sexta-feira, 27 de maio de 2016

27/05 Qual a função do orçamento anual?

Difícil saber, na prática, qual a função ou quais as funções do orçamento anual, apesar das diversas teorias e lições doutrinárias de abalizados estudiosos das finanças públicas.

Eu próprio escrevi sobre os dois aspectos fundamentais do orçamento, o aspecto político e o aspecto econômico: (a) o orçamento como instrumento representativo da vontade popular no sentido de direcionar o emprego das receitas públicas autorizadas pelo povo. “Daí porque o exame da peça orçamentária permitirá revelar, com clareza, em proveito de que grupos sociais e regiões, ou para solução de que problemas e necessidades funcionará a aparelhagem estatal”; (b) o orçamento como instrumento de otimização de recursos financeiros. Deve o governante eleger as prioridades da ação governamental, compatibilizando as necessidades da sociedade com as possibilidades de receitas, buscando a maior eficiência e com o mínimo de dispêndio para alcançar as metas fiscais aprovadas pelo Parlamento[1].

Entretanto, atualmente, o orçamento anual não passa de mera ficção, uma simples formalidade constitucional. Nenhum governante vem cumprindo o quanto determinado na Lei Orçamentária Anual – LOA. A violação começa pela inobservância do prazo constitucional para sua elaboração. A LOA é quase sempre aprovada no exercício em curso e concomitantemente com a Lei de Diretrizes Orçamentárias – LDO – que deveria orientar a elaboração da proposta orçamentária para o exercício seguinte. Esse quadro ilógico e irracional agravou-se a partir de 2002.

Só para citar, na cidade de São Paulo tivemos uma Prefeita do PT que inaugurou um sistema planejado de desviar as verbas consignadas ao Poder Judiciário para pagamento de precatórios, logo imitado pelos demais governantes estaduais e municipais. Durante quatro anos que governou a cidade pagou apenas quatro precatórios. Centenas de precatoristas já morreram e estão morrendo sem receber o que a Justiça reconheceu e determinou. Nada aconteceu apesar de o art. 12, inciso 4 da Lei nº 1.079/50, c.c. o art. 85, VI da CF considerar como crime de responsabilidade “impedir ou frustrar pagamento determinado por sentença judiciária”.

Daí o montante incrível de precatórios ditos “impagáveis”. O pior é que esses governantes são sempre os mesmos. Desde que FHC inventou a reeleição esses políticos caloteiros não mais deixam o Poder. Cada vez que retornam ficam durante dois mandatos consecutivos, aproveitando-se da falta de visão e criatividade da população em geral que só sabe votar nas mesmas pessoas, cujos nomes decoraram. Por isso, essa ex prefeita pretende disputar as próximas eleições em São Paulo sob o manto de uma outra sigla política, como se mudar de partido por conveniência do momento pudesse extinguir o espírito petista sempre avesso ao império da legalidade.

De tão desacreditado é o orçamento anual que a Câmara dos Deputados apresentou a PEC nº 565/06 prevendo a instituição do orçamento impositivo, isto é, aquele que não se limita a autorizar a execução de despesas autorizadas em lei, mas que obriga o governo exaurir as verbas consignadas nas dotações aprovadas pelo Legislativo, não dando ensejo às chamadas pedaladas fiscais. Para dar efetividade ao orçamento impositivo, o § 5º, do projetado art. 165-A da CF prescreveu que “a não execução de programação orçamentária, nas condições previstas neste artigo, implica crime de responsabilidade”. Mas, o motivo que inspirou essa iniciativa da Câmara não foi exatamente a preocupação com o quadro orçamentário caótico, mas o não repasse dos recursos financeiros correspondentes às verbas oriundas de emendas parlamentares. A generalização do orçamento impositivo era apenas uma cortina de fumaça para esconder a legislação em causa própria. Tanto é assim que a PEC nº 86, de 17 de março de 2015 acrescentou os parágrafos 9º a 18 ao art. 166 da CF, preconizando emendas individuais ao projeto de lei orçamentária que serão aprovadas no limite de 1,2% da receita corrente líquida prevista na proposta orçamentária enviada pelo Executivo (§ 9º), sendo obrigatória a sua execução (§ 11). Os parágrafos seguintes prescrevem as hipóteses de execução não obrigatória das verbas oriundas de emendas parlamentares, estatuindo regras com acentuado sadismo burocrático que mais se assemelha a um regulamento do imposto de renda.

Tudo o mais continua como dantes. As diversas dotações do orçamento só precisam ser executadas como previstas na LOA em relação às verbas consignadas aos Poderes Legislativo e Judiciário, aos órgãos do Ministério Público e da Defensoria Pública (art. 168 da CF) e, a contar do exercício de 2015, as verbas oriundas de emenda parlamentares (§§ 9º e 11, do art. 166-A da CF).

As metas e prioridades da administração pública federal previstas no § 2º, do art. 165 da CF deixaram de existir pelo terceiro ano consecutivo. As de 2013 foram alteradas no apagar das luzes de 2014; e as de 2014 foram alteradas no final de 2015; e as fixadas em 2015 estão sendo objetos de alteração neste exercício de 2016. Em outras palavras, o que parecia ser uma brincadeira quando a Presidente disse que não iria mais fixar metas, “mas dobrar as metas quando alcançadas” transformou-se em realidade. No ano de 2015, quando a mídia apregoava que o Ministro Levi venceu a batalha na manutenção do superávit primário previsto originariamente, eu dizia que não houve vitória alguma, porque o governo cedeu na ocasião, na absoluta certeza que aquela meta poderia ser alterada pelo dócil Congresso Nacional até o final do exercício de 2016[2]. A meta deixou de ser uma previsão do que o governo pretende fazer no campo financeiro, mas uma constatação e atestado do que o governo fez e deixou de fazer. É melhor eliminar ou suspender a vigência do § 2º, do art. 165 da CF enquanto persistir o atual regime de anormalidade jurídica em que o cumprimento da Constituição é um malefício e, às vezes, um golpe político na visão de golpistas que não querem largar o osso nem que os dentes se arrebentem.

por Kiyoshi Harada - Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

[1] F. nosso Direito financeiro e tributário. 25ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 76-77.

[2] No presente momento, felizmente, o Congresso Nacional, principalmente a Casa do Povo, está dando sinais de independência.

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