segunda-feira, 20 de março de 2017

ICMS: modulação influenciada por questões financeiras?

O Supremo decidiu que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins” (RE 574.706). A tese será aplicada a todos os cerca de 10 mil processos sobrestados que discutem esse mesmo tema. Com isso, depois de anos de espera, o Supremo finalmente concluiu o julgamento dessa questão, para na verdade retomar entendimento que já tinha tido na década de 60.

De acordo com os ministros, o valor do ICMS – por não incorporar ao patrimônio do contribuinte – não constitui faturamento ou receita, mas apenas um ingresso de caixa ou trânsito contábil a ser totalmente repassado ao fisco estadual. Essa interpretação, já adotada no RE nº 240.785, de 2014, diverge da jurisprudência do STJ e dos TRFs. Contudo, representa o resgate de uma interpretação já adotada pelo Supremo em 1966, antes da atual Constituição, no mais antigo julgado sobre a matéria. Nele, o Supremo afastou a incidência do Imposto de Indústrias e Profissões do Município de São Paulo sobre o montante do Imposto de Consumo, justamente por entender que tributo “que o fabricante recolhe por ocasião da primeira venda e que será pago pelo comprador, onerando afinal o consumidor, é receita da União e não receita da empresa” (RMS 14.503).

Duas questões merecem ser destacadas nesse julgamento. A primeira envolve a influência do impacto financeiro da interpretação adotada pela Corte e a possibilidade de modulação dos efeitos da decisão. A segunda, suscitada no aditamento ao voto do ministro Dias Toffoli, diz respeito à eventual repercussão no regime de incidência de outros tributos.

A influência do suposto impacto financeiro da decisão é um problema antigo envolvendo decisões tributárias e parece estar mais presente nas discussões do Supremo. Em 1959, Benedetto Cocivera já lamentava o fato de o Direito Tributário ser a Cinderela do Direito. Isto porque, na meia noite dos orçamentos deficitários, quando a despesa ultrapassa a receita, converte-se em abóbora, perdendo a beleza de sua força normativa. Esta preocupação foi expressa principalmente no voto vencido do ministro Gilmar Mendes e na defesa do Procurador Geral da Fazenda Nacional. Ambos enfatizaram que, no caso de derrota da Fazenda, a situação financeira já preocupante iria se agravar ainda mais e que a União teria que recorrer a outras fontes de financiamento da seguridade social, inclusive através de aumento de alíquotas destes tributos.

Mesmo que o resultado final quanto ao mérito não tenha levado em consideração esta questão, o debate em torno impacto financeiro acabará sendo transferido para a modulação dos efeitos da decisão. A modulação acabou não sendo discutida no julgamento porque não havia pedido expresso nesse sentido. Porém, o Supremo já decidiu que a modulação pode ser feita em sede de embargos declaratórios (RE nº 500.171). E é isso que se espera que aconteça.

A pretensão da União é que a decisão produza efeitos apenas a partir de janeiro de 2018. Alega-se uma perda de arrecadação anual de R$ 20 bilhões e um impacto de R$ 100 bilhões decorrente da repetição de indébito. No entanto, é importante a confirmação desses números. Nos últimos anos, os Estados concentraram a cobrança do ICMS no regime de substituição tributária. Neste, o imposto estadual já não é incluído na base de cálculo do PIS/Pasep e da Cofins. Não se sabe se o cálculo do “rombo” orçamentário considera ou não essa particularidade.

O risco da modulação é abrir espaço para um enfraquecimento da força normativa da Constituição em matéria tributária. Afinal, todo tributo tem um impacto financeiro. O mesmo ocorre com a decisão que declara a sua inconstitucionalidade. Não há como evitar o prejuízo orçamentário. A grande questão é que, pela “porta” da modulação, o Poder Público – inclusive as esferas estaduais e municipais – poderia passar a criar deliberadamente exações contrárias às regras constitucionais, na expectativa de uma futura restrição dos efeitos temporais da decisão pelo Judiciário. Por isso, nesse caso, a decisão sobre a modulação de efeitos pode transcender essa causa específica – mesmo que bilionária. A decisão indicará para todos os agentes públicos se os limites constitucionais ao poder de tributar são para valer. Cabe ainda mencionar que eventual tentativa do Executivo e Legislativo de modular os efeitos via emenda constitucional certamente abrirá nova discussão sobre os limites de poder de emenda e da própria separação de poderes.

Por fim, a última questão é que a decisão certamente afetará outros tributos incidentes sobre a receita bruta das empresas, que também incidem sobre o ICMS (como, por exemplo, a contribuição substitutiva da folha, prevista na Lei nº 12.546/2011). Também a inclusão do ISS na base de cálculo do PIS/Pasep e da Cofins, que já se discute nos tribunais, será certamente impactada por essa decisão. É inevitável que isso ocorra. Portanto, o mais produtivo para o país seria que, em vez de contar com futuras modulações de efeitos para aliviar o peso orçamentário de inconstitucionalidades cometidas pela União, se utilizasse da recém anunciada reforma do PIS/Pasep e da Cofins, e promovesse uma reordenação do regime de incidência de todos os tributos federais. No final, a única garantia contra decisões como essa é de se comportar conforme determina a Constituição.

Melina Rocha Lukic - professora da FGV Direito Rio.

Solon Sehn - Advogado. Bacharel (UFPR), Mestre e Doutor em Direito (PUC/SP). Professor Convidado da Pós-Graduação da FGV Direito Rio e Conferencista no Curso de Especialização do IBET.

Fonte: Jota.info/

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