quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

21/02 E-books também devem ter imunidade tributária


Nossa Constituição Republicana de 1988 tem entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político[1]. Não é por outra razão que se consagra entre os direitos fundamentais do artigo 5º a liberdade de pensamento, vedando somente o anonimato. Permite-se, de tal forma, a ampla difusão de ideias e pensamentos, o que implica na saudável promoção de atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação[2]. É a liberdade em um Estado Democrático Direito para pensar e expressar suas ideias amplamente sem censura prévia, tornando a sociedade pluralista e o cidadão digno. Até porque a dignidade não se faz somente com pão e circo.

Em harmonia com este direito individual do cidadão é preciso, ainda, lembrar do direito coletivo de ser informado, que é coroado, especialmente, pelo artigo 220 da Constituição Federal, onde se tem a proteção da liberdade de imprensa, ao enunciar: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.parágrafo 1º - Nenhuma lei conterá dispositivo que possa constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística em qualquer veículo de comunicação social, observado o disposto no artigo 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV, parágrafo 2º - É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística”.

E como se viabiliza o exercício deste direito de expressar o pensamento e de ser informado? Isto se dá por meio tradicionalmente por meio de livros, jornais e periódicos, embora nos dias atuais outras formas vinculadas ao mundo eletrônico têm adquirido uma grande participação e devem ser inseridas neste sistema constitucional de direitos e garantias.

Daí porque o constituinte de 1988, no artigo 150, inciso VI, alínea “d”, impede que o Estado tribute livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão, como se pode constatar ao dispor que: “ Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (...) VI - instituir impostos sobre: (...) d) livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.”

Este dispositivo constitucional é uma garantia fundamental do cidadão, eis que, ao impedir a tributação, viabiliza, efetivamente, a liberdade de pensamento e próprio direito à educação que se corporifica por meio de livros, jornais e periódicos, bem como outros meios semelhantes. Ademais, não se trata de um simples direito individual do cidadão, mas, ao mesmo tempo, um direito coletivo de proteger e garantir o direito à informação e ao conhecimento, sendo verdadeiro limite ao próprio poder de reforma constitucional.[3]

Ocorre, porém, que o Estado, por meios de seus órgãos tributários, sempre restringiram indevidamente o gozo desta imunidade, em descompasso com o espírito democrático e de efetividade dos direitos fundamentais.

Felizmente, o Supremo Tribunal Federal tem sido um defensor desta imunidade ao interpretá-la de modo mais amplo e sempre à luz da finalidade almejada pelo constituinte que é a difusão democrática e pluralista de ideias, sem prévia censura. Bem por isso, a jurisprudência do Supremo tem decidido que a impossibilidade de se tributar o livro, jornal e periódico: (i) – não depende do conteúdo, razão pela qual ser reconheceu este direito inclusive a lista telefônica[4] e álbum de figurinhas[5]; (ii) – não somente se protege o papel mas também os filmes e papéis fotográficos[6].

Além disso, o STF, partindo da premissa de que a imunidade objetiva viabilizar a divulgação de ideais à comunicação, evoluiu recentemente ainda mais em suas decisões ao entender que também não poderá ser objeto de tributação todo e qualquer insumo e mesmo ferramenta indispensável à edição de veículos de comunicação, como o maquinário de impressão offset.

Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal Federal[7]: “CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Extraia-se da Constituição Federal, em interpretação teleológica e integrativa, a maior concretude possível. IMUNIDADE – “LIVROS, JORNAIS, PERIÓDICOS E O PAPEL DESTINADO A SUA IMPRESSÃO” – ARTIGO 150, INCISO VI, ALÍNEA “D”, DA CARTA DA REPÚBLICA – INTELIGÊNCIA. A imunidade tributária relativa a livros, jornais e periódicos é ampla, total, apanhando produto, maquinário e insumos. A referência, no preceito, a papel é exemplificativa e não exaustiva”.

Tais decisões demonstram claramente a necessidade de o governo (federal, estadual e municipal) cada vez mais viabilizar a imunidade tributária dos livros, jornais e periódicos, bem como dos insumos que permitam a edição de tais bens de fundamental importância (como papel, tintas, maquinários, entre outros), dentro de um espírito democrático, sob pena de forçar o contribuinte a se dirigir, mais uma vez, ao Poder Judiciário para poder resguardar seus direitos. E se, assim for, não deve se acanhar!

Ao Supremo Tribunal Federal, ainda, cabe mais um desafio: reconhecer que esta imunidade tributária se estende aos livros eletrônicos e demais itens (aparelhos de leitura, entre outros), o que se dará com o julgamento do Recurso Extraordinário 330.817/RJ[8], ainda sem data para inclusão em pauta. Acredito que a melhor interpretação se dará em favor da imunidade e assim espero!

Neste aspecto, tivemos oportunidade de afirmar juntamente com Saul Tourinho Leal que, entre outros argumentos: “A finalidade normativa de referido texto constitucional, ao imunizar o livro, foi de proteger e dar o máximo de eficácia aos direitos fundamentais vinculados à liberdade, democracia, pluralismo, cultura, educação, ciência e informação. O objetivo é de viabilizar a expansão, divulgação, criação e acesso ao conhecimento, ideias, pensamentos, informações, cultura, ciência, educação, por meio de livros. Daí porque, o suporte em que se encontra o livro é de somenos importância, quando o que se pretende é proteger com máxima eficácia os bens jurídicos constitucionalmente elegidos. Repita-se: o que é relevante é a substância (livro = conhecimento, cultura, educação, pensamentos, ideias, entre outros aspectos) e não forma (suporte físico = em papel, em cd, em DVD, em Kindle, digital, entre outros”.[9]

Ademais, de forma pertinente esclarece Andrei Pitten Velloso: “Dita concepção advém de uma inadequada interpretação literal do artigo 150, inciso VI, alínea ‘d’, da Constituição Federal, que vincula os objetos culturais desonerados (livros, jornais e periódicos) ao suporte físico em que eles costumavam ser impressos (papel). Argumenta-se que, se o constituinte aludiu ao papel destinado à impressão dos livros, jornais e periódicos, ele somente teria pretendido desonerá-los no seu formato impresso, jamais eletrônico. Essa linha argumentativa parece sustentar-se em premissas falsas, vendo a imunidade dos livros, jornais e periódicos como um privilégio tributário concedido à indústria gráfica[10], quando ela constitui uma garantia de todos os cidadãos, que resguarda direitos e liberdades fundamentais, indispensáveis à construção de uma nação culta, civilizada e competitiva. Deve-se, pois, rever tal posicionamento, a fim de que se respeite não apenas a letra do artigo 150, VI, d, da Constituição da República - que concede a imunidade a todos os livros, e não apenas a parcela deles -, mas sobretudo a sua finalidade, de resguardar a liberdade de expressão e de realizar os direitos fundamentais à educação, à informação e à cultura.”[11]

Até porque, seja em papel ou por outro meio, vale lembrar as palavras de Castro Alves, extraída de voto do Ministro Carlos Ayres Britto[12]:

“Oh! Bendito o que semeia

Livros... livros à mão cheia...

E manda o povo pensar!

O livro caindo n´a alma

É germe – que faz a palma,

É chuva – que faz o mar”.

[1] Artigo 1º, incisos III e V, CF/88.

[2] Artigo 5º, “caput”, incisos IV, V, X, XIII e XIV.

[3] Já tivemos a oportunidade de afirmar juntamente com Saul Tourinho Leal que: “Essa incompetência tributária é um relevante instrumento criado pelo poder constituinte originário para resguardar direitos fundamentais colocados como mecanismos inibidores do poder de tributar, uma vez que este pode gerar efeitos perversos caso seja exercido de modo desproporcional ou para restringir, indevidamente, direitos fundamentais. Por esse prisma, a imunidade tributária, mais do que uma garantia do contribuinte-cidadão, representa uma cláusula pétrea ou uma limitação material ao poder de reforma da Constituição. Isso traz duas consequências: (i) – permite reconhecer a esta parte da Constituição, apesar inexistir hierarquia dentro do texto, uma importância maior que deve ser considerada ao se promover uma interpretação e aplicação; (ii) - qualquer alteração no texto (mutação formal ou informal) deve ter por finalidade a proteção dos direitos e jamais a sua restrição tendente à abolição; (iii) – a interpretação do texto constitucional há de ser finalística e ampla quando se busca proteger os bens jurídicos excluídos do poder de tributar.”. (CALCINI, Fábio Pallaretti Calcini. LEAL, Saul Tourinho. Imunidade tributária do livro eletrônico e semelhantes. “in” Direito Tributário e educação. CALCINI, Fábio Pallaretti. MARTINS, Ives Gandra da Silva. PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). São Paulo: MP, 2013. p. 102-103). Confira-se ainda: CALCINI, Fábio Pallaretti. Limites ao poder de reforma da Constituição. Campinas: Millennium, 2009.

[4] - “IMUNIDADE TRIBUTARIA (ARTIGO 19, III, 'D', DA C.F.). I.S.S. - LISTAS TELEFONICAS. A EDIÇÃO DE LISTAS TELEFONICAS (CATALOGOS OU GUIAS) E IMUNE AO I.S.S., (ARTIGO 19, III, 'D', DA C.F.), MESMO QUE NELAS HAJA PUBLICIDADE PAGA. SE A NORMA CONSTITUCIONAL VISOU FACILITAR A CONFECÇÃO, EDIÇÃO E DISTRIBUIÇÃO DO LIVRO, DO JORNAL E DOS 'PERIODICOS', IMUNIZANDO-SE AO TRIBUTO, ASSIM COMO O PRÓPRIO PAPEL DESTINADO A SUA IMPRESSAO, E DE SE ENTENDER QUE NÃO ESTAO EXCLUIDOS DA IMUNIDADE OS 'PERIODICOS' QUE CUIDAM APENAS E TÃO-SOMENTE DE INFORMAÇÕES GENERICAS OU ESPECIFICAS, SEM CARÁTER NOTICIOSO, DISCURSIVO, LITERARIO, POETICO OU FILOSOFICO, MAS DE 'INEGAVEL UTILIDADE PÚBLICA', COMO E O CASO DAS LISTAS TELEFONICAS. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO, POR UNANIMIDADE DE VOTOS, PELA LETRA 'D' DO PERMISSIVO CONSTITUCIONAL, E PROVIDO, POR MAIORIA, PARA DEFERIMENTO DO MANDADO DE SEGURANÇA. (STF, RE 101441, Rel.  Min. SYDNEY SANCHES, Pleno, j. 04/11/1987, DJ 19/08/1988).

[5] “CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE. ARTIGO 150, VI, "D" DA CF/88. "ÁLBUM DE FIGURINHAS". ADMISSIBILIDADE. 1. A imunidade tributária sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão tem por escopo evitar embaraços ao exercício da liberdade de expressão intelectual, artística, científica e de comunicação, bem como facilitar o acesso da população à cultura, à informação e à educação. 2. O Constituinte, ao instituir esta benesse, não fez ressalvas quanto ao valor artístico ou didático, à relevância das informações divulgadas ou à qualidade cultural de uma publicação. 3. Não cabe ao aplicador da norma constitucional em tela afastar este benefício fiscal instituído para proteger direito tão importante ao exercício da democracia, por força de um juízo subjetivo acerca da qualidade cultural ou do valor pedagógico de uma publicação destinada ao público infanto-juvenil. 4. Recurso extraordinário conhecido e provido.” (STF,

(RE 221239, Rel. Min. ELLEN GRACIE, 2T, j. 25/05/2004, DJ 06/08/2004).

[6] “IMUNIDADE - IMPOSTOS - LIVROS - JORNAIS E PERIÓDICOS - ARTIGO 150, INCISO VI, ALÍNEA "D", DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. A razão de ser da imunidade prevista no texto constitucional, e nada surge sem uma causa, uma razão suficiente, uma necessidade, está no interesse da sociedade em ver afastados procedimentos, ainda que normatizados, capazes de inibir a produção material e intelectual de livros, jornais e periódicos. O benefício constitucional alcança não só o papel utilizado diretamente na confecção dos bens referidos, como também insumos nela consumidos com são os filmes e papéis fotográficos”. (STF, RE 174476, Rel. p/ Acórdão  Min. MARCO AURÉLIO, Pleno, j. 26/09/1996, DJ 12/12/1997).

[7] STF, RE 202149, Rel. p/ Acórdão Min. MARCO AURÉLIO, 1T, j. 26/04/2011, DJe-195 DIVULG 10/10/2011.

[8] DIREITO CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO. PRETENDIDA IMUNIDADE TRIBUTÁRIA A RECAIR SOBRE LIVRO ELETRÔNICO. NECESSIDADE DE CORRETA INTERPRETAÇÃO DA NORMA CONSTITUCIONAL QUE CUIDA DO TEMA (ARTIGO 150, INCISO IV, ALÍNEA D). MATÉRIA PASSÍVEL DE REPETIÇÃO EM INÚMEROS PROCESSOS, A REPERCUTIR NA ESFERA DE INTERESSE DE TODA A SOCIEDADE. TEMA COM REPERCUSSÃO GERAL. (RE 330817 RG, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, julgado em 20/09/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-192 DIVULG 28-09-2012 PUBLIC 01-10-2012 )

[9] CALCINI, Fábio Pallaretti. LEAL, Saul Tourinho. Imunidade do livro eletrônico e semelhantes. “in” Direito Tributário e educação. CALCINI, Fábio Pallaretti. MARTINS, Ives Gandra da Silva. PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.) São Paulo: MP, 2013. p. 109.

[10] Quanto à extensão da imunidade, ponto que merece também melhor reflexão pelo Supremo Tribunal Federal diz respeito aos serviços de composição e impressão gráfica de livros, jornais e periódicos. Entendemos que tais serviços mereceriam a extensão da imunidade constitucional diante de uma interpretação abrangente e finalística, incluindo-se esta parte essencial da cadeia produtiva. Não negamos que há precedente do Supremo Tribunal desfavorável, mas cabe refletir a respeito da matéria. (STF, AI 723018 AgR, Rel.  Min. Joaquim Barbosa, 2T, j. 06/03/2012, Acórdão eletrônico DJe-057 19/03/2012).

[11] VELLOSO, Andrei Pitten. Imunidade do livro eletrônico. Jornal Carta Forense. 4 de janeiro de 2011.

[12] STF, RE 202149, Rel. p/ Acórdão Min. MARCO AURÉLIO, 1T, j. 26/04/2011, DJe-195 DIVULG 10/10/2011.

Por Fábio Pallaretti Calcini é advogado do escritório Salomão e Matthes Advocacia.

Fonte: Conjur

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