quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Avanço das regras de tributação não acompanha o das novas tecnologias

O ano era o de 1965. Surgia, no Brasil, a única e efetiva reforma tributária que o país experimentou em toda a sua história. O resultado dessa reforma foi o de criar um sistema de tributação único no mundo, em que a competência para a tributação indireta foi repartida entre três esferas da Federação: União (IPI), estados (antigo ICM, atual ICMS) e municípios (ISS), que passaram a onerar a indústria, o comércio e a prestação de serviços, respectivamente.

De lá para cá, várias outras tentativas de reforma ocorreram, mas nenhuma com a profundidade e amplitude que teve a de 1965. Pode-se dizer, assim, que o sistema tributário a que estamos todos submetidos foi originalmente criado nos anos 60.

Portanto, não bastasse a peculiaridade do modelo tributário adotado pelo nosso ordenamento jurídico tributário, o cenário em que ele foi criado é absolutamente diverso daquele em que vivemos atualmente.

De fato, naquela década, as operações mercantis tinham por objeto exclusivamente bens corpóreos (mercadorias), que circulavam fisicamente de uma parte a outra. A telefonia era discada e analógica, e, se quiséssemos fazer uma ligação telefônica interurbana, teríamos que solicitá-la à operadora, com horas de antecedência. Pesquisas de todo gênero eram feitas em bibliotecas, ou em casa, na Encyclopedia Britannica, Barsa, ou em tantas outras obras do gênero. Serviços eram sempre dependentes do esforço humano, físico ou intelectual, e a participação de máquinas e equipamentos na sua prestação se dava de forma absolutamente subsidiária. Arquivos eram guardados em armários ou em estantes. As nuvens eram só as da natureza. Era, em suma, um mundo físico. E o temor fundado, real e atual de que a máquina dominará o homem não passava de mero receio, naquela época.

Esse cenário mudou radicalmente. As inovações tecnológicas variaram, desde a revolução propiciada pela Internet, com todas as atividades que lhe são acessórias (provimentos de acesso, e-mails, sites, publicidades em sites, bandas largas etc), passando por outras utilidades, como o download, o streaming, o SaaS (software as a service), a robotização, a Internet das coisas, a inteligência artificial, até a mais recente, relativa às atividades exercidas na plataforma Blockchain.

O mundo mudou e se virtualizou. A economia passou a ser dominada por empresas ligadas ao setor de tecnologia (Google, Amazon, Apple, Facebook e Microsoft), o que possibilitou o surgimento de arranjos empresariais até então inimagináveis. A intangibilidade sem precedentes tornou progressivamente dispensável a presença física em determinada jurisdição para que, nela, fosse possível alcançar o mercado consumidor. As operações passaram a ocorrer de forma remota.

Planejamentos fiscais agressivos tornaram questionáveis as regras tradicionais de tributação do comércio internacional de mercadorias e serviços, intensificando-se, consequentemente, as disputas entre os Estados da residência e de fonte quanto à correta forma de tributação das atividades decorrentes da economia digital.

Sensível a esse novo cenário, a OCDE, já na década de 90, demonstrou pioneirismo na definição de princípios e regras aplicáveis ao comércio eletrônico e, mais recentemente, em 2015, foi novamente protagonista no enfrentamento dos desafios tributários da economia digital, ao criar o Projeto Beps (Base Erosion and Profit Shifting), que culminou na publicação, em 2015, do relatório final do action plan 1.

Apesar das particularidades da economia digital, o action plan 1 não recomenda a adoção de soluções que lhe sejam específicas. Alega-se que, em razão do seu imenso potencial de crescimento e natural inserção na nossa vida cotidiana, a economia digital provavelmente se tornará a própria economia, de forma que será simplesmente impossível segregá-la das demais. Impõem-se a adaptação da legislação tributária de forma que essas transações recebam o mesmo tratamento fiscal das operações “não virtuais”.

Diante disso, pergunta-se o leitor: no caso brasileiro, seria suficiente a mera adaptação das normas vigentes na nossa legislação interna para determinar a que incidências tributárias estariam sujeitas essas novas tecnologias?

Parece-me que não, até mesmo porque o nosso sistema tributário está fundado no princípio da estrita legalidade, sendo expressamente vedado o uso da analogia para a imposição de incidências não previstas expressamente em lei (artigo 108 do CTN).

Além disso, o ordenamento jurídico vigente, que, como demonstrado, remonta aos anos 60 e é dotado de uma peculiaridade extrema, não está, de fato, preparado nem estruturado para dispor adequadamente sobre a forma como devem ser tributadas as riquezas que circulam nesse novo mundo virtual.

O que vimos ocorrer, desde o início, foi o surgimento de um enorme conflito de competências, em que estados e municípios se digladiam para trazer para os seus respectivos campos de incidência a tributação dessas novas tecnologias.

A título de exemplo, cito a enorme discussão que houve entre esses dois entes da federação relativa à tributação dos denominados serviços de provimento de acesso à Internet. Os estados alegavam tratar-se de serviços de telecomunicação, tributáveis pelo ICMS, e os municípios, por sua vez, sustentavam que a natureza desses serviços seria a de processamento de dados, o que os tornaria tributáveis pelo ISS.

A jurisprudência não deu razão a nenhum dos dois, justamente por não haver previsão legal expressa que fundamentasse nem uma incidência nem outra.

Outro exemplo foi a recente edição de normas díspares relativas à tributação das transmissões via streaming, que deram ensejo a que estados (Convênio ICMS 106/17) e municípios (LC 157/16) se considerassem competentes para tributá-las, colocando os contribuintes em situação de indevida dupla oneração das suas atividades.

Essa situação de incerteza legislativa sobre as normas (e tributos) aplicáveis a essas novas tecnologias, seja pelo conflito de normas tributárias, seja pela ausência de normas regulatórias que as conceituem adequadamente, coloca os contribuintes em absoluto estado de perplexidade no que diz respeito à forma como tributá-las.

É o que ocorre com a tributação das atividades realizadas com a utilização da tecnologia Blockchain, cuja tributação tive a oportunidade de prazerosamente tratar em dois grandes congressos de que participei recentemente.

O primeiro foi o IX Congresso de Direito Tributário do Paraná, organizado pela professora Betina Treiger Grupenmacher e realizado entre os dias 08 e 10 de agosto. E o segundo foi o IV Congresso Mineiro de Direito Tributário, organizado pelo professor Farley Soares de Menezes e realizado entre os dias 22 e 24 de agosto. O tema que foi proposto em ambos os eventos foi a “Tributação do Blockchain e o novo paradigma da regulação”.

Pelo que pude verificar na minha preparação para essas palestras, Blockchain é, em uma forma extremamente simplista de defini-lo, uma tecnologia que exerce a função de um livro-razão digital, completamente descentralizado, em que são virtualmente validadas, armazenadas e codificadas, mediante um protocolo matemático, as mais diversas transações.

Essa tecnologia se notabilizou inicialmente por propiciar um meio de troca digital confiável das denominadas criptomoedas. O objetivo foi o de atingir um grau de segurança tamanho, que tornasse absolutamente impossível a falsificação ou modificação dos dados relativos ao registro das transações realizadas.

Atualmente, contudo, a tecnologia Blockchain vem ganhando papel de destaque, não mais se restringindo à viabilização de operações com criptoativos. Diversos países cogitam adotá-la para desburocratizar o pagamento de tributos, realizar eleições, registrar patentes, gestão de ativos, registrar a celebração dos mais diversos contratos e certificações, seguros e tantos outros.

Segundo a revista The Economist, o Blockchain mudará a economia. O Fórum Econômico Mundial foi mais longe para afirmar que, em nove anos, em 2017, cerca de 10% do PIB mundial estará em Blockchain (Deep Shift: Technology Tipping Points and Societal Impact, publicado em setembro de 2015).

O controle do Blockchain é bastante peculiar. Ele é feito por vários servidores ao mesmo tempo (tecnologia peer-to-peer – P2P). Como dito inicialmente, trata-se de um sistema completamente descentralizado, em que inexiste uma autoridade central intermediária responsável pela verificação e certificação das transações celebradas entre as partes (trusted third party). Cada computador, ao mesmo tempo em que é cliente e usuário, também assume a função de servidor, possibilitando a realização de transações e o compartilhamento de dados.

A tecnologia recebeu essa denominação porque as transações realizadas no seu âmbito são todas codificadas, registradas e armazenadas em uma cadeia de blocos virtuais encadeada de forma definitiva e descentralizada, de forma a que o conteúdo do bloco posterior esteja imutavelmente vinculado, por meio de um código de validação (hash), ao conteúdo do bloco anterior. O acesso à informação registrada se limita aos dados públicos, não criptografados. Qualquer pessoa tem acesso às transações, mas não é possível saber quem são os players envolvidos, mas somente suas chaves públicas.

Tal como a Internet, o Blockchain é um ambiente em que atividades são exercidas. Não há, portanto, que se falar na tributação do Blockchain em si, assim como não se pode cogitar da tributação da Internet. Em regra, a análise que pode ser feita é a da tributação das atividades e transações que são realizadas no âmbito de uma e de outra.

Contudo, essa não é uma tarefa simples, em razão, muitas vezes, da incerteza proporcionada pela indefinição da natureza dessas atividades. Foi o que ocorreu, por exemplo, com as próprias criptomoedas, pioneiras no uso da tecnologia.

Essa insegurança foi propiciada pela inexistência de lei que defina a natureza jurídica desses criptoativos e, também, pela edição de atos normativos e/ou regulatórios pelo Banco Central (Bacen), pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e a Receita Federal do Brasil (RFB), que atribuem a eles naturezas diversas e contraditórias.

De fato, em seus pronunciamentos, o Banco Central se limitou a definir as criptomoedas como “representações digitais de valor que não são emitidas por Banco Central ou outra autoridade monetária”.

Já a RFB expôs, através do seu Manual de Perguntas e Respostas sobre a Declaração do IRPF de 2017, o entendimento de que “moedas virtuais (bitcoins, por exemplo (....) devem ser declaradas na ficha ‘Bens e Direitos’ como ‘outros bens’, uma vez que podem ser equiparadas a ativos financeiros (...)”.

Por fim, recentemente, a CVM manifestou posição contrária à da Receita Federal, ao vedar a aquisição direta de criptomoedas por fundos de investimento, sob o argumento de que “as criptomoedas não podem ser qualificadas como ativos financeiros” (Ofício Circular 01/2018 da Superintendência de Relações com Investidores Institucionais).

Não obstante a controvérsia, parece-nos bastante claro que, no marco regulatório atual, esses criptoativos não podem ser considerados “moeda”, na medida em que, nos termos das normas constitucionais aplicáveis, somente a União, por meio do Banco Central, teria competência para emiti-la e regular a sua oferta.

Se não há moeda, poder-se-ia considerar como “compra e venda” os negócios jurídicos realizados por meio da utilização desses ativos? Se não, que natureza eles teriam? Permuta, dação de pagamento, cessão de bens e direitos?

A resposta a essa indagação é premissa para a tributação da renda e dos próprios negócios realizados.

Além disso, se, de acordo com o entendimento do Bacem e da própria RFB, as criptomoedas não podem ser consideradas “moedas”, não há como concluir-se estejam elas sujeitas à tributação do IOF-Câmbio, no momento em que convertidas em moeda nacional.

Outro aspecto controverso é aquele relativo à possibilidade de tratar as criptomoedas como “título ou valor mobiliário” à luz do art. 2º da Lei 6.385/76, o que também geraria repercussões no que se refere à incidência do IOF.

Some-se a essas numerosas incertezas a relativa ao correto tratamento tributário a ser conferido à atividade exercida pelos agentes responsáveis pela obtenção do hash (código de validação das transações realizadas e de conexão de um bloco a outro). Convencionou-se denominar esses agentes “mineradores”.

Eles são absolutamente essenciais ao funcionamento da tecnologia blockchain, na medida em que são responsáveis pela validação e codificação das transações realizadas. Contudo, é importante ressaltar que os mineradores não participam dessas transações nem mantêm qualquer relação de prestação de serviços com as partes envolvidas (nem mesmo as identificam). Eles se limitam a fazer os cálculos dos quais resulta o hash, a ser utilizado pela tecnologia.

A remuneração dos mineradores é feita pela própria tecnologia, que lhes disponibiliza criptomoedas como recompensa, a cada hash obtido.

No Congresso do Paraná, Witoldo Hendrich Jr., com o objetivo de definir a natureza da atividade exercida pelos mineradores, fez uma comparação que me pareceu muito feliz e ilustrativa. Nesse paralelo, ele se referiu àqueles carrinhos utilizados para carregar bagagem em aeroportos. Quando o passageiro os retira do suporte a que estão presos, ele deve fazer um depósito de R$ 5. Mas, se o carrinho utilizado é devolvido ao tal suporte em um determinado limite de tempo (10 minutos, por exemplo), o sistema oferece a possibilidade de retornar R$ 1,00, como incentivo a que os carrinhos sejam sempre devolvidos. É, portanto, um desconto concedido de forma condicionada à devolução tempestiva do carrinho.

Imagine que haja pessoas que, sabedoras disso, vão aos aeroportos com o único objetivo de devolver ao suporte os carrinhos que foram abandonados e, em seguida, receber essas moedas de R$ 1,00 a que os usuários originais teriam direito, se tivessem se incumbido da devolução.

Que há uma atividade sendo exercida nessa hipótese e que, em decorrência dela, há um acréscimo patrimonial, parece não haver dúvidas. Mas essa atividade seria configuradora de prestação de serviços, para fins de incidência do ISS?

Parece-me que não. De fato, não há relação jurídica que possa qualificar o exercício dessa atividade como prestação de serviços. De fato, no caso do carrinho, a pessoa que vai ao aeroporto para devolvê-lo ao sistema que o prende ao suporte exerce uma atividade que, apesar de beneficiar o aeroporto e, por que não, ao próprio usuário original, é realizada sem que haja qualquer relação jurídica de prestação de serviços entre ela e o aeroporto, ou entre ela e o usuário. Não há, portanto, que se falar em prestação de serviços, para fins de tributação pelo ISS. E, mesmo que se pudesse cogitar da existência de serviço, ele não seria classificável entre aqueles listados taxativamente como sujeitos à tributação municipal.

O mesmo se diga em relação à atividade exercida pelos mineradores. Ela é por ele exercida com o único objetivo de produzir códigos de validação (hashes) que serão utilizados por uma tecnologia descentralizada e não personificada (o Blockchain) na conexão de blocos que conterão transações realizadas por pessoas absolutamente dele desconhecidas.

Não há, portanto, qualquer relação jurídica entre o minerador e os envolvidos nas transações codificadas e armazenadas que permita configurar a atividade por ele exercida como prestação de serviços. E, mesmo que houvesse, o serviço prestado não poderia ser considerado classificável em qualquer dos itens ou subitens elencados na LC 157/16. Note-se que o subitem 1.03 da lista de serviços, relativo ao processamento de dados, não seria o adequado, como pretendem alguns, porque o processamento realizado pelos mineradores não é a atividade-fim por ele realizada, mas mero meio para obtenção do código necessário à conexão dos blocos.

Portanto, não há que se falar na incidência do ISS na atividade de mineração.

E o acréscimo patrimonial decorrente do recebimento automático de criptomoedas pelos mineradores quando conseguem obter o código de validação? Ele seria tributável pelo Imposto sobre a Renda?

Parece-me que, nesse primeiro momento, não, porque ainda não terá havido acréscimo patrimonial configurador de efetiva renda ou proventos de qualquer natureza, nos termos do artigo 43 do CTN. De fato, esse acréscimo patrimonial só se tornará tributável no momento em que as criptomoedas forem convertidas em moeda local. O mesmo ocorre em outras modalidades de aquisição originária, como, por exemplo, a que se dá quando alguém encontra um bem que tenha sido abandonado (res derelictae). Esse acréscimo só se tornará tributável no momento em que houver a alienação a terceiros do bem encontrado.

Essa e todas as demais reflexões antes feitas têm um só objetivo: o de demonstrar o quanto um sistema tributário peculiar e cinquentenário como o nosso é insuficiente e inadequado para tratar das novas tecnologias. Essa situação agrava a insegurança jurídica que vivenciamos e reforça a necessidade de que a tão desejada reforma tributária seja realizada o quanto antes.

Gustavo Brigagão é sócio do escritório Brigagão, Duque Estrada, Emery - Advogados; presidente da Associação Brasileira de Direito Financeiro (ABDF); membro do Comitê Executivo da International Fiscal Association (IFA); presidente da Câmara Britânica do Rio de Janeiro (BRITCHAM-RJ); conselheiro da OAB-RJ; diretor de Relações Internacionais do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa); diretor da Federação das Câmaras de Comércio do Exterior (FCCE); e professor em cursos de pós-graduação na Fundação Getulio Vargas.

Fonte: Conjur

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