quinta-feira, 18 de maio de 2017

O porquê da existência do artigo 195, § 8º, da Constituição

Quando o Supremo Tribunal Federal julgou constitucional a contribuição previdenciária do produtor rural sobre a sua receita bruta, o excelente artigo do professor Fábio Calcini, publicado em sua coluna na ConJur, evidenciou que ficaram sem resposta as indagações sobre uma suposta proibição de bis in idem e sobre “o porquê da existência do artigo 195, parágrafo 8º, da Constituição Federal”.

É o que vou explicar.

Um dos pilares da reconstrução da Seguridade Social, feita pela Constituinte de 1987, foi a universalização da Previdência Social (= extensão da possibilidade de acesso a ela a todos os grupos da sociedade), que foi inserida no texto constitucional desde o anteprojeto da subcomissão da Seguridade Social[1].

Na época, diversos grupos até então não resguardados (como as “donas de casa”) pleitearam a inserção de dispositivos específicos que os protegessem[2]. Tais pedidos foram sistematicamente negados pelos relatores[3], ao fundamento de que o princípio da universalidade já obrigaria o legislador a contemplá-los, o que, de fato, ocorreu, pois a Lei 8.212/91 prevê a categoria do segurado facultativo.

O princípio da universalidade, porém, não bastava para as categorias que exerciam atividade em regime de economia familiar e não auferiam renda regular. Por isso, na Comissão de Sistematização da Constituinte, o segundo substitutivo do relator-geral Bernardo Cabral inseriu no capítulo “Dos Direitos Sociais”, entre os dispositivos que deram origem aos artigos 7° e 8° da Constituição, o embrião do atual artigo 195, § 8°, com a seguinte redação:

“Art. 8º - O produtor rural e o pescador artesanal, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, serão, para os efeitos da previdência social, — considerados segurados autônomos, na forma que a lei estabelecer, a eles equiparados o parceiro, o meeiro e o arrendatário”[4]

Mas, como esses grupos não teriam condições de contribuir como autônomos (atuais contribuintes individuais), por auferirem renda de forma sazonal ou eventual, a Comissão de sistematização aprovou, com destaque, a Emenda 21.876-6[5], para (i) possibilitar que os segurados acima contribuíssem de forma não regular, isto é, apenas no momento em que auferissem a receita bruta; e para (ii) estender a condição de segurado também aos demais membros que integrassem esse regime de economia familiar, já que, na prática, só o chefe de família conseguiria se manter filiado.

Portanto, como esclarecido durante a votação pelo Constituinte autor da emenda, o atual artigo 195, § 8° foi criado porque: (i) “O produtor rural e o pescador não têm renda fixa. Eles dependem do que colhem ou pescam e vendem. Assim sendo, a contribuição também tem de ser proporcional ao que eles realmente possam perceber”; e porque (ii) o Substitutivo do Relator, “como está colocado no artigo 8º, que garante ao produtor rural e ao pescador artesanal, em regime de economia familiar, o direito à Previdência Social, equiparado ao autônomo, não contempla o conjunto dos membros da família, mas apenas o chefe da unidade familiar”6.

Como consequência dessa votação, o dispositivo integrou o Projeto A de Constituição, encaminhado ao Plenário para votação em primeiro turno, com a seguinte redação:

“Art. 9° O produtor rural e o pescador artesanal, que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, sem empregados permanentes, contribuirão para a seguridade social através da aplicação de uma alíquota sobre o resultado da comercialização da produção e obterão os benefícios com valor equivalente ao salário-mínimo, podendo equiparar-se ao segurado autônomo, na forma que a lei estabelecer.

Parágrafo único. Equiparam-se ao produtor rural, para os efeitos da previdência social, o parceiro, o meeiro, cônjuges, inclusive o daquele”[7]

Na votação em primeiro turno [8], que deu a redação definitiva do artigo, houve apenas a inclusão da proteção ao garimpeiro e a transposição da menção ao parceiro e ao meeiro para o caput do artigo.

A posição do dispositivo na atual Constituição, por sua vez, foi dada pelo relator-geral Bernardo Cabral, que, ao elaborar a redação do vencido para o segundo turno, esclareceu, em seu relatório geral, que transportou o artigo 9° para o artigo 200 (atual artigo 195, da CF) para adequá-lo às técnicas de redação legislativa expostas no início do próprio documento[9].

Portanto, a decisão do STF não torna o artigo 195, § 8° inútil, especialmente porque a Assembleia Constituinte não criou esse dispositivo como uma norma tributária, mas como um direito social, função que continua mantida após a decisão da Suprema Corte.

Aliás, a própria assunção de que a Constituição só tenha artigos “úteis” não é adequada. O artigo 240 da Constituição, por exemplo, é uma ressalva a duas regras que acabaram não constando de seu texto final.

É que, no anteprojeto que chegou à Comissão de Sistematização, a folha de salários havia sido transformada em base exclusiva da seguridade e todas as contribuições sociais tinham sido destinadas a um “Fundo Nacional da Seguridade”:

“Art. 342 - A folha de salários é base exclusiva do Sistema de Seguridade Social e sobre ela não poderá incidir qualquer outro tributo ou contribuição.

Art. 343 – As contribuições sociais a que se refere o art. 40 e os recursos provenientes do orçamento da União comporão o Fundo Nacional de Seguridade Social, na forma da lei.

Parágrafo único – Toda contribuição social instituída pela União destina-se exclusiva e obrigatoriamente ao Fundo a que se refere este artigo.”[10]

Com a publicação do Anteprojeto nos jornais, essas regras tiveram uma repercussão muito negativa, porque seu efeito colateral era a supressão da base de sustentação financeira do Sistema S! A consequência foi uma avalanche de emendas parlamentares[11] e de emendas populares, subscritas por centenas de milhares de pessoas[12], pleiteando a supressão desses dispositivos e/ou a inclusão de ressalva referente às contribuições para o Sistema S.

Essa foi a razão da inserção da ressalva abaixo no segundo substitutivo, a qual permaneceu no texto mesmo com a supressão das regras que a motivaram[13]:

“Art. 224 - A seguridade social será financiada compulsoriamente por toda a sociedade, de forma direta e indireta, mediante contribuições sociais e recursos provenientes da receita tributária da União, na forma da lei.

§ 1° - As contribuições sociais a que se refere o "caput" deste artigo são as seguintes:

I - contribuição dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro, ressalvadas as contribuições compulsórias dos empregadores sobre a folha de salários, destinadas à manutenção das entidades de serviço social e de formação profissional.”

Mais à frente, ao redigir a redação do vencido para o segundo turno em Plenário, o relator-geral, baseado em seus critérios de redação legislativa, transformou a regra acima em dispositivo autônomo.

Portanto, o artigo 240 da Constituição não possui conteúdo diretivo, restando-lhe essencialmente a função de simbolizar um amplo consenso em torno do modelo do sistema S, resguardando-o contra interpretações equivocadas, como a de que a Emenda Constitucional 33/2001 teria revogado as contribuições sociais gerais sobre a folha de salários.

Digo “interpretações equivocadas”, porque a PEC 277 — que originou a EC 33/2001 — não foi encaminhada pelo Presidente da República para limitar o âmbito de incidência de contribuições sociais, mas para desonerar exportações e “evitar distorções de natureza tributária entre o produto interno e o importado, em detrimento daquele, que fatalmente ocorrerão se mantido o ordenamento jurídico atual”[14]. Por isso, a redação constitucional que hoje gera controvérsias inicialmente era a seguinte:

“Art. 177..............

§ 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de comercialização, decorrente de revenda ou refino, e de importação de petróleo e seus derivados, bem assim de gás natural e álcool carburante deverá atender aos seguintes requisitos:

I - a alíquota da contribuição será:

a) ad valorem, incidindo sobre o faturamento ou a receita bruta, no caso de comercialização e, no caso de importação, sobre o respectivo valor aduaneiro;

b) específica, tendo por base a unidade de medida adotada;”

A Comissão Especial da Câmara dos Deputados, porém, apresentou substitutivo, no qual deslocou esse inciso I para o atual § 2° do artigo 149 e substituiu o termo “será” pela palavra “pode”, buscando transmitir o sentido de facultatividade.

O objetivo da alteração foi prevenir interpretações a contrario sensu do artigo 177, que prejudicassem a incidência do PIS e da COFINS sobre os produtos importados, como afirma o parecer da Comissão Especial, que acompanhou a redação aprovada na Câmara dos Deputados em dois turnos:

“Alterações como a que ora se pretende efetuar no sistema tributário podem muitas vezes dar margem ao surgimento de questões judiciais, buscando obter, ou com o auxílio de uma hermenêutica tortuosa, ou mesmo aproveitando-se de falhas de redação dos dispositivos legais, um diferencial competitivo - bastante relevante, no caso dos combustíveis - em face da significativa expressão dos tributos na composição dos preços. Deve-se tentar prevenir, portanto, no momento da elaboração legislativa, o surgimento de distorções futuras.

(...)

A referência apenas à contribuição de intervenção no domínio econômico, contudo, pode ensejar o entendimento de que essas características não se aplicariam a outros tributos e contribuições, o que não parece conveniente. Pelo contrário, torna-se indispensável, a fim de alcançar plenamente os objetivos almejados com a Emenda Constitucional que ora se cogita - vale dizer, de equiparar as cargas tributárias incidentes sobre os combustíveis nacionais e os importados -, que se possam instituir alíquotas ad valorem ou ad rem, sobre a coisa, também para as contribuições sociais, nomeadamente a COFINS e a do PIS/PASEP.

O texto do Substitutivo proposto, ao trazer esses dispositivos para o art. 149 da Constituição, procura solucionar esse problema, reafirmando a faculdade de o legislador infraconstitucional escolher livremente, ao deliberar sobre as contribuições sociais ou de intervenção no domínio econômico, entre ambas as espécies de alíquotas”[15].

No Senado Federal[16], também não se cogitou de revogação de contribuições sobre a folha ou reformulação do modelo de contribuições sociais.

O problema é que o acréscimo da palavra “pode” a um texto redigido de forma imperativa gerou uma redação confusa; e bastou isso para que a hermenêutica convencesse o STF de que o termo “pode” significa “deve” (= o inverso).

Então, a Suprema Corte alterou a base de cálculo do PIS-Importação e da COFINS-Importação (RE 559.937), criando uma distorção entre o preço do produto importado e o do similar interno, que teve de ser corrigida por meio da elevação das alíquotas dessas contribuições; e, mais do que isso, fomentou o debate sobre o destino das contribuições sociais gerais.

Por fim, falta responder a questão relativa ao bis in idem, que interessa apenas às contribuições do produtor rural pessoa jurídica e da agroindústria para a Previdência Social, podendo ser assim sintetizada: “é possível a instituição de mais de uma contribuição baseada no artigo 195, I, da Constituição Federal?”.

A resposta é positiva, porque a técnica utilizada na elaboração do caput do artigo 195 não foi a mesma adotada na enumeração dos impostos. Para explicar isso, vou ter que detalhar um pouco o processo da Constituinte de 1987, mas só no próximo artigo.

1Vide páginas 5 e 6 do Anteprojeto, disponíveis no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-195.pdf

2É o caso das Emendas 1P09893-9, 1P10304-5, 1P10627-3, 1P10727-0, 1P11007-6, 1P12133-7, disponibilizadas no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-228.pdf

3Vide pareceres às emendas mencionadas, no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-234.pdf

4Vide página 30 do 2° Substitutivo do Relator, acessível no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-242.pdf

5Vide página 313 do documento disponibilizado no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-236.pdf

6Discurso do Constituinte Vicente Bogo na votação realizada na sessão de 15/10/1987, que pode ser visualizado na página 1318 da ata disponível no endereço: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf

7Vide página 10 do Projeto “A” de Constituição, disponível no endereço:
http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-253.pdf

8Votação disponível nas páginas 7852 a 7854 do Diário Oficial de 02/03/1988, no endereço: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/194anc02mar1988.pdf#page=

9“Reuni ao dispositivo, como § 8°, o art. 9° e seu parágrafo único, que constavam do capitulo sobre os direitos dos trabalhadores” (transcrição extraída da página 12 do documento disponível no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-299.pdf)

10Vide página 41 do anteprojeto, no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-219.pdf

11A título de exemplo, indico as emendas 1P00173-1, 1P00174-9, 1P00176-5, 1P00202-8, 1P00399-7, 1P00433-1, disponíveis no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-227.pdf

12Vide Emenda PE00036-9, Emenda PE00068-7 e Emenda PE00122-5, no endereço: http://www.camara.gov.br/internet/constituicao20anos/DocumentosAvulsos/vol-231.pdf

13Os dispositivos foram suprimidos no 1° Substitutivo do Relator. A ressalva foi incluída no 2° Substitutivo, diante dos receios de que ainda não haviam cessado as ameaças ao Sistema S. O tema foi objeto da sessão da Comissão de Sistematização de 02/09/1987, disponível nas páginas 483 a 493 do documento seguinte: http://www.senado.gov.br/publicacoes/anais/constituinte/sistema.pdf

14Mensagem Presidencial n° 1.093, disponível nas páginas 43451 a 43453 do Diário da Câmara dos Deputados de 16/08/2000, disponível no endereço: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD16AGO2000.pdf#page=33

15O Parecer do Relator na Comissão Especial foi publicado nas páginas 44713 a 44727 do Diário da Câmara dos Deputados de 20/09/2001, disponível em: http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD20SET2001.pdf#page=

16A votação em 1° Turno consta nas páginas 29778 a 29870 do Diário do Senado Federal de 29/11/2001, no endereço: http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaPaginasDiario?codDiario=3650&seqPaginaInicial=1&seqPaginaFinal=132

A votação em 2° Turno consta nas páginas 30707 a 30715 do Diário do Senado Federal de 12/12/2001, no endereço: http://legis.senado.leg.br/diarios/BuscaPaginasDiario?codDiario=3667&seqPaginaInicial=1&seqPaginaFinal=129

 Bigonha Salgado é servidor público.

Fonte: Conjur

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