quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A constitucionalidade do protesto de CDA e suas consequências

O primeiro artigo de nossa coluna se volta para o assunto pacificado no início deste mês pelo Supremo Tribunal Federal (STF) ao julgar a ADI 5135, que tratava da constitucionalidade do protesto de CDA, previsto expressamente no art. 1º da Lei nº 9.492/97, com redação dada pelo art. 25 da Lei nº 12.767/12.

Antes de se analisar quais as consequências da decisão do STF, é importante que seja feita uma pequena digressão acerca do tema.

Com a entrada em vigor da Lei nº 9.492/97 passou a ser possível não apenas o protesto de títulos de natureza cambial, mas também de títulos e outros documentos de dívida [1], conceito no qual se encaixava perfeita a CDA. Todavia, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) rechaçou essa possibilidade.

Por meio de nova alteração legislativa, corporificada pela promulgação da Lei nº 12.767/12, previu-se expressamente o protesto de certidões fazendárias [2]. De maneira bastante ágil após a modificação normativa, o STJ, no recurso especial representativo de controvérsia nº 1.126.515/PR [3] referendou a inovação, reconhecendo da legalidade do procedimento cartorário quanto à dívida ativa.

Quando todos achavam que o tema estava pacificado, ocorreu o contrário. Muito provavelmente porque os Fiscos se sentiram mais a vontade para recorrer ao instituto com a chancela do STJ e, em decorrência disso, a reação dos devedores recrudesceu, agora com supostos argumentos constitucionais, gerando uma intensa disputa judicial.

A reação não se restringiu, obviamente, apenas ao contencioso judicial, como de costume, mas também à mídia jurídica impressa e digital, onde grandes bancas de advogados, grandes empresas e meios de comunicação ligados a setores empresariais passaram a bombardear a suposta inconstitucionalidade do protesto de CDA, sem, na maioria das vezes, buscar uma discussão com o outro lado ou, ao menos, lhe dar espaço para apresentar seus argumentos.

Na desesperada tentativa de barrar uma medida salutar para a modernização da cobrança da dívida ativa, buscava-se transpor um garantismo exagerado da esfera penal para cobrança de créditos tributários, invocando, em síntese, a configuração de sanção política baseada em jurisprudência ultrapassada e desatualizada do STF, o princípio da preservação da empresa, suposta ofensa aos postulados da razoabilidade e proporcionalidade e a ausência de interesse e de benefícios do protesto para a Fazenda Pública.

O presente artigo não tem por objetivo rebater detalhadamente os argumentos dos devedores, pois os excelentes argumentos fazendários foram devidamente acatados tanto pelo STJ, como pelo STF, mas somente para fins de registro, vale mencionar que as Súmulas nº 70 [4] e nº 323 [5] do STF, recorrentemente invocadas, em nada se relacionam com o tema em comento, sendo que o conceito de sanção política adotado pelo STF atualmente é o que consta do acórdão da ADI n. 173, de relatoria do Ministro Joaquim Barbosa, publicado em 25 de setembro de 2008.

No acordão, restou decidido que para que sanção política se caracterize são necessárias três condições: (i) a inviabilidade da atividade econômica, (ii) a afastabilidade de apreciação pelo Poder Judiciário e (iii) a desproporcionalidade na utilização do instrumento. Sem maiores delongas, é evidente que protesto de CDA não guarda pertinência com nenhuma com os elementos que a caracterizam.

No tocante ao princípio de conservação da empresa, em que pese sua importância, é importante ter em mente que: (i) ele não tem assento constitucional; (ii) não pode ser de escudo para a inadimplência tributária ou instrumento para dificultar ou criar embaraços à cobrança do crédito público.

Quanto à suposta ofensa aos postulados da razoabilidade e da proporcionalidade, hodiernamente invocados em qualquer situação sem qualquer preocupação metodológica ou racional, apenas como argumentos vazios e retóricos, chama atenção que não restou demonstrada a alegada violação, até porque não faria qualquer sentido se afirmar que a utilização do protesto como forma de cobrança indireta pelos particulares seria proporcional e razoável, enquanto que sua utilização pelo Estado, na cobrança do crédito público, atentaria contra o ditos postulados.

Por fim, sobre a questão referente ao interesse e benefício do protesto de CDA para a Fazenda Pública é preciso dizer, ainda que en passant, que é auto evidente que existe interesse jurídico, prático e econômico no protesto de dívidas tributárias, do mesmo modo que existe para as demais entidades privadas que dele se socorrem para executar extrajudicialmente seus créditos.

Demonstrado, singelamente, o acerto da decisão pretoriana chega-se ao título do presente artigo: quais as consequências e o significado da chancela constitucional do STF ao protesto de CDA?

Do ponto de vista prático-processual tem-se de pronto que, além da perda de objeto de milhares de ações que contestavam o instituto, resta definitivamente refutada a tese que estava surgindo de que o mero protesto, ainda de que de dívida líquida e exigível, geraria direito à indenização por danos morais.

Da perspectiva sistêmica e estrutural da cobrança da dívida ativa, tem-se que a decisão do STF vai ao encontro do esforço legislativo que tem sido levado a cabo para modernizar, tornar mais efetivo, mais eficiente e menos custoso o processo executivo brasileiro, neste caso específico a cobrança executiva tributária, o que é de extrema importância, ante a enorme dificuldade que os credores têm de ter seu crédito satisfeito no Brasil.

Tanto o STF, como o STJ, em regra, tem se preocupado com o aperfeiçoamento de instrumentos que visam melhorar a efetividade da prestação jurisdicional, o que aponta para um movimento de reforço da posição do credor no processo, em especial da Fazenda Pública como ente credor.

A decisão ora em comento segue, por exemplo, na mesma esteira daquelas proferidas no REsp 1112943/MA (após a entrada em vigor da Lei n. 11.382/2006, a constrição on line dos ativos financeiros, requerida pelo exequente, não mais prescinde o esgotamento das diligências extrajudiciais na busca por outros bens do devedor) e no REsp 1337790/PR (Na execução fiscal, o executado não tem direito subjetivo à aceitação do bem por ele nomeado à penhora em desacordo com a ordem estabelecida no art. 11 da Lei 6.830/1980 e art. 655 do CPC), bem como daquela exarada no RE 601.314, com repercussão geral reconhecida (constitucionalidade da transferência de dados bancários para a Administração Tributária, prevista na Lei Complementar n.º 105/2001).

Há, inquestionavelmente, uma crescente preocupação jurisprudencial com a efetiva incidência da tributação, aqui em seu sentido amplo, ou seja, tanto na fase de lançamento (aferição da capacidade contributiva e dos elementos que compõe o tributo), como na fase de cobrança (instrumento que forcem o efetivo pagamento e também gerem um efeito preventivo ao estimular o pagamento espontâneo).

A declaração de constitucionalidade do protesto de CDA se insere justamente nesse contexto, como mais um instrumento apto a reforçar a importância da cobrança fiscal em sem sentido lato.

Do ponto de vista da Fazenda Nacional como credora, a pacificação do tema consolida um grande avanço, que permitirá um maior retorno financeiro com menos custos, haja vista que, até o momento, na esfera federal, em projetos pilotos, o protesto de CDA tem mostrado um retorno de 19% frente a a um retorno de 1% da execução fiscal [6]. Certamente todos os Fiscos do país passarão a recorrer a este instrumento efetivo, de baixo custo e com maior retorno.

Por outro lado, o maior retorno propiciado pelo protesto, além de incrementar a arrecadação, colaborará para que haja uma redução significativa do estoque de execuções fiscais, permitindo-se que os casos que demandem o ajuizamento de execuções fiscais sejam melhores trabalhados e tenham sua taxa de retorno aumentada.

Em suma, a decisão do STF em conjunto com outras, como aquela proferida no RE 601.314 e na ADI 2859, que declarou a constitucionalidade dos artigos 5º e 6º da Lei Complementar nº 105/2001, indicam que o Brasil está definitivamente entrando na modernidade do Direito Tributário, em observância aos ditames constitucionais acerca dos deveres do contribuinte (o dever fundamental de pagar tributos) e os deveres do Fisco (o dever de bem tributar, fiscalizar e cobrar).

A sociedade e o país só têm a ganhar com isso.

[1] Art. 1º Protesto é o ato formal e solene pelo qual se prova a inadimplência e o descumprimento de obrigação originada em títulos e outros documentos de dívida.

[2] Art. 1º (…)

Parágrafo único.  Incluem-se entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas. (Incluído pela Lei nº 12.767, de 2012)

[3] PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. PROTESTO DE CDA. LEI 9.492/1997.INTERPRETAÇÃO CONTEXTUAL COM A DINÂMICA MODERNA DAS RELAÇÕES SOCIAIS E O “II PACTO REPUBLICANO DE ESTADO POR UM SISTEMA DE JUSTIÇA MAIS ACESSÍVEL, ÁGIL E EFETIVO”. SUPERAÇÃO DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ.

1. Trata-se de Recurso Especial que discute, à luz do art. 1º da Lei 9.492/1997, a possibilidade de protesto da Certidão de Dívida Ativa (CDA), título executivo extrajudicial (art. 586, VIII, do CPC) que aparelha a Execução Fiscal, regida pela Lei 6.830/1980.

2. Merece destaque a publicação da Lei 12.767/2012, que promoveu a inclusão do parágrafo único no art. 1º da Lei 9.492/1997, para expressamente consignar que estão incluídas “entre os títulos sujeitos a protesto as certidões de dívida ativa da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e das respectivas autarquias e fundações públicas”.

3. Não bastasse isso, mostra-se imperiosa a superação da orientação jurisprudencial do STJ a respeito da questão.

4. No regime instituído pelo art. 1º da Lei 9.492/1997, o protesto, instituto bifronte que representa, de um lado, instrumento para constituir o devedor em mora e provar a inadimplência, e, de outro, modalidade alternativa para cobrança de dívida, foi ampliado, desvinculando-se dos títulos estritamente cambiariformes para abranger todos e quaisquer “títulos ou documentos de dívida“. Ao contrário do afirmado pelo Tribunal de origem, portanto, o atual regime jurídico do protesto não é vinculado exclusivamente aos títulos cambiais.

5. Nesse sentido, tanto o STJ (RESP 750805/RS) como a Justiça do Trabalho possuem precedentes que autorizam o protesto, por exemplo, de decisões judiciais condenatórias, líquidas e certas, transitadas em julgado.

6. Dada a natureza bifronte do protesto, não é dado ao Poder Judiciário substituir-se à Administração para eleger, sob o enfoque da necessidade (utilidade ou conveniência), as políticas públicas para recuperação, no âmbito extrajudicial, da dívida ativa da Fazenda Pública.

7. Cabe ao Judiciário, isto sim, examinar o tema controvertido sob espectro jurídico, ou seja, quanto à sua constitucionalidade e legalidade, nada mais. A manifestação sobre essa relevante matéria, com base na valoração da necessidade e pertinência desse instrumento extrajudicial de cobrança de dívida, carece de legitimação, por romper com os princípios da independência dos poderes (art. 2º da CF/1988) e da imparcialidade.

8. São falaciosos os argumentos de que o ordenamento jurídico (Lei 6.830/1980) já instituiu mecanismo para a recuperação do crédito fiscal e de que o sujeito passivo não participou da constituição do crédito.

9. A Lei das Execuções Fiscais disciplina exclusivamente a cobrança judicial da dívida ativa, e não autoriza, por si, a insustentável conclusão de que veda, em caráter permanente, a instituição, ou utilização, de mecanismos de cobrança extrajudicial.

10. A defesa da tese de impossibilidade do protesto seria razoável apenas se versasse sobre o “Auto de Lançamento”, esse sim procedimento unilateral dotado de eficácia para imputar débito ao sujeito passivo.

11. A inscrição em dívida ativa, de onde se origina a posterior extração da Certidão que poderá ser levada a protesto, decorre ou do exaurimento da instância administrativa (onde foi possível impugnar o lançamento e interpor recursos administrativos) ou de documento de confissão de dívida, apresentado pelo próprio devedor (e.g., DCTF, GIA, Termo de Confissão para adesão ao parcelamento, etc.).

12. O sujeito passivo, portanto, não pode alegar que houve “surpresa” ou “abuso de poder” na extração da CDA, uma vez que esta pressupõe sua participação na apuração do débito. Note-se, aliás, que o preenchimento e entrega da DCTF ou GIA (documentos de confissão de dívida) corresponde integralmente ao ato do emitente de cheque, nota promissória ou letra de câmbio.

13. A possibilidade do protesto da CDA não implica ofensa aos princípios do contraditório e do devido processo legal, pois subsiste, para todo e qualquer efeito, o controle jurisdicional, mediante provocação da parte interessada, em relação à higidez do título levado a protesto.

14. A Lei 9.492/1997 deve ser interpretada em conjunto com o contexto histórico e social. De acordo com o “II Pacto Republicano de Estado por um sistema de Justiça mais acessível, ágil e efetivo”, definiu-se como meta específica para dar agilidade e efetividade à prestação jurisdicional a “revisão da legislação referente à cobrança da dívida ativa da Fazenda Pública, com vistas à racionalização dos procedimentos em âmbito judicial e administrativo”.

15. Nesse sentido, o CNJ considerou que estão conformes com o princípio da legalidade normas expedidas pelas Corregedorias de Justiça dos Estados do Rio de Janeiro e de Goiás que, respectivamente, orientam seus órgãos a providenciar e admitir o protesto de CDA e de sentenças condenatórias transitadas em julgado, relacionadas às obrigações alimentares.

16. A interpretação contextualizada da Lei 9.492/1997 representa medida que corrobora a tendência moderna de intersecção dos regimes jurídicos próprios do Direito Público e Privado. A todo instante vem crescendo a publicização do Direito Privado (iniciada, exemplificativamente, com a limitação do direito de propriedade, outrora valor absoluto, ao cumprimento de sua função social) e, por outro lado, a privatização do Direito Público (por exemplo, com a incorporação – naturalmente adaptada às peculiaridades existentes – de conceitos e institutos jurídicos e extrajurídicos aplicados outrora apenas aos sujeitos de Direito Privado, como, e.g., a utilização de sistemas de gerenciamento e controle de eficiência na prestação de serviços).

17. Recurso Especial provido, com superação da jurisprudência do STJ.

[4] SÚMULA 70 – É inadmissível a interdição de estabelecimento como meio coercitivo para cobrança de tributo.

[5] Súmula 323 –  É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos

[6] Protesto de CDAs possui taxa de recuperação de 19%. Disponível em: http://www.pgfn.fazenda.gov.br/noticias_carrossel/protesto-de-cdas-possui-taxa-de-recuperacao-de-19

por Diogo Brandau Signoretti - Procurador da Fazenda Nacional, exercendo atualmente o cargo de Procurador-Chefe da Defesa da Fazenda na 3ª Região, Mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito (EPD) e graduado em Direito pela Universidade Estadual Paulista (UNESP)

Fonte: Jota

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