quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Aspectos tributários sobre a materialidade e a base de cálculo do IR na Lei de Repatriação

*O parecer foi apresentado ao deputado Alexandre Baldy (PTN-GO), relator do projeto que altera a Lei de Repatriação. 

O presente parecer tem como objeto alguns dos enunciados normativos da Lei n°. 13.254, de 13 de janeiro de 2016, sobre os quais gravitam divergências interpretativas que trazem insegurança à opção pelo regime instituído por meio desse Diploma Legal.

Não obstante a Fazenda siga a determinação contida em seus atos normativos e interpretativos, o presente parecer – fruto de sucessivos debates e estudos realizados a respeito do tema – pretende colaborar na construção de um significado que atenda aos preceitos constitucionais, aos ditames do Código Tributário Nacional e à finalidade da própria Lei 13.254/16.

A ressalva é importante, pois busca-se colaborar para a alteração – judicial ou administrativa –  do atual quadro interpretativo já revelado pela Receita Federal do Brasil (RFB) e que será pelos seus agentes aplicado. Até que ocorra qualquer modificação normativa ou judicial, todos os contribuintes estarão sujeitos às sanções e às consequências jurídicas previstas pelos atos e recomendações entabulados pela RFB.

I. DAS PREMISSAS

a) A Lei n° 13.254/16 – conhecida como “Lei da Repatriação” –  instituiu o Regime Especial de Regularização Cambial e Tributária (RERCT);

b) O Diploma Legal acima referido resultou de projeto de lei enviado pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional [1] sob a seguinte justificativa: “espera-se que a repatriação de ativos financeiros injetará uma grande quantidade de recursos no país, o que contribuirá para o aquecimento da economia brasileira e permitirá o emprego de recursos consideráveis em investimentos nacionais, sem que haja aumento de tributação” [2];

c) A elaboração do texto legal não decorreu de um diálogo com a sociedade, tampouco houve, durante o processo legislativo, uma preocupação técnica acerca do atendimento aos institutos jurídicos tributários utilizados na Lei 13.254/16;

d) A Lei n° 13.254/16 criou um regime jurídico “sui generis” visando ao incremento da atividade econômica e da arrecadação em decorrência da regularização de capitais detidos por brasileiros no exterior e não declarados. Esse juízo axiológico foi exercido pelo legislador, em detrimento do ordinário regime punitivo;

e) A Lei n° 13.254/16 foi regulamentada pela Receita Federal do Brasil (RFB) por meio da Instrução normativa RFB n° 1.627, de 11 de março de 2016. Logo após, o órgão fazendário disponibilizou em seu sítio na internet a “Dercat – Perguntas e Respostas 1.0” e, recentemente, o “Dercat – Perguntas e Respostas 1.1”. Uma vez que as referidas “perguntas e respostas” foram ratificadas pelos Atos Declaratórios Interpretativos RFB n° 5, de 11 de julho de 2016 e RFB nº 6, de 9 de agosto de 2016, a RFB emitiu oficialmente sua interpretação quanto ao alcance dos dispositivos contidos na Lei [3];

f) A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) também se manifestou sobre a Lei 13.254/16 através do Parecer PGFN/CAT n° 1035, de 1° de julho de 2016. Nesse Ato fixou seu entendimento sobre a base de cálculo do imposto de renda a ser recolhido para fins de adesão ao RERCT [4];

g) Em que pese a produção desse conjunto de atos interpretativos por parte dos órgãos fazendários, há ainda um notório clima de insegurança na sociedade quanto ao conteúdo da Lei da Repatriação. Como se não bastasse, o próprio entendimento da Receita Federal do Brasil, manifestado na seção “perguntas e respostas” em seu sítio na internet, tem sido alterado regularmente. Essa instabilidade contribui ainda mais para o clima de insegurança jurídica aos particulares;

h) O país passou por quadros de violações jurídicas e instabilidades no passado recente –  como o confisco dos depósitos mantidos em instituições financeiras brasileiras promovido no Governo Fernando Collor de Mello. O receio e a insegurança gerados por essas medidas fizeram com que diversos valores, de origem lícita, fossem remetidos e mantidos no exterior sem informação às autoridades brasileiras;

i) A Lei de Repatriação se aplica apenas aos contribuintes que desejam regularizar ativos oriundos de atividades lícitas. Aqueles que efetuaram remessas com a finalidade de ocultar a titularidade de recursos obtidos por meio de atividades ilícitas, não estão contemplados pela Lei nº 13.254/16;

Com base nessas premissas, emite-se o presente parecer, visando a apresentar, de modo direto e pontual, conclusões a respeito de temas cruciais, abordados pela Lei nº 13.254/16, a fim de permitir que esse regime de regularização tenha a mais ampla eficácia jurídica e social.

2 – DA OPINIÃO JURÍDICA

2.1 Quanto ao fato gerador do imposto de renda

O primeiro ponto que exige manifestação se refere à materialidade do imposto de renda. Mais precisamente quanto à incidência indiscriminada do aludido tributo sobre o montante de todo e qualquer ativo cuja regularização é permitida pela Lei da Repatriação.

De acordo com o que estabelecem os arts. 5° e 6° da Lei da Repatriação, a adesão ao RERCT está condicionada ao pagamento de imposto de renda com relação à integralidade dos ativos objeto de regularização. Ainda conforme a Lei, tais ativos e bens serão considerados acréscimo patrimonial adquiridos em 31 de dezembro de 2014, mesmo que, de fato, tenham sido havidos pelo particular anteriormente a essa data.

Segundo o entendimento manifestado pela RFB, só têm direito de aderir ao RERCT os sujeitos que, cumpridos outros requisitos específicos, recolherem o imposto de renda sobre a totalidade dos bens a serem repatriados.

Os atos interpretativos emitidos pelo Fisco a respeito do assunto, contudo, não fizeram ressalva quanto aos casos de não incidência e de isenção de imposto de renda, tampouco às situações em que o referido tributo já foi devidamente pago, hipóteses nas quais o tributo não seria devido.

Note-se, primeiramente, que só se concebe juridicamente a incidência do imposto de renda nas situações em que há acréscimo patrimonial por parte do contribuinte. Isso por força do que estabelecem o art. 153, III da CF/88 e o art. 43 do Código Tributário Nacional.

Dessa forma, por não se enquadrarem no âmbito normativo de incidência do imposto de renda, as manifestações econômicas que não se ajustam ao conceito de acréscimo patrimonial, deveriam ser afastadas da incidência desse tributo.

Como exemplo, cita-se o caso de um particular que recebe ativos financeiros a título de indenização por conta de uma perda patrimonial por ele sofrida e os converte em bens móveis e imóveis mantidos no exterior. Nessa hipótese, parece evidente que a aquisição do aludido bem no exterior não representa a realização do fato jurídico do imposto de renda. Isso porque a fonte da aquisição patrimonial é a indenização originariamente recebida pelo contribuinte. E, como já sedimentado pelos Tribunais Pátrios, as indenizações, por não caracterizarem acréscimo patrimonial, não são objeto da incidência do imposto de renda.

Em suma, nos casos em que os bens ou direitos objeto de repatriação retratam manifestações econômicas em que não há acréscimo patrimonial, não deveria existir a obrigação de recolhimento do imposto de renda estabelecida pela Lei n° 13.254/16.

Em segundo lugar, é devido fazer necessária ressalva quanto ao pagamento do imposto de renda para fins de adesão ao RERCT nos casos em que a lei brasileira estabelece a isenção do tributo.

Veja-se, por exemplo, as doações e heranças que são, nos termos da lei, isentas de imposto de renda, segundo estabelecem o art. 6°, XVI, da Lei n° 7.713/88, o art. 23 da Lei n° 9.532/97 e o art. 39, XV do Regulamento do IR. Esses enunciados normativos, evidentemente, não foram revogados pela Lei n° 13.245/16.

A referida lei de anistia e remissão, por tratar do imposto de renda, submete-se com rigor às regras e aos princípios que regem o mencionado tributo. Pensar diferente implicaria analisar a lei em exame de modo acontextual, ou seja, fora do contexto do sistema jurídico brasileiro. Portanto, os casos previstos em lei como de isenção deveriam ser, para fins da Lei de Repatriação, rigorosamente observados.

Em terceiro lugar, também é necessário observar os casos dos ativos, bens ou direitos de titularidade do contribuinte que já tenham sido tributados no exterior por Estado que mantém Acordo com o Brasil para evitar a dupla tributação em matéria de imposto de renda.

Nessas situações, em que há convenções internacionais juridicamente internalizadas no país, incide a norma do art. 98 do CTN, segundo o qual, os tratados e as convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha. Logo, as normas construídas a partir da Lei da Repatriação deveriam respeitar o disposto nas convenções internacionais, das quais o Brasil é signatário.

Se o imposto de renda já foi pago no exterior pelo interessado na adesão ao RERCT e se o país – para o qual o aludido tributo foi recolhido – mantinha com o Brasil acordo para evitar a dupla tributação do imposto de renda sobre o mesmo ativo, então não haveria falar em “novo” pagamento do tributo, para fins de regularização desses bens, uma vez que o mesmo já foi pago no exterior.

Todas essas considerações a respeito da não incidência, da isenção e da vedação à dupla tributação da renda conduzem à seguinte conclusão: para fins de adesão ao RERCT, deveriam ser ressalvadas do pagamento do imposto de renda, a que se refere o art. 6° da Lei n° 13.254/16, as situações caracterizadas como não incidência e isenção, bem como os casos em que já houve a tributação do bem ou ativo.

Isso não significaria, no entanto, que o particular estaria impedido de aderir ao RERCT nessas hipóteses. Ainda que o imposto de renda do art. 6° da Lei da Repatriação não fosse devido com relação a certos bens e direitos objeto de regularização, a pessoa física ou jurídica que desejasse aderir ao RERCT quanto a eles poderia fazê-lo. Tal adesão se daria sem a necessidade do pagamento do tributo.

O dever de pagar o tributo deveria ser condição contingente à adesão ao RERCT, mas nunca necessária. Nesse contexto, a parte do caput do art. 5° da Lei da Repatriação em que é mencionado o “pagamento integral do imposto previsto no art. 6° e da multa prevista no art. 8° desta lei” deveria ser interpretada seguida da locução “quando efetivamente devidos”. Afinal, se não há fato jurídico tributário, não há tributo a ser recolhido. Exigir tributo como condição necessária à regularização configuraria clara afronta ao art. 3o, do CTN, que veda a instituição de obrigação tributária decorrente de ato ilícito.

Desse modo, são vislumbradas duas alternativas exegéticas para a correta aplicação do direito: i) se não há obrigação tributária (15%), também não há multa sobre ela incidente, pois a sistemática da Lei da Repatriação estabelece a aplicação de multa de 100% sobre o valor do imposto apurado; ii) alternativamente, há necessidade de recolhimento apenas da multa incidente sobre a expressão econômica do imposto que seria devido caso houvesse fato jurídico tributário. A proporcionalidade estaria respeitada, atendendo ao preceito inserido art. 2o, caput e parágrafo único, inciso V, da Lei n. 9784/99 [5].

2.2 Quanto à base de cálculo do imposto de renda

O segundo ponto a ser examinado refere-se à base de cálculo do imposto de renda a ser recolhido para fins de regularização dos ativos mantidos no exterior. Mais precisamente, diz respeito sobre se há ou não o dever de incluir na base de cálculo do aludido tributo os ativos total ou parcialmente consumidos até 31 de dezembro de 2014, caso o contribuinte desejar fruir dos benefícios da anistia penal e da remissão tributária em relação a eles.

A Receita Federal do Brasil manifestou-se sobre o assunto. Na resposta de n°. 39 do “Dercat – Perguntas e Respostas 1.0”, o órgão fazendário afirmou que “quem desejar estender integralmente os efeitos da lei aos bens e às condutas a eles relacionados, deverá informar tanto a parte do bem remanescente em 31 de dezembro de 2014 como a parte consumida” [6].

A Procuradoria Geral da Fazenda Nacional também se pronunciou sobre a questão, quando da emissão do Parecer PGFN/CAT n° 1.035/16, no qual afirmou, em síntese, que “à luz dos diversos dispositivos da Lei n°.13.254/16 analisados, mormente o §1° do art. 1°, arts. 2°, 3°, 4°, §4°, a base de cálculo da tributação sobre a renda a que se refere a Lei em questão deverá abranger também os ativos total ou parcialmente consumidos anteriormente a 31 de dezembro de 2014”.

Em suma, a posição fazendária é de que, quanto aos ativos consumidos antes de 31/12/14, o contribuinte somente poderá desfrutar dos efeitos da anistia penal e da remissão tributária definidos na Lei da Repatriação se pagar o imposto e a multa incidentes com relação a esses ativos.

Tal entendimento implica, por exemplo, a seguinte conclusão: se o contribuinte mantinha, antes de 31/12/14, depósito de US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares) em conta bancária no exterior e se esse depósito sofreu progressiva redução, até chegar, em 31/12/14, a US$ 100.000,00 (cem mil dólares), esse contribuinte somente poderá gozar das benesses da Lei n° 13.254/16 com relação a toda movimentação financeira que transitou pela referida conta corrente (US$ 1.000.000,00) se pagar o tributo inclusive sobre a quantia por ele consumida ao longo do tempo. Em outras palavras: o contribuinte terá de pagar o imposto sobre o valor equivalente a US$ 1.000.000,00 (um milhão de dólares), não sobre o equivalente a US$ 100.000,00 (cem mil dólares).

Essa questão ficou conhecida nos foros de debates jurídicos como a discussão “filme x foto” [7]. O Fisco defende que a configuração da base de cálculo do imposto de renda a ser pago para fins de RERCT deve retratar a consideração de eventos tal como um “filme”, isto é, ela deve refletir as movimentações patrimoniais havidas ao longo do tempo, até chegar-se a 31/12/14. Há, entretanto, posições contrárias, que defendem que a referida base de cálculo deve ser estabelecida levando-se em conta apenas a “foto” da situação patrimonial em 31/12/14.

Entende-se, respeitosamente, que o posicionamento defendido pela Administração Tributária está equivocado e não deve prevalecer.

A um porque a materialidade, quanto à subespécie tributária instituída – imposto de renda sobre o ganho de capital – encaixa-se à ideia de “foto”. Como se sabe, o Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) possui regimes autônomos e próprios de apuração. Os rendimentos auferidos pela pessoa física ao longo de um ano, decorrentes da sua atividade profissional, por exemplo, não se misturam com o rendimento por ela obtido na venda de um imóvel. Na venda, a base de cálculo é a diferença revelada pela foto (custo de aquisição X valor recebido); nos rendimentos decorrentes da atividade profissional, um filme, no qual são considerados todos os eventos que ocorreram ao longo do ano-calendário.

No caso da Lei de Repatriação, a foto exigida, por presunção legal, é aquela existente em 31/12/14. O corte – arbitrário – decorreu de uma opção exercida pelo legislador, da mesma forma que se optou pela vedação a qualquer dedução a título de custo de aquisição (art. 6°§ 2°). Destarte, não se pode misturar os regimes, tampouco ampliar o que está deonticamente previsto, sob pena de violação ao art. 108, §1o, do CTN.

A regularização, portanto, abrange todo o período, mas a obrigação de pagamento deve ter a dimensão da foto em 31/12/14. A pessoa física está sujeita ao regime de caixa de apuração do IRPF (disponibilidade financeira, e não apenas jurídica, ao contrário das pessoas jurídicas submetidas ao lucro real). Sendo 31/12/14 o aspecto temporal da obrigação tributária, a base de cálculo deve ser coerente com essa data, e o tributo deve corresponder a um percentual dessa riqueza, e não de outra, que não existe mais e pode dificultar  – ou até inviabilizar – a própria opção pelo regime.

Vale ressaltar que o fato de a Lei da Repatriação ter feito menção expressa aos bens existentes anteriormente a 31/12/14, mas não mais disponíveis nessa data, não significa que ela tenha determinado a inclusão do valor desses bens na base de cálculo do imposto de renda a ser recolhido para fins de adesão ao RERCT.

Veja-se que o Parecer PGFN/CAT n° 1.035/16 tenta fazer crer exatamente o contrário. Isto é, a Fazenda sustenta, ao mencionar que o RERCT se aplica aos bens que foram de titularidade do particular, mas que, em 31/12/14, não o são mais (§1° do art. 1°, arts. 2°, 3°, 4°), que a Lei estaria incluindo o valor desses bens na base de cálculo do tributo ora analisado. A conclusão lançada pelo órgão fazendário, todavia, não se sustenta.

A menção expressa no sentido de que o RERCT se aplica aos casos de ausência de saldo de recursos em 31/12/14 (§1°, art. 1°) e às “movimentações anteriormente existentes” (caput do art. 3°) significa apenas que o referido regime possibilita, pela via da declaração espontânea do particular, a regularização desses ativos e das condutas a eles relacionadas.

Se, no entanto, o particular era proprietário de um imóvel anteriormente a 31/12/14 e se ele vendeu o referido bem, o respectivo valor (ativo financeiro) estará sujeito ao recolhimento do imposto de renda previsto pelo RERCT. Da mesma forma, deverá ser recolhido o IRPF sobre o ganho de capital sobre os bens que, em 31/12/14, não estavam em seu nome, mas no nome de interposta pessoa identificada como seu “agente” (vide o disposto no §5°. do art. 4 da Lei n° 13.254/16). A presunção legal atinge os dois casos.

Essa é a dicção do art. 6° da Lei 13.254/16, enunciado que determina que haja tributação sobre os ativos objeto da repatriação “ainda que nessa data não exista saldo ou título de propriedade”. Esse trecho do referido artigo deveria ser interpretado à luz do que se disse acima. O texto normativo está, na realidade, a fazer referência aos bens que, em 31/12/14, não estavam formalmente em nome do declarante, embora fossem, em tal momento, de sua titularidade “informal”. Logo, o texto serve para esclarecer que o tributo deve ser recolhido mesmo que os bens disponíveis ao particular em 31/12/14 estivessem formalmente em nome de outrem.

Tal interpretação é confirmada, inclusive, pelo art. 4º, §8º, inciso III da Lei de Repatriação, que informa que para os ativos integralizados em empresas estrangeiras sob qualquer forma, o valor a ser declarado quando da adesão ao RERCT é o valor do patrimônio líquido apurado em 31/12/14, conforme balanço patrimonial.

Tal disposição prescreve expressamente a forma de apuração no formato “foto”, em desfavor do formato “filme”, e revela que essa foi uma opção que o legislador fez em relação a todos os ativos passíveis de regularização via RERCT.

Afirmar o contrário, seria entender que a Lei de Repatriação estipulou consequências jurídicas distintas para situações semelhantes (contribuinte com recursos integralizados x contribuintes com recursos não integralizados), em clara afronta à isonomia tributária.

A  dois, porque, a prevalecer a interpretação preconizada pelos Fisco a respeito do tema, se estaria admitindo o uso de ficção jurídica para definir o fato jurídico tributário em questão. Com isso, todavia, não se pode concordar.

A ficção jurídica significa, em apertada síntese, é a atribuição normativa de determinadas propriedades a certo evento, as quais, na realidade, este evento não apresenta. A ficção implica construir, no plano abstrato, uma realidade que sabidamente não encontra correspondência no plano concreto. Utilizando-se de uma simplificação, significa dizer que a legislação “faz de conta” que um fato ocorreu com certas características, quando, na realidade, sabe-se que ele concretamente não se realizou tal como definido pela lei.

A interpretação sustentada pela Fazenda Pública alinha-se exatamente ao que se disse acima: a Lei da Repatriação, segundo o Fisco, estaria “fazendo de conta” que o fato gerador do imposto de renda ocorreu em 31/12/14 para os casos em que, sabidamente, não havia disponibilidade econômica em tal data sobre os ativos já consumidos pelo particular. Essa interpretação, contudo, implica utilizar a ficção em um campo em que seu uso é vedado pelo sistema jurídico brasileiro.

Logo, a validade da presunção legal estabelecida (realização do ganho de capital conforme retrato de 31/12/14) depende do atendimento à respectiva capacidade contributiva revelada nessa data. Não se pode admitir, respeitosamente, como defende o Parecer PGFN/CAT n° 1.035/16, um “faz de conta” que não respeita o regime da subespécie tributária eleita, exigindo tributo em 31/12/14 sobre uma riqueza inexistente. Daí porque falar-se em ficção e daí porque defender-se, com a devida vênia, o desacerto da interpretação sustentada pela Fazenda sob esse aspecto.

Outra possibilidade, igualmente draconiana, é considerar que está se criando novo tributo, não previsto na Constituição ou sequer na legislação, incidindo sobre toda a riqueza – atual e passada – do contribuinte. Quaisquer dessas possibilidades devem ser rechaçadas, em prol da preservação da ordem constitucional.

Todas essas considerações autorizam, portanto, concluir que os ativos, bens ou direitos consumidos pelo particular anteriormente a 31/12/14 podem ser objeto de regularização por meio do RERCT. Contudo, com relação a eles, o contribuinte não estaria obrigado a recolher o imposto de renda e a multa que lhe é acessória para fins de adesão ao regime de regularização de ativos.

Nesse contexto, as disposições normativas do art. 5º e do art. 6º da Lei nº 13.254/16, as quais, a priori, condicionam a fruição dos efeitos da anistia penal e da remissão tributária, respectivamente, ao pagamento do imposto de renda e da multa com relação aos bens objeto de regularização, deveriam ser consideradas com ressalvas. O tributo e a multa incidentes sobre determinado bem somente deveriam ser devidos para fins de adesão ao RERCT em relação aos casos em que não estiver caracterizada a não incidência, a isenção e a já tributação do ativo no passado.

Ainda, em relação aos ativos consumidos anteriormente a 31/12/14, a adesão ao RERCT é inequivocamente permitida pelo legislador. O particular deveria, nessa última hipótese, identificar os bens não mais existentes e descrever as condutas a eles relacionadas. Todavia, não seria devido recolher o tributo e a multa em tais situações.

3 – CONCLUSÕES

Em face do exposto, apresentamos as seguintes conclusões sobre o tema objeto do presente parecer:

(i) Os indivíduos agem motivados por incentivos, sendo que um dos maiores incentivos aos sujeitos de uma sociedade são as normas jurídicas, especialmente as sanções, premiais e punitivas. Logo, os contribuintes ao analisarem o RERCT se deparam com um dilema. De um lado, a iminente fiscalização e o enquadramento tributário e criminal os impelem à adesão. De outro, a adesão, nos termos da interpretação até o momento revelada pela Fazenda Nacional, materializa um contexto de difícil e injusto cumprimento, expondo os contribuintes optantes ao evidente risco de exclusão futura do regime;

(ii) Uma das finalidades da Lei de Repatriação é incrementar a arrecadação. Todavia, a estratégia do governo – conforme posicionamento atual dos órgãos da Fazenda Nacional –  pode ter um efeito reverso, desincentivando a adesão ao programa de repatriação. Dado o alto custo de adesão, a incerteza e a insegurança jurídicas, caso o posicionamento da Fazenda Nacional se mantenha é considerável a probabilidade de que, após o encerramento do prazo para adesão ao RERCT, os contribuintes que aderirem ao regime ou que se deparem com fiscalizações, malhas finas, cobranças suplementares ou sanções tributárias e penais, ingressem com incontáveis ações judiciais;

(iii) O pagamento do imposto de renda e da multa são condições intrínsecas à adesão ao RERCT somente quando configurado o fato jurídico tributário, ressalvados os casos de não incidência, isenção e de tributação prévia no exterior por Estado que mantém Acordo com o Brasil para evitar a dupla tributação em matéria de imposto de renda;

(iv) Os ativos, bens ou direitos consumidos pelo contribuinte anteriormente a 31/12/14, não devem integrar a base de cálculo do imposto de renda sobre o ganho de capital exigido no âmbito do RERCT. Cumpre ao contribuinte, nesse caso, declarar precisamente os ativos consumidos e as condutas a eles relacionadas, visando a permitir a Administração Tributária o exercício da fiscalização sobre sua existência no passado;

(v) não obstante as conclusões acima, a aplicação da legislação tributária pela Receita Federal do Brasil segue os preceitos internos e as interpretações do próprio Órgão. O presente parecer, nesse sentido, não autoriza o descumprimento das exigências calcadas no entendimento do órgão fiscalizador, que deverão ser observadas até eventual alteração do cenário normativo ou determinação judicial em sentido contrário.

[1] Projeto de Lei do Executivo nº 2.960/15.

[2] Vide em: www.planalto.gov.br/CCIVIL_03%5CProjetos%5CEXPMOTIV%5CMF%5C2015%5C122.htm. 

[3] Vide o teor em: www.idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria.

[4] Vide a íntegra do em: www.idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/parecer-pgfn-cat-1035_2016.pdf.

[5] Art. 2o A Administração Pública obedecerá, dentre outros, aos princípios da legalidade, finalidade, motivação, razoabilidade, proporcionalidade, moralidade, ampla defesa, contraditório, segurança jurídica, interesse público e eficiência.

Parágrafo único. Nos processos administrativos serão observados, entre outros, os critérios de:

VI – adequação entre meios e fins, vedada a imposição de obrigações, restrições e sanções em medida superior àquelas estritamente necessárias ao atendimento do interesse público.

[6] Vide em: www.idg.receita.fazenda.gov.br/orientacao/tributaria/declaracoes-e-demonstrativos/dercat-declaracao-de-regularizacao-cambial-e-tributaria/perguntas-e-respostas-dercat. Acesso em 09.08.2016. 

[7] Conforme: www.conjur.com.br/2016-jul-25/andre-gomes-parecer-pgfn-cria-novas-duvidas-lei-repatriacao. Acesso em 09.08.2016.

Por Cassiano Menke
Advogado, Doutor em Direito Tributário pela UFRGS

Por Cristiano Carvalho
Advogado, Livre-Docente em Direito Tributário pela USP, Doutor em Direito pela USP, Pós-Doutor em Direito e Economia pela U.C. Berkeley.

Por Rafael Pandolfo
Advogado, Doutor em Direito Tributário pela PUC/SP

Fonte: Jota

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