terça-feira, 6 de dezembro de 2011

06/12 Guerra ou liberdade fiscal?


1 - Introdução
A denominada "guerra fiscal" traduz o embate entre os Estados componentes da nossa federação por conta da utilização forçada da redução do ICMS, mediante a concessão unilateral dos incentivos fiscais, como medida de atração dos investimentos destinados a minorar a nossa desigualdade regional. Essa política fiscal recebeu a censura definitiva com a última declaração de inconstitucionalidade (sessão de 1º de junho do corrente ano do Supremo Tribunal Federal) de um rol extenso de leis dos Estados que, de forma unilateral, haviam concedido incentivos fiscais sem a aprovação do CONFAZ.
Um dos maiores adversários dessa política fiscal desenvolvimentista é o Estado de São Paulo, por razões que certamente transcendem o âmbito meramente jurídico, pois a sua participação no PIB e na arrecadação do ICMS deve superar o percentual de 40% (quarenta por cento) da produção nacional. A despeito da sua inquestionável vantagem comparativa, as críticas não podem ser dirigidas unicamente ao referido Estado, colocando-o na difícil posição de último bastião contra a redução da desigualdade regional determinada pelo artigo 3º da Constituição Federal.
Deveras, nessa matéria, observa-se um silêncio sintomático da União, que torna evidente a sua estratégia de fazer crer que o problema da partilha nacional da arrecadação tributária seria da responsabilidade única dos Estados, já que ela (a União) não teria se envolvido nessa distribuição. Bem, como sempre acontece, dissipadas as aparências, a verdade vem à tona. Com efeito, basta um rápido exame das contas nacionais para se constatar que, mediante a criação das denominadas contribuições para a Seguridade Social, em especial com o PIS e COFINS, a União conseguiu aumentar e reter sua participação na arrecadação nacional, já que não há partilha no tocante aos recursos obtidos com essas contribuições. A União fez uma espécie de "reforma tributária silenciosa", com manifesta desconsideração ao princípio da repartição das receitas tributárias disciplinado no artigo 157 da Constituição Federal.
Seja como for, as contingências fiscais decorrentes da aludida declaração de inconstitucionalidade devem atingir cifras estratosféricas, cuja exigência pode colocar em risco a sobrevivência de inúmeras empresas, resultando no agravamento da desigualdade regional, na contramão das diretrizes estabelecidas pela nossa Carta Magna. Assim, não é despropositado imaginar que haverá esforço para encontrar uma saída negociada entre os Estados, possivelmente no âmbito do CONFAZ, rompendo o impasse criado pela disciplina jurídica na concessão dos benefícios fiscais estaduais.
2 - Do controle da Constituição Federal e da Lei Complementar nº 24/75
A Constituição Federal de 1988 tomou todas as providências para evitar a guerra fiscal, ao estabelecer regramento minucioso e casuístico para o ICMS, tendo o cuidado de remeter à Lei complementar a tarefa de regular os procedimentos para a concessão pelos Estados e Distrito Federal dos incentivos fiscais. Foi um voto de confiança na expectativa de que os Estados pudessem alcançar um acordo que resultasse na redução das desigualdades regionais preconizada pela Constituição. Esse sonho foi frustrado pela adoção da Lei Complementar nº 24/75, que até hoje recebe severas críticas sobre a sua recepção, podendo-se aditar que as condições de concórdia ou consenso de 1988 não estavam presentes em 1975.
De fato, a Lei Complementar nº 24, de janeiro de 1975, colocou tantas amarras que o consenso tornou-se uma meta impossível, principalmente por haver exigido a aprovação dos convênios, tratando de incentivos fiscais, por unanimidade, o que representa a aposta no impasse. Ora, não é preciso grande esforço para concluir que a unanimidade é incompatível com os órgãos colegiados, nos quais deve prevalecer o princípio majoritário, ainda que por quórum qualificado. E não é só. Os Estados ficaram autorizados a não ratificar os convênios.
Vê-se, portanto, que a malfadada Lei complementar tudo fez contra o consenso, o que claramente não se harmoniza com a liberdade e a democracia efetiva pretendidas pela Constituição de 1988. No final, a previsão da aprovação por unanimidade tornou facilitado o bloqueio perpetrado pelos grandes Estados às políticas do desenvolvimento equilibrado entre as regiões dependentes dos incentivos fiscais.
Entretanto, como a história nos mostra, poder desmedido sempre acaba surpreendendo o seu titular. Para timbrar a idéia presente nessa frase, torna-se necessário o exame detido do art. 8º, da Lei Complementar nº 24/75. Antes, porém, aproposita-se lembrar que a Lei Complementar, geralmente, expede normas de estrutura, dando, assim, os limites ou o conteúdo da lei ordinária que deve disciplinar a matéria.
A Lei Complementar sob destaque tem essa natureza marcada pelo seu artigo 1º, ao prever que a concessão de isenções, redução de base de cálculo ou o crédito presumido, que são matérias de reserva de lei, dependem da aprovação dos convênios celebrados pelos Estados e Distrito Federal. No seu artigo 2º consta a previsão de que a aprovação dos convênios será por unanimidade de votos dos Estados representados.
Finalmente, no seu artigo 8º, estão marcados efeitos da concessão dos incentivos fiscais sem a observância dos requisitos fixadas pela referida Lei. Esse artigo 8º está assim vertido:
Art. 8º - A inobservância dos dispositivos desta Lei acarretará, cumulativamente:
I - a nulidade do ato e a ineficácia do crédito fiscal atribuído ao estabelecimento recebedor da mercadoria;
Il - a exigibilidade do imposto não pago ou devolvido e a ineficácia da lei ou ato que conceda remissão do débito correspondente.
Parágrafo único - As sanções previstas neste artigo poder-se-ão acrescer a presunção de irregularidade das contas correspondentes ao exercício, a juízo do Tribunal de Contas da União, e a suspensão do pagamento das quotas referentes ao Fundo de Participação, ao Fundo Especial e aos impostos referidos nos itens VIII e IX do art. 21 da Constituição federal.
Claramente, no inciso I há duas previsões: a nulidade do ato que concedeu o benefício fiscal, que retira a validade da lei (ou ato) do Estado de origem, e torna ineficaz o direito de crédito que seria apropriado pelo adquirente/destinatário da mercadoria estabelecido no Estado de destino. Vê-se, portanto, que esse dispositivo envolve dois Estados e dois contribuintes distintos, o vendedor/remetente e o adquirente da mercadoria, ambos partícipes de uma operação interestadual. No inciso II, constam duas previsões: a exigibilidade do imposto não pago (evidentemente pelo contribuinte estabelecido no Estado que concedeu o benefício fiscal) e a nulidade do ato que conceder a remissão desses débitos.
Evidentemente, o artigo 8º trata de duas relações jurídicas distintas, a primeira envolvendo a regra de incidência do imposto, que tem seu elemento espacial no Estado do vendedor/remetente da mercadoria, e a segunda relacionada ao direito de crédito, por força do princípio da não cumulatividade do ICMS, que tem seu elemento espacial no Estado do adquirente/destinatário da mercadoria. Na realidade, tais regras envolvem os dois Estados, tornando-os participeis da operação interestadual.
3 - Dos possíveis efeitos das decisões com a declaração de inconstitucionalidade
Feito esse breve sumário, quadra examinar como fica o cenário diante da declaração de inconstitucionalidade da lei do Estado que concedeu o incentivo fiscal sem observância dos procedimentos fixados pela Lei Complementar nº 24/75. O fenômeno da isenção, que também alcança os incentivos fiscais, pressupõe a convivência de duas leis, a primeira estipulando a regra de incidência (a que determina a tributação) e a segunda que retira a eficácia, total ou parcial, da primeira. Revogada a lei que concedeu a isenção, a lei de tributação volta a ter plena eficácia.
Quando surge a declaração de inconstitucionalidade da lei que concedeu a isenção ou o incentivo fiscal, a lei que determina a tributação (a regra matriz de incidência) recupera a sua eficácia plena e de forma retroativa, uma vez que o juízo de inconstitucionalidade tem efeito ex tunc, a não ser se expressamente excepcionado o juízo ex nunc.
Portanto, o Estado que concedeu o incentivo fiscal e viu a lei editada para esse fim declarada inconstitucional deve providenciar a cobrança do imposto não exigido anteriormente. Aliás, isto está previsto expressamente no Il, do art. 8º, da Lei Complementar nº 24/75. A nosso juízo, o lançamento para esse fim não deve conter multa punitiva porque o contribuinte agiu de acordo com a lei da época. É possível até buscar arrimo no art. 100 do CTN para essa conclusão, tendo em vista que a declaração de inconstitucionalidade determinou a mudança dos critérios jurídicos. Além disso, na emissão dos lançamentos de ofício será preciso observar os prazos de decadência, uma vez que se trata de um reflexo da declaração de inconstitucionalidade e não de um efeito direto dessa declaração.
Ultimado o aludido lançamento de ofício, tem-se uma espécie de retorno no tempo, com a tardia observância plena da regra de incidência. Ou seja, as operações interestaduais, anteriormente tributadas com a redução dos incentivos fiscais voltam a ter a tributação plena, o que deve interferir no juízo anterior da ineficácia do direito ao crédito vinculado a tais operações. Portanto, a correção determinada pelo Estado de origem repercute no juízo sobre o direito ao crédito vinculado a tais operações, o que poderá abrir espaço para se pleitear perante o Estado de destino a apropriação do crédito anteriormente recusado. Numa frase síntese: a correção do regime de tributação, por força do afastamento da lei que havia concedido irregularmente o incentivo fiscal, deve alcançar os dois polos dos intervenientes na operação interestadual, o contribuinte vendedor, que deverá pagar o imposto anteriormente dispensado, e o adquirente que volta a ter o direito ao crédito antes recusado.
Portanto, os Estados que marcaram posição ferrenha contra os incentivos fiscais podem, até, comemorar a recente declaração de inconstitucionalidade, mas não devem ficar imune aos ajustes decorrentes dessa declaração final da Suprema Corte. Numa imagem: os Estados deviam estar unidos na obtenção do consenso pretendido pela Constituição. Não se uniram! Agora, estarão unidos no acerto das contingências fiscais que têm origem na supremacia de alguns, confrontada com a revolta da maioria.
 
 por Antônio Airton Ferreira, Especialista em Direito Constitucional

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