica estrutura patrimonialista que funda o Estado brasileiro. Portanto, enquanto a política for um reinado imperial, o contribuinte sempre será um surrado súdito do poder.

Quanto ao caso específico em análise, o impacto de citado precedente judicial será bilionário nas contas públicas. Ou seja, durante anos o governo recolheu tributos de forma inconstitucional, estando chegada a hora de devolver ao contribuinte aquilo lhe foi elegantemente surrupiado. Mas calma lá. A questão não é assim tão singela, pois o Supremo ainda pode modular os efeitos da inconstitucionalidade. Aqui chegando, creio que o nobre leitor deva estar se perguntando de forma atônita: que negócio é esse de modular efeitos de uma ilegalidade máxima?

Mitigar os efeitos de uma inconstitucionalidade em lides fiscais é fazer da Constituição instrumento de opressão tributária

Sim, senhoras e senhores, a realidade ensina que, no Brasil, tudo é possível, inclusive aquilo que seria impensável. Nos termos da lei, quando diante de uma inconstitucionalidade invencível, pode o STF, por maioria de dois terços, restringir ou mitigar a eficácia de sua decisão por razões de segurança jurídica ou excepcional interesse social (art. 27, Lei nº 9868/99). Ora, não é preciso ser um mago para ver que estamos diante uma norma de alto grau de subjetividade, outorgando à Corte Suprema a invulgar responsabilidade institucional de bem ponderar os complexos interesses potencialmente conflitantes.

Acontece que, em matéria tributária, a referida modulação de efeitos não deveria ser permitida. Isso porque é inadmissível que o Estado brasileiro use de ardis inconstitucionais para tomar o suado dinheiro do contribuinte, privando-o de recursos essenciais a sua vida pessoal ou empresarial e, depois, venha dizer que, por motivos de "segurança jurídica" ou "excepcional interesse social", os tributos indevidamente recolhidos não lhe serão devolvidos. Isso, além de juridicamente inadmissível, seria uma autêntica imoralidade suprema.

Objetivamente, é lição antiga que só há segurança jurídica com irrestrito respeito à legalidade vigente, sendo a cobrança de tributos inconstitucionais um claro sintoma de um arbítrio estatal desviante. E onde há arbítrio inexiste segurança jurídica. Indo adiante, oportuno lembrar que, em regimes democráticos, a justa tributação é um inegociável interesse social da república. Consequentemente, a cobrança de exações constitucionais é o primeiro mandamento de um governo pautado pela seriedade de procedimentos e pelo respeito ao povo. Logo, querer mitigar os efeitos de uma inconstitucionalidade em lides fiscais é fazer da Constituição um instrumento de opressão tributária.

Eventualmente, para fins de aliviar os impactos no caixa público, poder-se-ia pensar em parcelar o ressarcimento ao contribuinte em um razoável prazo determinado. Ou seja, em situações excepcionalíssimas, a modulação dos efeitos da inconstitucionalidade poderia ser ventilada em prol do contribuinte, mas jamais em sentido contrário a seus interesses jurídicos e patrimoniais. Em outras palavras, permitir uma espécie de perdão judicial para exações ilegais seria estimular o desgoverno e a incompetência que enterram o futuro de nossa nação, ampliando a sensação de injustiça que permeia a sociedade brasileira.

Aliás, a vida ensina que só governos autoritários fazem uso de tributos inconstitucionais. Não há democracia sem respeito à lei. Aqui, a memória lança luzes sobre o espírito superior de Paulo Brossard que, em passagem lapidar, realçou a seguinte linha de princípio: "A segurança é filha da lei; a quebra da legalidade é mãe da insegurança". Tal oração ao Estado de Direito foi dita no Senado Federal, na sessão de 19 de março de 1975. Infelizmente, passados mais de 40 anos, a lei, muitas vezes, segue a ser um nada diante da arrogância estatal descontrolada.

Por fim, oportuno registrar que o Legislativo deveria ser responsabilizado por emitir leis inconstitucionais. Sabidamente, a atividade legiferante é um dos mais nobres ofícios estatais, não podendo ser amesquinhada por rasos rabiscos parlamentares. A boa vida republicana exige leis sérias, ponderadas e feitas no inegociável interesse nacional. No entanto, os recentes e graves escândalos que nos chocam, desnudam uma institucionalidade venal que aceita negociar tudo para ser um nada moral. E, quando a moralidade vai embora, a legalidade fica órfã em mundo sem limites éticos.

Por tudo, o Supremo deverá responder à nação: a inconstitucionalidade compensa no Brasil? Se sim, o contribuinte vencerá a causa, mas pagará a conta. Mas não será isso um preço muito alto para um país com sede de ser honesto, decente e institucionalmente modelar?

por Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr é advogado

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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