sábado, 25 de março de 2017

Choque de realidade e os relatórios das finanças públicas

Todos os anos, o mês de fevereiro é um período de revelações fiscais, em que são divulgados os relatórios de gestão fiscal do último quadrimestre do ano, juntamente com a versão consolidada do ano que se encerrou. Porém, as notícias da real situação financeira dos entes acabam ofuscadas pelas festas de carnaval, relegando-se a segundo plano a consciência fiscal do cidadão.

Tomando como exemplo, verificamos os dados referentes a 2016 publicados no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro (e muitos outros estados estão em similar condição de calamidade financeira), em que se pode constatar a seguinte situação: a) foram aplicados apenas R$ 3,75 bilhões em saúde, equivalente a 10,35% da receita, quando a Constituição Federal e a Lei Complementar 141/2012 impõem um mínimo de 12%; b) os gastos com a folha de servidores atingiram o montante de R$ 33,4 bilhões, correspondendo a 72% da Receita Corrente Líquida (RCL) do Estado do Rio de Janeiro (que totalizou R$ 46,2 bilhões), 20% acima do teto-limite de 60% estabelecido na Lei de Responsabilidade Fiscal; c) a previdência estadual encerrou o ano com um déficit de R$ 11,5 bilhões; d) o nível de endividamento está em astronômicos 232% da RCL, com uma dívida consolidada de R$ 107,2 bilhões de reais.

Contudo, o propósito da Coluna Fiscal de hoje não é analisar nem criticar os assustadores números da atual situação fiscal – diga se passagem, calamitosa – do Estado do Rio de Janeiro, mas sim chamar atenção para um relevante instrumento de cidadania e transparência fiscal que são os relatórios financeiros que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabelece e coloca à disposição do cidadão para identificação do panorama financeiro dos entes federados.

Importante lembrar que a transparência ressaltada pela LRF destina-se a promover o acesso e a participação da sociedade em todos os fatores relacionados com a arrecadação financeira e a realização das despesas públicas, havendo uma seção própria na lei com este objetivo (Seção I do Capítulo IX). Basicamente, podemos destacar os seguintes mecanismos de transparência contidos na lei: a) incentivo à participação popular na discussão e na elaboração das peças orçamentárias, inclusive com a realização de audiências públicas; b) ampla divulgação por diversos mecanismos, até por meios eletrônicos, dos relatórios, pareceres e demais documentos da gestão fiscal; c) disponibilidade e publicidade das contas dos administradores durante todo o exercício; d) emissão de diversos relatórios periódicos de gestão fiscal e de execução orçamentária.

Aliás, a transparência fiscal não pode ser vista apenas sob a ótica da divulgação e do acesso à informação, mas seu conceito deve ser compreendido de maneira abrangente, abarcando outros elementos tais como responsividade, accountability, combate à corrupção, prestação de serviços públicos, confiança, clareza e simplicidade.

Dentre os mecanismos de transparência fiscal, destacamos o Relatório Resumido de Execução Orçamentária (RREO) e o Relatório de Gestão Fiscal (RGF), cujo objetivo é permitir que, cada vez mais, a sociedade e os diversos órgãos de controle conheçam, acompanhem e analisem o desempenho da execução orçamentária.

O primeiro deles, o RREO, vem previsto no art. 52 da LRF para dar efetividade ao comando constitucional do art. 165, § 3º, o qual determina que o Poder Executivo publique, até trinta dias após o encerramento de cada bimestre, o Relatório Resumido da Execução Orçamentária. Este relatório abrangerá os órgãos da administração direta e entidades da administração indireta de todos os poderes, que recebam recursos dos orçamentos fiscal e da seguridade social, inclusive sob a forma de subvenções para pagamento de pessoal ou de custeio em geral ou de capital, excluídos, no último caso, aqueles provenientes de aumento de participação acionária.

Este relatório será composto de: I – balanço orçamentário, que especificará, por categoria econômica, as: a) receitas por fonte, informando as realizadas e a realizar, bem como a previsão atualizada; b) despesas por grupo de natureza, discriminando a dotação para o exercício, a despesa liquidada e o saldo; II – demonstrativos da execução: a) das receitas, por categoria econômica e fonte, especificando a previsão inicial, a previsão atualizada para o exercício, a receita realizada no bimestre, a realizada no exercício e a previsão a realizar; b) das despesas, por categoria econômica e grupo de natureza da despesa, discriminando dotação inicial, dotação para o exercício, despesas empenhada e liquidada, no bimestre e no exercício; c) despesas, por função e subfunção.

Além da transparência fiscal, o RREO atende ao espírito da LRF, especialmente quanto ao disposto nos arts. 1º, 4º, 8º, 11, 15, 32, 42 e 43, no sentido de orientar sobre o equilíbrio entre receitas e despesas, a limitação de empenho e movimentação financeira, a não geração de despesas consideradas não autorizadas, irregulares e lesivas ao patrimônio público, bem como os critérios para criação, expansão ou aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa. Orienta, ainda, sobre o cumprimento de metas de resultado primário ou nominal, sobre a instituição, previsão e efetiva arrecadação de todos os tributos da competência constitucional do ente, sobre a contratação de operações de crédito, disponibilidades de caixa, restos a pagar, dentre outras disposições, visando sempre à responsabilização do titular de Poder ou órgão no que se refere à gestão dos recursos e patrimônio públicos.

Já o art. 54 da LRF introduz no sistema fiscal brasileiro o Relatório de Gestão Fiscal (RGF), através do qual se permite realizar o controle, o monitoramento e a publicidade do cumprimento, por parte dos entes federativos, dos limites estabelecidos pela LRF, quais sejam, aqueles definidos em percentuais da Receita Corrente Líquida (RCL) a respeito das despesas com pessoal, dívida consolidada líquida, concessão de garantias e contratação de operações de crédito.

A periodicidade estabelecida pela LRF para o RGF é quadrimestral, devendo ser publicado e disponibilizado ao acesso público, inclusive em meios eletrônicos, até trinta dias após o encerramento do período a que corresponder. Prazo que, para o primeiro quadrimestre, encerra-se em 30 de maio, para o segundo quadrimestre, em 30 de setembro e, para o terceiro quadrimestre, em 30 de janeiro do ano subsequente ao de referência.

Esse relatório abrangerá a administração direta, autarquias, fundações, fundos, empresas públicas e sociedades de economia mista, incluindo os recursos próprios, consignados nos orçamentos fiscal e da seguridade social, para manutenção de suas atividades, excetuadas aquelas empresas que recebem recursos exclusivamente para aumento de capital oriundos de investimentos do respectivo ente.

O Relatório de Gestão Fiscal conterá demonstrativos comparativos dos limites da LRF com informações relativas à despesa total com pessoal, dívida consolidada, concessão de garantias e contragarantias de valores, operações de crédito, bem como as medidas corretivas adotadas ou a serem adotadas caso ultrapassados quaisquer dos limites previstos na LRF. No último quadrimestre, também serão acrescidos os demonstrativos referentes ao montante da disponibilidade de caixa em trinta e um de dezembro e às inscrições em Restos a Pagar. Em todos os demonstrativos do Relatório de Gestão Fiscal, as receitas e despesas intraorçamentárias deverão ser computadas juntamente com as demais informações, não havendo, portanto, a necessidade de segregação em linhas específicas.

Deixar de divulgar o RGF constitui infração administrativa contra as leis de finanças públicas, punida com multa pessoal de trinta por cento dos vencimentos anuais do agente que lhe der causa (art. 5º, § 1º, da Lei 10.028/2000), além de impedir que o ente receba transferências voluntárias e contrate operações de crédito.

Mas a divulgação destes relatórios e outros demonstrativos fiscais não é suficiente. Mesmo entre operadores do Direito, tais relatórios são, por vezes, ilustres desconhecidos. O Estado brasileiro deve realizar um amplo programa de educação e conscientização fiscal a fim de estimular o cidadão a compreender os seus direitos e deveres cívicos, concorrendo para o fortalecimento do ambiente republicano e democrático.

Marcus Abraham
Professor Adjunto de Direito Financeiro. Doutor em Direito Público. Mestre em Direito Tributário. MBA em Direito Empresarial. Desembargador Federal do TRF da 2ª Região. Ex-Procurador da Fazenda Nacional. Diretor da Escola da Magistratura Regional Federal da 2ª Região. Membro Correspondente da Academia Paulista de Letras Jurídicas.

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