segunda-feira, 20 de junho de 2016

Receita Federal e o combate à ‘pejotização’

Observa-se aumento considerável da chamada "pejotização" (pessoas jurídicas) no mercado de trabalho. Não se trata apenas de possíveis fraudes, em um movimento deliberado de "fuga" do direito do trabalho, mas de profundas transformações na área trabalhista, não absorvidas pela nossa velha Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

No início deste ano, a Receita Federal divulgou seu plano anual de fiscalização, definindo as áreas de atenção em 2016. Entre as eleitas, indicou o combate aos "indícios de interposição fraudulenta de pessoa jurídica com o único propósito de reduzir a tributação por profissionais que prestam serviços a outras pessoas jurídicas, sob a égide do artigo 129 da Lei nº 11.196, de 2005".

Com isso, acende o alerta para pontos sensíveis sobre o tema, como o risco sistêmic o que desponta do conflito de competências entre a Justiça do Trabalho e a Receita Federal na verificação da suposta relação de emprego.

A Receita Federal pauta sua fiscalização por uma noção ultrapassada do mercado de trabalho

Em diversas fiscalizações, um traço comum chama atenção: a tentativa da Receita Federal de constituir vínculos empregatícios com base em presunções genéricas e tendenciosas sobre os contratos entre tomadores e prestadores de serviços. Nos relatórios fiscais que acompanham as autuações vê-se a tendência de reduzir o ônus da prova à seleção, por amostragem, de fragmentos analisados fora do contexto, negligenciando técnicas desejáveis de fiscalização, como a chamada circularização, em que o auditor fiscal busca obter provas junto a terceiros.

As conclusões alcançadas nesses casos são replicadas aos demais prestadores de serviços contratados pelo mesmo tomador, sem individualização. Toma-se o todo pela parte.

Com esse norte, a Receita Federal produz uma série de autuações frágeis, com forte viés ideológico, e limitadas a meras presunções, esquivando-se de comprovar os elementos da relação de emprego: subordinação, pessoalidade, onerosidade e não eventualidade.

Desde a promulgação da CLT o mercado de trabalho e os modelos de produção passaram por grandes transformações. No cenário atual há profissionais especializados e com elevado know-how, com liberdade de atuação para pulverizar seus serviços e diversificar as formas de prestá-los. Essa nova lógica impulsiona profissionais da mesma área a se reunirem para constituir estruturas empresariais destinadas à prestação de serviços de alta complexidade intelectual.

As relações estabelecidas entre tomador e prestador romperam com o tradicional modelo de trabalho subordinado e, muitas vezes, são regidas pelo direito privado, no contexto da chamada reprivatização do direito do trabalho, abrindo espaço para a flexibilidade dos termos contratuais, autonomia e dinamicidade na execução das atividades e liberdade de auto-organização.

Esse contexto não pode ser ignorado. Nele, pagamentos variáveis e ajustados isoladamente em cada contrato se opõem à onerosidade da relação de emprego, marcada pela contraprestação em valores fixos e habituais. A pessoalidade é substituída pela contratação de serviços da pessoa jurídica, não de seus sócios ou empregados.

O tomador elege, por exemplo, a empresa que fará um exame médico ou elaborará um projeto a partir da visibilidade conquistada por ela em seu mercado relevante, independentemente do profissional designado para a realização da atividade.

Nas estruturas empresariais criadas para execução de uma certa atividade, os serviços são contratados conforme a necessidade e interesse de uma pluralidade de tomadores, conferindo variabilidade à frequência e ao número de contratações.

No modelo de relações privadas, a subordinação dá lugar à liberdade na execução do trabalho contratado, com a autonomia da prestadora para definir sua própria agenda ou mesmo substituir um profissional pelo colega, o que é impossível na relação clássica de emprego.

Assim, evapora também o vício de consentimento alegado recorrentemente nas autuações da Receita Federal, que atribui a decisão de constituir pessoas jurídicas ao constrangimento supostamente exercido pelos tomadores dos serviços.

Em muitos casos constatam-se situações bem diferentes das alegadas pelo Fisco. A alta capacitação dos profissionais os levam da condição de hipossuficientes para o patamar de contratantes. A organização de seu trabalho em uma estrutura empresarial é opção que converge com seus próprios interesses, não com os do tomador.

Ainda assim, a Receita Federal pauta sua fiscalização por uma noção ultrapassada do mercado de trabalho e encara a fraude como decorrência automática da prestação de serviços por meio de pessoas jurídicas constituídas por profissionais especializados.

Tentativas desse tipo já começaram a ser rechaçadas pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – como no acórdão nº 2401004.063, julgado em janeiro de 2016 -, indicando que a Receita Federal não pode ignorar o elemento indispensável para suas autuações: a comprovação de que a contratação é fraudulenta, tendo como intuito apenas esconder a relação de emprego existente.

Espera-se que o Fisco não mantenha esse padrão de autuações e passe a identificar os efetivos casos de fraude, contribuindo para a redução da litigiosidade e a construção de um modelo mais ajustado ao atual quadro de desenvolvimento econômico.

por Nelson Mannrich e Breno Ferreira Martins Vasconcelos são sócios do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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