sábado, 29 de abril de 2017

Um novo contrato social

O Secretário Geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico recebeu, em março de 2017, as recomendações do Grupo de Alto Nível de Assessoramento em Anticorrupção e Integridade. Embora não tenha sido dado nenhum destaque ao tema, a relação entre corrupção e níveis baixos de competição nas licitações públicas fica bastante clara na 18ª recomendação, que propõe a criação de mecanismos de colaboração entre áreas de conhecimento – incluindo compras públicas e competição – relevantes para o tratamento do tema dentro dos países membros da OCDE, com o objetivo de garantir iniciativas mais consistentes e coerentes de prevenção e coação nos setores público e privado.

Essa recomendação pode soar como novidade aos ouvidos do neófito, mas há, no governo federal, pelo menos um órgão que, há anos, advoga maior concorrência nas licitações públicas como forma de garantir o aprimoramento do gasto público e a elevação do bem-estar social. A Secretaria de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, integrante do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência e, por excelência, o órgão de promoção (ou advocacia) da concorrência dentro das instâncias públicas, tem-se manifestado, historicamente, a favor de conferir condições materiais a que grupos estrangeiros tenham condições de competir, em pé de igualdade, em licitações públicas no Brasil – em particular para a contratação de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto. Esse esforço tem estado presente não apenas em foros de que participa dentro do governo e nas recomendações feitas em consultas e audiências públicas voltadas para a análise de minutas de editais e contratos de concessão, mas na própria avaliação do Projeto de Lei nº 559/2013, incluído na Agenda Brasil e que visa modernizar a Lei de Licitações e Contratos (Lei nº 8.666/1993). Se, de um lado, a Secretaria não tem conseguido se fazer ouvir em que empunha a bandeira dos benefícios econômicos advindos de maior concorrência, parece, de outro, importante refletirmos, um pouco “fora da caixinha”, para avaliar como a ausência de competição tem servido de instrumento para a perpetuação da cultura de corrupção dentro do Estado. É disso que trata este artigo.

Parafraseando Sérgio Lazzarini, as relações entre o Estado brasileiro e as grandes empresas nacionais têm funcionado por meio de um capitalismo de laços. De forma bastante rudimentar, é possível dizer que o Estado brasileiro favorece os grandes grupos nacionais fechando a economia à competição internacional e toma, como contrapartida, o compromisso de que realizarão investimentos estratégicos para as políticas públicas prioritárias do partido que se encontra no poder – em particular em momentos de crise, ou aqueles cujo risco o mercado, em situação regular, não aceitaria. Como pude descrever na Universidade de Stanford, o grande problema nessa lógica intervencionista é que, sempre que o Estado assume o papel de comando, ou de exercício da atividade econômica, torna-se necessário desenvolver uma estratégia de mitigação dos efeitos da captura privada e da corrupção dos agentes públicos. Como o capitalismo de laços funciona à margem das normas e das boas práticas que regem a administração pública, não existe referida estratégia de mitigação, de tal sorte a confirmar que, quanto menor o nível de competição e maior o controle do Estado sobre a atividade econômica, menor a eficiência da solução e maior a perda de bem-estar da população.

O reflexo desse fechamento à concorrência internacional é, portanto, justo aquilo que se expõe na vitrine da Operação Lava-Jato: a rivalidade deixa de ocorrer no mercado, ou na briga pelo mercado (na oferta da melhor proposta — segundo o interesse público — pelo objeto da licitação) e desloca-se para a definição de quem oferece maiores vantagens para o agente político decisor. Um efeito bastante claro da corrupção é a quantidade excessiva de reajustes de contratos: mesmo quando uma licitação é formalmente internacional, o licitante menos eficiente sagra-se vencedor com uma proposta inexequível e que será renegociada após a outorga do contrato. Essa estratégia, conhecida como risco moral – porque alguém sabe, antes da licitação, que pode vencer um certame com uma proposta que não consegue cumprir, já apostando no seu poder de barganha para renegociar valores -, instrumentaliza a formalização do contrato menos eficiente, porque transfere a outorga de quem estaria mais apto a cumprir a tarefa para quem suborna o agente público justamente porque não consegue ser tão eficiente quanto o seu competidor. Não bastasse o custo mais elevado e a qualidade inferior, esses acertos, não raras vezes, levam às ações do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União parando obras superfaturadas. Como cereja do bolo, além de um contrato ineficiente, a corrupção gera um prêmio a ser transferido pelo vencedor ao agente público corrompido.

A efetiva exposição dos certames à competição internacional pela concomitante abertura à participação estrangeira e eliminação do viés favorável à indústria nacional (que alimenta o risco moral) é, portanto, uma medida que gera benefícios claros à competição e reduz os riscos de corrupção – ao mesmo tempo em que não há justificativas suficientes para não tornar esse acesso a regra.  Não há custos adicionais, exceto maior transparência ao certame – que pode ser dada até mesmo em português em sítio eletrônico oficial, tendo em vista que há intermediários no Brasil capazes de acionar esses competidores internacionais. Não há, tampouco, restrições temporais: ainda que a participação internacional demande prazo adicional para que os interessados possam cuidar de traduções e equivalências documentais, o edital pode, pelas regras que hoje regem as licitações, aceitar documentação equivalente à solicitada e inverter a ordem da habilitação. A isso se some que os ganhos em qualidade e tecnologia, a redução de desvios de verbas e os custos mais baixos de contratação são certos – o que, diga-se, é, por si só, suficiente para garantir que qualquer acréscimo de prazo e de custo seja pouco significativo vis-à-vis a elevação de custos e do prazo de execução de contratos ineficientes sujeitos à ação dos órgãos de controle.     

Na falta de competição internacional e instalado o modelo de simbiose com os campeões nacionais – ou, em outras palavras, tendo falhado o modelo de prevenção -, cumpre ao país despender valiosos recursos na repressão da atividade criminosa, entre outros, por meio de condenações por cartel. Na administração pública, isso é tarefa do Conselho Administrativo de Defesa Econômica e, resta evidente, reside aí um dos motivos para que, mais do que as agências reguladoras, o Cade guarde autonomia em relação aos mandatários de todos os poderes. Uma vez mais, o capitalismo de laços nos impõe custos crescentes na atividade de fiscalização e repressão, ao mesmo tempo em que torna pouco crível a existência de um modelo de nomeações completamente isento de captura – a fim de que atos de concentração envolvendo campeões nacionais sejam aprovados e investigações envolvendo políticos sejam arquivadas.   

A ausência de incentivos adequados à competição no mercado e para o mercado – derivada de licitações públicas fechadas à competição internacional e da ausência de ameaça crível à punições dos campeões nacionais – justifica, a meu ver, repensar, topicamente, o funcionamento do modelo de defesa da concorrência no Brasil para torná-lo mais barato e mais crível e para que os seus órgãos sejam apreciados como instituições, na acepção de Douglass North – bastiões de um mercado em que a concorrência acontece em pé de igualdade. É preciso privilegiar um sistema preventivo – menos custoso e com ganhos líquidos de bem-estar social – de abertura à competição internacional e prestigiar servidores públicos e profissionais do setor privado com comprovada experiência no campo de defesa da concorrência – hoje suficientemente amplo para que não faltem candidatos adequados. E não há custo financeiro para nada disso. Não há necessidade de lei para nada disso. Mas há um empecilho maior: é preciso mudar a cultura do país. É preciso, como disse antes de mim o economista Samuel Pessoa, estabelecer um novo contrato social.

Roberto D. Taufick - Mestre em Direito, Ciência e Tecnologia e Gregory Terrill Cox Summer Research Fellow no John Olin Program in Law and Economics -- ambos pela Universidade de Stanford.

Fonte: Jota.info/

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