A decisão recente proferida pela primeira turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), no Recurso Especial nº 1555004, colocou ainda mais combustível nas manifestações acaloradas sobre o tema da prevalência dos órgãos públicos brasileiros para influenciar a classificação de mercadorias na Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), que dá origem à Tarifa Externa Comum (TEC).
Entenderam os ministros julgadores que a classificação determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve prevalecer em relação à opinião da Receita Federal do Brasil, especialmente quando da definição de cosméticos ou de medicamentos.
Deixando as paixões de lado, convém lembrar alguns aspectos importantes relacionados à abrangência das normas que compõem a estrutura jurídica aplicável à matéria.
Com o crescimento do comércio de mercadorias entre os países, foram desenvolvidos métodos para identificação e qualificação dos produtos, com o objetivo de monitorar estatisticamente as operações internacionais, bem como fixar a sua tributação.
Após iniciativas preliminares foi criado, em 1983, o Sistema Harmonizado (SH), tendo o Brasil aderido à Convenção Internacional em 1986, promulgada pelo Decreto nº 97.409, de 1988, declarando no seu artigo 1º que a Convenção "será executada e cumprida tão inteiramente como nela se contem."
O Sistema Harmonizado é uma nomenclatura utilizada internacionalmente, como um sistema padronizado e único mundial de codificação e de classificação de produtos sob controle aduaneiro, desenvolvido e mantido pela Organização Mundial das Alfândegas (OMA), sediada em Bruxelas, da qual o Brasil é integrante e ativo participante.
A padronização no enquadramento de uma determinada mercadoria nos códigos da Nomenclatura do Sistema Harmonizado proporciona inúmeras vantagens aos países membros do acordo.
A Nomenclatura Comum do Mercosul (NCM), aplicável aos países membros do bloco desde 1995, é calcada no Sistema Harmonizado e segue rigorosamente as suas diretrizes, especialmente quanto a manter a uniformização no tratamento das transações do comércio internacional. É a partir do código numérico da NCM que se identifica o tratamento tributário e administrativo aplicável à mercadoria sob controle aduaneiro, na importação ou na exportação. No caso brasileiro, serve igualmente para o IPI.
A classificação de mercadorias, no país, como de resto toda a aplicação da legislação aduaneira, é da competência da Secretaria da Receita Federal do Brasil, na forma do Decreto nº 7.482/11.
As dúvidas e os conflitos sobre enquadramento de mercadorias na NCM são resolvidos por procedimentos de consultas, respondidas pelo Centro de Classificação Fiscal de Mercadorias (Ceclam), composto por funcionários da Receita Federal do Brasil, entretanto vinculados e subordinados tecnicamente ao Comitê do Sistema Harmonizado, da OMA.
Por outro giro, a Anvisa tem a incumbência de exercer o controle sanitário de todos os produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, tais como medicamentos, alimentos, cosméticos, saneantes etc.
A Anvisa jamais indica o código NCM no enquadramento de produtos na sua área de competência, quando do registro ou da notificação de mercadorias. Portanto, não existe conflito entre a Anvisa e a Receita Federal, as quais têm competências distintas e atuações próprias.
Mas se por ventura acontecer eventual conflito, cada órgão manterá a classificação obedecendo às normas da sua área de competência.
No caso do processo sob análise, o classificador da Receita Federal indicou, corretamente, o código NCM para enquadrar o sabão medicinal submetido à fiscalização na importação, com base nas regras do Sistema Harmonizado. O acórdão do STJ, entretanto, rejeitou este enquadramento, concordando com a tese do importador, que indicou outro código NCM, com alíquota do tributo mais favorável.
O cerne do problema classificatório no Brasil está na carga tributária – muitas vezes bastante elevada – seja do Imposto de Importação, do IPI ou do ICMS (aqui também em relação à substituição tributária), fazendo com que o empresário procure reduzir seus custos elegendo um código, na NCM, que propicie menores despesas tributárias, apesar do risco que a prática representa, quando o enquadramento do produto contraria as normas do Sistema Harmonizado.
Importante frisar que o Brasil deve obedecer aos acordos internacionais que celebra. Caso contrário, estará fragilizando a sua posição perante o contexto das nações.
O Poder Executivo federal tem cumprido muito bem o seu papel no atendimento da Convenção do Sistema Harmonizado.
Entretanto, não é compatível com o acordo o fato de o Poder Judiciário, numa de suas mais altas esferas, que é o STJ, guardião da lei, determinar a subserviência do Sistema Harmonizado a outro órgão nacional de qualificação de mercadorias. Sem que a Anvisa assim o pretenda.
Imagina-se a balburdia que seria, em termos de uniformização no tratamento de produtos no comércio internacional, se congêneres da Anvisa, em outros países, também dispusessem de competência atribuída pelo Poder Judiciário local, para estabelecer códigos da nomenclatura de mercadoria, com base em critérios internos da sua nacionalidade. Deixaria de existir o Sistema Harmonizado, conquista tão preciosa e saudável para o intercâmbio comercial regular entre as nações.
A decisão do STJ merece reparo.
por Rubens Pellicciari é advogado tributarista e sócio do escritório Mesquita Neto Advogados
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Fonte : Valor
Via Alfonsin.com.br
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