sexta-feira, 9 de junho de 2017

Impressão 3D e sistema tributário disfuncional

Há muito se discute sobre a complexidade e inoperância do sistema tributário brasileiro. Entra governo, sai governo, estamos às voltas com promessas de reformas que tragam simplicidade e razoabilidade ao nosso sistema tributário.

Quem tem juízo, mantém as expectativas baixas, já que a demora ou falta de interesse em produzir mudanças parece favorecer a administração, que supostamente se beneficia da existência de um regime fiscal disfuncional.

Entretanto, empurrar com a barriga a realização de uma reforma tributária não mais será uma opção do governo brasileiro. A reforma será uma questão de sobrevivência. A quem devemos essa façanha, já que são inúmeros os personagens que não obtiveram sucesso nessa cruzada? A resposta sugerida é direta: a reforma tributária será cunhada, a fórceps, pelo surgimento de tecnologias disruptivas, tal como a utilização de impressoras 3D em escala comercial.

Imaginem, agora, os impactos que a adoção de impressoras 3D em escala comercial poderão causar aos sistemas tributários

As impressoras 3D, objeto de reportagem deste Valor em 24.4.17, "são máquinas capazes de fazer praticamente qualquer objeto – do componente do motor de um avião a próteses humanas, passando por peças de carros, brinquedos e roupas". A grosso modo, basta que o usuário detenha a impressora, adicione a inteligência (software¸ aqui tratado como "aplicativo") e a matéria-prima (plástico, metal, tecido, etc), para que o produto desejado seja fabricado.

Imaginem, agora, os impactos que a adoção de impressoras 3D em escala comercial poderão causar aos sistemas tributários, em especial ao brasileiro.

Como regra geral, nosso sistema tributário está baseado na imposição de tributos específicos sobre atividades industriais, comerciais e de prestação de serviços. Ademais, tributos são exigidos na importação de bens, verificada quando da entrada das mercadorias em território nacional.

Se um fabricante produzir um produto e comercializá-lo, tais operações estarão sujeitas, no que interessa à presente discussão, à incidência do IPI e do ICMS. Dependendo do produto, mais complexidade pode surgir, com a imposição de regimes de substituição tributária. Na atividade típica de um fabricante de vestuário, o Fisco pode esperar o recolhimento do IPI e do ICMS devidos na fabricação e comercialização da roupa ao consumidor.

Quando se insere a impressão 3D nessa equação, o resultado é explosivo. Espera-se que, em um futuro próximo, sejamos capazes de produzir nossos próprios produtos no conforto de nossas residências. Gostou de uma roupa em passeio pelo shopping ou pelo site de sua marca preferida? Por meio de um clique, o aplicativo que contém as instruções para a confecção da roupa é transferido a uma impressora 3D específica, que, alimentada de matérias-primas (tecido), produzirá a roupa escolhida.

Nesse novo modelo, consumidores pagarão à empresa que fabricava roupas pela aquisição do aplicativo. Em paralelo, tais consumidores adquirirão matérias-primas para a produção do vestuário. Já que grande parte do valor dessas transações deva ser atribuído ao aplicativo, o governo brasileiro sofrerá, de imediato, um golpe na sua capacidade de arrecadar tributos.

O primeiro golpe consiste na impossibilidade de arrecadação do IPI sobre os pagamentos feitos pelos usuários para a aquisição da "roupa virtual" contida no aplicativo. Se a roupa é produzida pelo próprio consumidor, não haverá incidência do IPI nesta etapa da operação. É fato que o IPI continuará a incidir na aquisição das matérias-primas que alimentarão as impressoras 3D, mas os valores tendem a ser pouco expressivos quando comparados ao valor atribuído ao aplicativo que contiver o plano para a impressão da roupa.

Outra ameaça está relacionada à definição do tributo que incidirá na aquisição do aplicativo pelo consumidor. Acreditem: estamos em 2017 e ainda não sabemos se operações que envolvam o download de softwares estão sujeitas à incidência do ICMS, do ISS ou de nenhum desses tributos! Estados (ICMS) e municípios (ISS) disputam a competência para tributar essas operações, enquanto que o STF coloca lenha na fogueira da insegurança jurídica ao não julgar uma ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 1.945), ajuizada há quase 20 anos, cujo propósito é determinar se é constitucional a cobrança, pelo Estado do Mato Grosso, do ICMS em operações envolvendo o download de softwares.

Esse tipo de desgaste teria fim se o sistema tributário brasileiro eliminasse a cobrança do ICMS e do ISS, substituindo-os por um tributo único, de competência da União, que incidiria de forma geral e não cumulativa sobre atividades empresariais (setor de serviços, comércio, indústria e similares, para que ninguém alegue que sua atividade não pode ser tributada).

Se não bastassem os desafios acima, o que dizer do regime de tributação de importações, que privilegia a incidência de tributos (IPI, I.I, ICMS etc) no desembaraço aduaneiro de mercadorias físicas?

Em um mundo em que a impressão 3D tenha se tornado realidade, muitas aduanas tendem a ver navios, já que os consumidores adquirirão os aplicativos dos produtos detidos por companhias localizadas em qualquer parte do globo, para então produzi-los por meio de suas impressoras 3D. Imaginem a perda de arrecadação que pode advir do setor industrial se uma indústria, ao invés de importar maquinários e peças, passar a produzi-los por meio de impressoras 3D próprias?

A estratégia de empurrar com a barriga a realização de uma reforma tributária já está cobrando o seu preço, sendo que a conta só crescerá.

A realização de puxadinhos em um sistema disfuncional não mais terá vez tão logo tecnologias disruptivas sejam adotadas em escala comercial. Bom senso, unificação de tributos e imposição tributária de forma geral e não cumulativa sobre atividades empresariais são ingredientes básicos a serem considerados na formatação de um sistema tributário que pretenda ser funcional e adaptável a um mundo em constante transformação.

Flávio Veitzman é advogado, sócio de Pinheiro Neto Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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