quinta-feira, 18 de maio de 2017

O depósito e a recuperação judicial

Imagine abrir este jornal e deparar-se com a seguinte notícia: "Estacionamento entra em recuperação judicial e se recusa a devolver os veículos aos seus respectivos proprietários sob o argumento de que precisa vendê-los ou alugá-los a terceiros para aumentar suas receitas e viabilizar sua tentativa de recuperar-se financeiramente". Embora essa situação seja absurda, situações análogas envolvendo a armazenagem de produtos agrícolas têm se tornado recorrentes e começam a ser submetidas ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

A origem dessa controvérsia está em um modelo de negócio comum no setor do agronegócio: tradings e demais empresas que atuam na aquisição de produtos agropecuários negociam com seus fornecedores de matéria-prima, proprietários ou arrendatários de estrutura de armazenagem, a celebração de um contrato de compra e venda seguida de um contrato de depósito. Pela compra e venda, o comprador adquire o produto, efetua o pagamento do preço devido ao vendedor e assume a propriedade da mercadoria e todos os direitos inerentes a ela mediante tradição ficta, devidamente registrada contabilmente.

Por meio do depósito, o vendedor torna-se possuidor direto do produto na condição de depositário, com a obrigação de guardar e conservar a mercadoria até que a sua restituição seja solicitada pelo proprietário, também comprador e depositante.

A decisão do STJ deve ser comemorada, pois entendimento em contrário geraria consequências desastrosas

No entanto, com o agravamento da crise econômica e o crescimento desenfreado do número de recuperações judiciais a partir de 2015, esse modelo de negócio foi desafiado no Judiciário, de forma oportunista. As recuperandas negam a restituição dos produtos recebidos em depósito e tentam obter autorização para empregá-los no giro comercial da empresa, sob o argumento de que a restituição do produto inviabilizaria sua recuperação e o depósito implicaria a transferência da propriedade do bem fungível ao depositário, conforme artigos 587 e 645 do Código Civil. As recuperandas então incluem os depositantes no quadro geral de credores da recuperação judicial, sugerindo que eles possuem apenas um crédito pecuniário a ser pago nos termos e condições previstas no plano de recuperação judicial (i.e. stay period, deságio, período de carência, etc).

A questão foi recentemente apreciada por dez Ministros da 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça, por meio do Conflito de Competência nº 147.927/SP, de relatoria do ministro Ricardo Villas-Bôas Cueva e que contou com votos-vista das ministras Isabel Gallotti e Nancy Andrighi, com resultado favorável aos depositantes.

Os ministros decidiram, por maioria, que não há atração da competência do juízo da recuperação judicial para decidir sobre o direito do depositante de obter a restituição dos bens de sua propriedade depositados na recuperanda, pois tais bens não integram o patrimônio da recuperanda e não podem ser utilizados para viabilização de sua tentativa de recuperação financeira, aplicando ao caso a Súmula nº 480 do Superior Tribunal de Justiça.

Para chegar a essa conclusão de cunho processual, o Tribunal precisou analisar e posicionar-se também sobre o mérito da questão, firmando o entendimento de que: (i) ao depósito de commodities agrícolas aplicam-se as regras próprias da Lei nº 9.973/2000, do Decreto nº 3.855/2001 e do Decreto nº 1.102/1903, que regulamentam a atividade de armazenagem de produtos agropecuários; (ii) embora tais bens sejam fungíveis, seu depósito é regular e a ele não se aplicam as regras do mútuo, pois não há transferência da propriedade da mercadoria ao depositário (cf. art. 1º, § único, do Decreto nº 3.855/2001); (iii) o depositário não tem o direito de usar ou dispor dos produtos recebidos em depósito sem autorização do depositante (cf. arts. 12 do Decreto nº 3.855/2001 e 640 do Código Civil).

A decisão do Superior Tribunal de Justiça deve ser comemorada, pois eventual entendimento em sentido contrário iria na contramão do arcabouço legal sobre o tema e, do ponto de vista prático, poderia resultar em consequências desastrosas para o fomento do agronegócio, um dos pilares da economia brasileira.

Como a infraestrutura de escoamento da volumosa produção de grãos do Brasil ainda é incipiente, o sucesso do agronegócio brasileiro depende do bom funcionamento de sua estrutura de armazenagem. Se os armazéns puderem se apropriar dos produtos recebidos em depósito e empregá-los em suas atividades para aumentar seu capital de giro ou evitar sua falência, poderia ser instaurado um caos em todo o setor, com uma onda de inadimplementos contratuais e uma inevitável insolvência de centenas de depositantes, que seriam alijados de uma hora para a outra de mercadorias essenciais a suas atividades comerciais, muitas vezes já atreladas a negociações futuras.

Esse precedente do Superior Tribunal de Justiça, portanto, mostra-se essencial para conferir maior segurança jurídica a todo o setor do agronegócio, reforçando a confiança dos contratantes no bom funcionamento do sistema de armazenagem de grãos do Brasil, sobretudo neste momento de crise política e instabilidade econômica, que demanda do Poder Judiciário maior firmeza, agilidade e sensibilidade no julgamento de questões tão relevantes para o país.

Nancy Gombossy de Melo Franco e Felipe Henriques Drygalla Moeira são advogados de Muriel medici franco advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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