sábado, 17 de setembro de 2016

Tributação e saída definitiva do país

A emigração de famílias brasileiras para o exterior tem se tornado um movimento cada vez mais comum, sobretudo considerando o atual contexto político e econômico do país. Porém, esse processo não necessariamente implica uma ruptura absoluta, uma vez que a condição de residente no exterior não impede a manutenção e realização de investimentos no Brasil.

Do ponto de vista prático, o cidadão brasileiro que se muda para o exterior deve cumprir com algumas obrigações perante as autoridades locais, tal como a transmissão da Declaração de Saída Definitiva para o Imposto de Renda (IR). Em relação aos investimentos financeiros que eventualmente sejam mantidos no Brasil, esses ativos devem ser transferidos para contas específicas para não residentes (e.g. contas de investidor não residente), que possuem características e regulação próprias.

Entendemos que a migração dos ativos financeiros para a conta de não residente não corresponde à sua realização, em que pese ser um movimento mais complexo do que uma simples transferência de recursos (podendo envolver fechamento de câmbio, recolhimento do IOF, comunicações ao Banco Central etc). Nesse caso, não há operação de venda, pois a propriedade dos ativos permanece com a mesma pessoa, apenas a qualificação do seu titular é transformada (de residente para não residente). Logo, se não há a realização do investimento, não há incidência do IR sobre os respectivos rendimentos acumulados.

É esperado que a administração tributária siga a interpretação mais conservadora do ADI nº 1

Essa lógica foi incorporada pela legislação em relação às aplicações de renda fixa em geral, ao impor que os rendimentos estejam sujeitos à retenção do imposto (IRRF) pela fonte pagadora no momento da liquidação, resgate, cessão ou repactuação do título ou aplicação, ou, em alguns casos expressamente previstos na lei, em bases semestrais (come cotas).

Sendo assim, é preciso estabelecer que o fato gerador do IR equivale à efetiva realização da renda, não havendo norma legal ou construção jurídica possível que suporte a conclusão de que a aquisição da condição de não residente deflagre a tributação dos rendimentos acumulados em aplicações de renda fixa ainda não realizadas.

Em janeiro deste ano, a Receita Federal publicou o Ato Declaratório Interpretativo nº 1 (ADI 1/2016). O ato expõe que, para fins de aplicação do regime especial de tributação de não residente (exceto os localizados em paraísos fiscais), o responsável tributário deverá reter e recolher o IR sobre os rendimentos auferidos até o dia anterior à aquisição da condição de não residente. Se o tributo não for objeto de retenção na fonte, o IR deverá ser pago pelo próprio contribuinte ou seu representante legal.

Esse regime especial, consolidado pela IN RFB nº 1.585/15 (artigo 88 e ss), é responsável por conferir às pessoas físicas residentes no exterior a redução da alíquota do IR ou promover a sua isenção total em relação à diversas classes de investimentos (e.g. títulos públicos).

Consideremos que uma determinada pessoa física detenha cotas de um fundo fechado com aplicações em renda fixa. A legislação prevê que a incidência do IRRF só ocorrerá na realização das cotas via amortização ou alienação. O fato de essa mesma pessoa tornar-se investidor não residente não corresponde à percepção de renda tributável, aliás, como os ganhos ainda não foram realizados, sequer haveria recursos para liquidação do suposto IR devido.

Uma interpretação mais apressada do ADI levaria à conclusão de que se exige o pagamento do IR do fundo fechado no momento da saída definitiva do país. Essa interpretação, contudo, carece de amparo legal, pois, conforme previsão constitucional, apenas a lei é capaz de estabelecer a incidência do IR, de modo que os atos expedidos pelo Fisco não são capazes de criar fato gerador do imposto. Deslocar a incidência do IR para o momento da mudança para o exterior significa alterar o fato gerador do imposto.

Outra interpretação, mais fiscalista, seria entender que a qualidade de não residente deve ser observada ao longo de todo o investimento e, portanto, o regime especial não se aplicaria aos investimentos adquiridos como residente no Brasil. Porém, esse entendimento igualmente corresponderia a condição não prevista em lei.

A nosso ver, o ADI sobreveio com uma interpretação intermediária, admitindo que, sobre a mesma aplicação, podem existir rendimentos auferidos na qualidade de residente (tributáveis) e de não residente (elegíveis ao regime especial). Porém, como determinar qual parcela do rendimento foi auferida antes ou depois da saída do país? Essa dúvida (entre muitas outras) traz diversos desafios para a aplicação da legislação em relação ao controle operacional da administração tributária.

O ato viria a oferecer uma solução de ordem prática. Se o titular do investimento deseja ser beneficiado pelo regime especial, então os rendimentos acumulados como residente devem ser tributados por ocasião da saída definitiva. De outro lado, o contribuinte poderá optar por recolher o IR apenas no momento da alienação do investimento, mas não fará jus ao regime especial.

Dessa sorte, o ADI teria estabelecido uma condição adicional, que também, vale dizer, excederia os limites da lei, mas para propor norma teoricamente mais favorável ao contribuinte. Na prática, contudo, é esperado que as entidades responsáveis pela retenção do IR tendam a seguir a interpretação mais conservadora do ADI, exigindo a retenção e o pagamento do IR sobre as aplicações financeiras no momento em que seja feita a saída definitiva do país.

por Lavinia Junqueira e Telírio Saraiva são, respectivamente, sócia e associado da área de Direito Tributário de Trench, Rossi e Watanabe Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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