segunda-feira, 16 de março de 2015

16/03 Morte e vida severina, vida e morte contabilina

Relembrando Severino em João Cabral de Melo Neto, 60 anos depois, e forçando a barra — não tão pouco, concordo —, faço uma constatação épica também: a força da criação da contabilidade e provavelmente de sua morte. Que força é essa? Que razão é essa? 

A contabilidade nasceu quando a capacidade do ser humano conseguiu criar um denominador comum para todos os bens econômicos e dívidas: a moeda. Da criação da moeda física de prata, ouro, concha ou o que for à abstrata, virtual, conseguiu-se algo absolutamente inacreditável e impensável: ser capaz de somar tijolos com direitos a receber, com intangíveis, com caixa, com despesas pagas antecipadamente, com participações societárias, com depreciação (contida no custo dos estoques manufaturados), etc. E dessa soma nonsense ainda se consegue deduzir o que se deve e obter-se um saldo com nome atribuído: patrimônio líquido. 

Que saldo é esse? Você já parou para pensar no que ele significa? O que uma Petrobras — já que ninguém fala nela ultimamente… — tem no lado do ativo do seu balanço é, na verdade, um conjunto enorme de equipamentos, navios, prédios, patentes, tecnologia, direitos, etc. que, no fundo, são coisas que absolutamente não se somam. Mas a moeda permite que tudo seja convertido nesse denominador comum e, após isso, somado, utilizado para subtrações (cuidado com o duplo sentido) de dívidas etc. Parece um milagre! 

Sem a moeda não há, absolutamente, contabilidade. Ela é o milagre que permite as demonstrações contábeis. É claro que a moeda pode ser o real, o dólar, o ouro, a UFIR, uma arroba de carne, um barril de petróleo, uma cesta de moedas, um sanduíche bauru etc. Ou seja, pode ser, com o uso da nossa capacidade criativa e abstrativa, uma moeda de curso legal ou qualquer outro denominador que tenha essa capacidade de servir para transformar tangíveis e intangíveis num único padrão somável e subtraível. 

Mas, se a existência de uma moeda parece ser a salvação da contabilidade, a existência de várias provoca situações aparentemente esdrúxulas. Quem investiu 1 milhão de libras esterlinas num imóvel londrino, gastando R$ 3 milhões, e o vende depois por 900 mil libras com a libra a R$ 4, terá tido a sensação de ganho, um lucro de R$ 600 mil reais, se trouxer o dinheiro para o Brasil e continuar a viver aqui normalmente. Se tiver vendido o imóvel pelas 900 mil libras por um aperto financeiro, porém mantendo residência só em Londres, sentirá uma perda: prejuízo de 100 mil libras esterlinas. Qual é a verdade? Lucro ou prejuízo? E qual a visão de um americano, que pensa e age somente em dólar, querendo avaliar o desempenho desses investidores? Como decidir para quem emprestar ou em quem investir? 

A criação da moeda permitiu a contabilidade. Mas as contabilidades em libra, em real ou em dólar colocam dúvida sobre qual é a “verdadeira”. E a dúvida é atroz a ponto de fazer perder credibilidade. 

E se uma empresa no Brasil, vivendo seus sócios só aqui, tiver investido R$ 1 milhão há um ano e ganhado, em renda fixa, o valor bruto de R$ 100 mil, pagando 34% de tributos sobre o lucro? Terá tido lucro ou prejuízo, considerando 7% de inflação nesse período? A contabilidade nossa, formal, legal, normatizada, internacionalizada, dirá que terá havido um lucro de R$ 66 mil. Mas a lógica econômica dirá que não só não terá havido lucro como um pedaço do capital original terá sido perdido. Afinal, deveriam existir R$ 1.070.000 agora para comprar, na média, o que R$ 1 milhão comprava um ano — ou 7% de inflação — atrás. E, no entanto, só existem R$ 1.066.000 hoje. A inflação matou a verdade contábil e o que a demonstração contábil diz ser lucro é, na verdade, prejuízo. Isso sem considerar o custo de oportunidade do dinheiro aplicado. 

Noutro exemplo, alguém tomou R$ 10 milhões do BNDES a 5% ao ano e investiu num terreno que tenha se valorizado 10% e acaba de ser vendido, sob os mesmos 7% de inflação. O resultado mostrará lucro ou prejuízo? Esqueçamos os tributos sobre o resultado. Sabidamente mostrará um lucro de R$ 1 milhão na venda do terreno, e despesas de juros de R$ 500 mil, com o lucro de R$ 500 mil. Ganho no ativo e despesa por causa do passivo. Ou deveria mostrar um lucro na venda do terreno só de R$ 300 mil, considerando a inflação (R$ 11 milhões de venda menos o custo corrigido de R$ 10.700.000), e um ganho na dívida de R$ 200 mil porque pagou-se R$ 10.500.000 ao banco ao final quando o empréstimo original corrigido pela inflação seria R$ 10.700.000? Pagou-se menos do que se recebeu ou não? Em outras palavras, o lucro é formado de um grande ganho no imóvel e uma despesa de juro ou de um módico ganho no imóvel e um lucro por conta do financiamento privilegiado? 

A moeda nominal, desconsiderando olimpicamente os efeitos da inflação, é um início da morte da credibilidade da informação contábil. Poderíamos continuar a filosofar sobre contabilidade e moeda. No entanto, parece muito clara a conclusão: a moeda é a vida da contabilidade, mas pode significar sua morte também se não tivermos um desenvolvimento conceitual à altura de sua definição e de seu significado para fins contábeis.

por Eliseu Martins - Professor Emérito da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP - Bacharel, Doutor e Livre-Docente pela FEA -USP. É consultor, palestrante e parecerista da área contábil; Membro de Conselhos de Administração, Consultivo e Fiscal de empresas privadas e estatais e de entidades sem fins lucrativos. Ex-Diretor da FEA-USP; Ex-Diretor Pró-Tempore da FEARP; Foi Coordenador do Pós-Graduação e Chefe do Departamento de Contabilidade e Atuária da FEA-USP; Ex-Diretor da CVM (período de out/2008 a dez/2009 e de 1985 a 1988); Ex-Diretor de Fiscalização do Banco Central do Brasil; Foi representante do Brasil junto a ONU para assuntos de Contabilidade e Divulgação de Informações; Ex-Diretor do IBRACON - SP; Ex-Diretor da ANEFAC, entre outras funções já realizadas.

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