Guerra fiscal é uma disputa pela atração de mais investimentos privados, através da redução da carga tributária. Pode ocorrer a nível internacional, quando diversos países disputam investimentos, ou internamente a cada país. No Brasil existe guerra fiscal entre Estados, reduzindo a carga tributária do ICMS, e também entre Municípios, pela redução do ISS.
A legislação do ICMS traz várias peculiaridades, pois se trata de um imposto que possui nítidas implicações nacionais, uma vez que regula o comércio interestadual, porém sua legislação é estadual, bem como sua arrecadação. Para dar certa uniformidade à cobrança do ICMS foi criado em 1975, pela Lei Complementar 24, o Conselho Nacional de Política Fazendária, conhecido por CONFAZ, composto pelos Secretários de Fazenda de cada Estado e presidido pelo Ministro da Fazenda. Se um Estado decidir reduzir a carga tributária para as empresas que estão em seu território é necessário que esse órgão o autorize pela unanimidade de seus membros. É isso mesmo – você não leu errado. Se o Estado do Pará quiser reduzir o ICMS para que uma indústria de laticínios se instale na ilha do Marajó, no Norte do país, é necessário que todos demais 25 Estados e o Distrito Federal permitam, pois, caso contrário, esse benefício poderá ser considerado irregular. Apenas para mostrar a falta de funcionalidade do sistema, no exemplo acima, é necessário que o Estado do Rio Grande do Sul concorde com o incentivo fiscal estadual para atração de investimentos que são propostos a uma distância de cerca de 4.300 quilômetros (igual à distância entre Lisboa, em Portugal e Moscou, na Rússia). Ou seja, é uma regra que foi criada sem nenhuma lógica de funcionalidade, mas de bloqueio, pois se apenas um Estado for contra, todos os demais devem se submeter à sua decisão. Não se trata de uma regra de voto, mas de veto.
O fato é que o CONFAZ tentou combater a guerra fiscal de todos os modos. Estabeleceu parâmetros e Convênios, estimulou a ida de Estados pretensamente prejudicados ao Judiciário para cassar os benefícios concedidos por outros, e por aí foi. Tudo em vão. A guerra fiscal continua, mitigada em face de diversas medidas que foram adotadas, porém permanece presente.
Agora o CONFAZ mudou a estratégia. Como os Estados estão falidos, buscando receitas no fundo do tacho, decidiu tirar uma fatia do bolo que foi concedido anteriormente às empresas. Foi aprovado o Convênio 42, substitutivo do Convênio 31, pelo qual foi criada uma espécie de “pedágio do incentivo” sobre as empresas já incentivadas, em percentual nunca inferior a 10% do benefício concedido, a ser destinado a um Fundo de Equilíbrio Fiscal a ser criado por cada Estado.
Não tenho dúvidas que esse mecanismo financeiro é dirigido às empresas que já usufruem de incentivos fiscais, pois, para os novos empreendimentos, ou para a renovação dos atuais, será suficiente regular o montante a ser concedido para o futuro. O Convênio 42 visa exatamente alcançar as empresas que já gozam do benefício, que agora se verão pressionadas contra a parede para pagar essa espécie de “pedágio”, que será cobrado em razão “do incentivo” que foi concedido anteriormente.
Qual a natureza jurídica desse “pedágio do incentivo”? Inegavelmente trata-se de uma receita tributária, de ICMS. O Confaz tentou, com o Convênio 42, fazer uma espécie de maquiagem financeira dessa receita, mas ela permanece tendo natureza jurídica de tributo, de ICMS. A norma é a seguinte:
“Cláusula primeira – Ficam os estados e o Distrito Federal autorizados a, relativamente aos incentivos e benefícios fiscais, financeiro-fiscais ou financeiros, inclusive os decorrentes de regimes especiais de apuração, que resultem em redução do valor ICMS a ser pago, inclusive os que ainda vierem a ser concedidos:
I – condicionar a sua fruição a que as empresas beneficiárias depositem no fundo de que trata a cláusula segunda o montante equivalente a, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício; ou
II – reduzir o seu montante em, no mínimo, dez por cento do respectivo incentivo ou benefício.”
Existem duas hipóteses: ou I) a empresa “deposita” no Fundo o montante equivalente a, no mínimo, 10% dos incentivos recebidos; ou II) o Estado reduz o benefício concedido no mesmo percentual.
Na hipótese I, o que havia sido uma renúncia fiscal de ICMS se transformará em receita pública. Qual a natureza jurídica dessa receita pública? Seguramente de ICMS, pois o que era renúncia de ICMS passa a ser receita de ICMS. O “trânsito” do dinheiro pelos cofres privados, transformando o que erarenúncia de receita em efetivo recebimento de valores nos cofres públicos, mesmo que seja através de um Fundo de Equilíbrio Fiscal, não modificará sua natureza jurídica.
Na hipótese II, se o incentivo de ICMS é reduzido, ICMS será o montante a maior a ser pago. Neste caso o Estado estará apenas reduzindo o benefício fiscal anteriormente concedido.
É juridicamente possível aos Estados adotar esse procedimento previsto no Convênio 42?
Na hipótese I, haverá quebra da equação financeira que foi aprovada no momento em que esse incentivo foi concedido, e modificá-la acarretará forte desequilíbrio nessa relação, permitindo às empresas arguir perante o Poder Judiciário esse aumento de seu custo fiscal. Não se pode onerar, de uma hora para outra, um project finance em tais percentuais – ainda mais quando se considera que 10% é apenas o piso mínimo do que pode ser cobrado a título de “pedágio do incentivo”. Não se deve esquecer que muitas empresas deslocaram suas plantas industriais de um Estado a outro, ou decidiram construir essas instalações em determinado Estado, atraídas pelos incentivos que foram concedidos por prazos longos, que não podem ser agora modificados ao bel prazer dos entes públicos concedentes.
Logo, para as empresas que estão em pleno gozo dos benefícios, esse “pedágio do incentivo” não pode ser cobrado. Poderá ser cobrado apenas em caso de renovação da concessão do benefício fiscal, e mesmo assim, a depender dos termos em que for apresentado.
Na hipótese II, de recebimento do ICMS através de Fundo, há violação ao art. 167, IV, da Constituição[1], que estabelece o princípio da não-afetação, proibindo que receitas de impostos sejam vinculadas a fundos. Logo, haverá inconstitucionalidade. A despeito da Lei 4320/64, em seus artigos 71 a 74, regular os chamados fundos especiais, que, no caso, devem ser criados por lei[2] estadual, haverá inconstitucionalidade por violação ao art. 167, IV, CF.
Além disso, nas duas hipóteses, e abstraindo as duas irregularidades acima apontadas apenas para expor o raciocínio, os Estados não poderão cobrar esse “pedágio do incentivo” de forma imediata, isto é, para os fatos geradores que vierem a ocorrer após a publicação das leis estaduais que instituírem os Fundos de Equalização Fiscal, pois, como se trata de majoração de ônus fiscal, deverão obedecer a todas as regras referentes ao Princípio da Anterioridade inscrito no art. 150, III, “b” e “c”, que proíbe sua cobrança antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei, e desde que tal publicação tenha sido realizada no exercício financeiro anterior à sua instituição. Essa é a exata compreensão do STF em caso de redução de isenções – pois, no fundo, no fundo, é disso que trata o Convênio 42.
Temo que algum Estado mais açodado – que não esteja apenas com um pires nas mãos, mas uma verdadeira bacia de pedinte –, invente de cobrar tal “pedágio do incentivo” de forma retroativa, o que será absurdamente inconstitucional, pois, dentre várias outras normas, violará o art. 150, III, “a” da Constituição, que estabelece o Princípio da Irretroatividade das Leis Tributárias, vedando que seja cobrado tributo referente a fatos geradores que tenham ocorrido antes da vigência da norma que os instituiu ou aumentou.
Por outro lado, entendo que o Convênio 42 visa alcançar todas as empresas que tenham recebido benefícios estaduais, concedidos ou não de acordo com as regras do CONFAZ. Afinal, por qual razão o Estado adotaria tal diferença? Se os dois grupos gozam de benefícios fiscais, o Estado fará incidir tal “pedágio do incentivo” sobre ambas. Seria pouco crível que o Estado, no momento em que busca aumentar suas receitas, faça a distinção entre benefícios legal ou ilegalmente concedidos. Existe o argumento de que isso convalidaria os benefícios irregulares concedidos à margem do Confaz, porém isso não me parece relevante, pois o Fundo de Equilíbrio Fiscal será uma lei estadual. Logo, o recebimento desse pedágio do incentivo se resolverá no mesmo âmbito estadual concessivo, e não no âmbito nacional. Assim, o argumento da convalidação das concessões irregulares não me parece suficientemente robusto. As inconstitucionalidades acima apontadas são mais relevantes para a análise do caso.
Além das empresas incentivadas, quem são os demais alvos desse Convênio 42?
Outro alvo desse Convênio são os Municípios, pois está ameaçada sua parcela na arrecadação do ICMS (o VAF – Valor Adicionado Fiscal). Ocorre que, para proteger os Municípios, a legislação proíbe que ocorra arrecadação de ICMS sem rateio, em flagrante desvio de finalidade.
Um terceiro alvo do Convênio é a parcela da sociedade economicamente mais frágil, pois essa fórmula visa também afastar as vinculações sociais para saúde e educação, que tem amparo na arrecadação de ICMS.
Portanto, estarão sendo prejudicados pelo Convênio 42 as empresas incentivadas, os Municípios e aqueles que mais necessitam de educação e saúde públicas.
Por mais paradoxal que possa parecer, nesse rol são as empresas incentivadas o grupo mais fraco e sujeito às pressões, pois os Municípios têm suas Procuradorias e não têm receio de litigar com os Estados, e os desvios sociais tem no Ministério Público um ardoroso defensor. Todavia, as empresas ficarão expostas ao poder do Estado, que é enorme em face de cada empresa individualmente considerada. Aqui a função associativista deve se impor. Devem as Associações, Sindicatos, Federações e Confederações tomar a frente desse problema e enfrentá-lo em nome de suas associadas, pois, caso contrário, essas serão esmagadas, obrigadas ao pagamento desse “pedágio do incentivo”, assim que vier a ser instituído por cada Estado. A hora de agir é agora, e não logo mais – aí poderá ser tarde.
Enfim, o Estado que vier a implementar esse Convênio 42 estará deixando de lado a guerra fiscal com seus vizinhos para trazê-la para dentro de sua casa, pois seguramente brigará com as associações de classe das empresas incentivadas, com os Municípios escanteados, e com o Ministério Público pelo desvio de recursos destinados para saúde e educação. Será que vale a pena?
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[1] “Art. 167. São vedados: IV – a vinculação de receita de impostos a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas …”
[2] Sobre a recepção desta norma pela Constituição de 1988, e sua qualificação como norma geral de direito financeiro, ver: SCAFF, Fernando Facury. O que são normas gerais de direito financeiro? In: MARTINS, Ives Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira e NASCIMENTO, Carlos Valder do (coord.). Tratado de Direito Financeiro, vol. 1. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 30-44.
Por Fernando Facury Scaff - Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Livre docente e doutor pela mesma Universidade. Advogado Sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados
Fonte: Jota
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