sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

As fronteiras do direito contábil

Ouvimos aqui e acolá que o direito está em crise. Essa crise coincide com o que vem sendo chamado de pós-positivismo. Trata-se, na verdade, de crise do estudo dogmático do direito, ou seja, do direito positivo, aquela abordagem que valoriza, quase que exclusivamente, o texto legal.

Ao jurista caberia analisar a norma jurídica tal como colocada pelo texto formal, sem sofrer influências externas, como, por exemplo, da sociologia, da economia e da psicologia – do contrário, estaríamos diante do sincretismo científico. Da mesma maneira, não se cogitaria uma análise metajurídica da legislação escrita.

A defesa e a valorização dos direitos humanos seriam um sintoma dessa crise, porque, afinal, os direitos assim considerados seriam universais, quer dizer, independentemente de um sistema jurídico estatal (direito positivo) específico, e inerentes ao ser humano, daí, protegidos independentemente da expressa previsão legal.

No Brasil, o direito contábil tem sido entendido, de maneira equivocada, como o conjunto das práticas (ou normas?) contábeis

A classificação das normas jurídicas em princípios e regras é outra demonstração da crise da abordagem positivista, já que aqueles seriam, de certa forma, transcendentes, encontrando seu fundamento de validade independentemente de disposição expressa em texto legal. Porém, há tentativas de restaurar a análise pura do direito, como a desqualificação dos princípios jurídicos, ao se combater a importância da sua teoria tradicional (Dworkin e Alexy, para citar os teóricos mais conhecidos).

O mesmo positivismo jurídico atingiu o infante direito contábil brasileiro. Apesar de amplamente estudado na Europa como um ramo do direito com certa autonomia, no Brasil, o direito contábil tem sido entendido, de maneira equivocada, como o conjunto das práticas (ou normas?) contábeis. E, em sendo assim, as regras contábeis já seriam objeto da contabilidade; desnecessário, pois, um estudo jurídico acerca desse mesmo objeto. Como conclusão, de um lado, não existiria o direito contábil e, de outro, o estudo do direito não poderia sofrer interferência das ciências contábeis – do contrário, estaríamos diante do sincretismo jurídico.

Em outra oportunidade ("Existe um direito contábil?", Valor, edição de 4 de fevereiro de 2015, página E2), externei o entendimento de que a relação entre o direito e a contabilidade não se limita à análise das práticas (normas?) contábeis, mas abrange, primordialmente, a análise das relações jurídicas firmadas pela empresa e a inter-relação entre elas (repetição proposital). As demonstrações financeiras (escrituração contábil) são o instrumento para o desenvolvimento dessa análise. Tanto é assim, que a adequada informação sobre a relação jurídica da empresa pode, se necessário, contrariar a própria prática (norma?) contábil expressa (confiram-se os parágrafos 19 e 20 do Pronunciamento Técnico CPC 26 – Apresentação das Demonstrações Contábeis). O que não se pode contrariar ou omitir, em hipótese alguma, é a relação contratual da qual a empresa faz parte.

Diante do contexto jurídico apresentado e da contraofensiva dos estudiosos positivistas do direito, proponho uma abordagem jurídica que vai além. Trata-se de estudar as fronteiras do direito contábil. O objeto desse estudo é um dos átomos da economia que é a empresa. Não pretendo com isso substituir o direito societário (contrato entre os sócios), o direito trabalhista (contrato da empresa com os funcionários), o direito contratual, tanto mercantil quanto administrativo, o direito tributário, dentre outros, mas, preservando essas especialidades jurídicas, analisar e avaliar, sob a ótica do direito, a inter-relação entre esses diversos contratos (relações jurídicas) dos quais a empresa é signatária.

Para isso, as demonstrações financeiras (escrituração contábil) é um instrumento essencial, indispensável. Na estrutura jurídica do balanço patrimonial, vislumbram-se todas as relações contratuais que envolvem a empresa, classificando-se, de um lado, todos os seus devedores (ativos) e do outro, todos os seus credores (passivos), além dos direitos e deveres na relação contratual com os sócios (patrimônio líquido).

Essa abordagem valoriza os documentos contábeis, porque, ao fim e ao cabo, questiono: eles não são úteis quando prestam informações destinadas a tomada de decisões contratuais dos stakeholders da empresa (parágrafo OB2 da Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro) e da própria empresa?

Edison Carlos Fernandes é doutor em direito pela PUC-SP, coordenador do Núcleo de Direito Tributário e Finanças Públicas do CEU-IICS Escola de Direito e sócio do Fernandes, Figueiredo Françoso e Petros Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Por Edison Carlos Fernandes

Fonte : Valor

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